segunda-feira, dezembro 22, 2008

Apontamentos sobre realismos, delitos, animais...


Delito na ilha das cabras é mais uma peça realista. Não. Delito na ilha das cabras não é mais uma peça realista. O Realismo, no teatro, enquanto movimento – que nunca foi – teve seu apogeu em Ibsen e seu declínio e Tchekhov. Com todas as controvérsias e falhas possíveis.

Os que se dizem estudantes e estudiosos do teatro têm por obrigação ler O naturalismo no teatro, de Zola. Faz parte da formação sensível dessas pessoas entender – junto à formação do espírito burguês e da ascensão feroz do capitalismo e dos novos impérios que se reconfigurariam após a I Guerra Mundial, e se estabeleceriam após a II – como os questionamentos de Zola, assim como de Jarry, de Wagner e tantos outros se organizavam para rechaçar, exaltar, transformar e questionar o homem do final do século XIX.

Para se entender o Realismo, tem-se que estudar Zola e, principalmente ler Ibsen. Mas ler Ibsen com a destreza de um leitor que percebe tudo de novo, diferente e revolucionário que esse norueguês trouxe para o teatro. Se formos ler Ibsen com a mente tacanha dos preconceitos iletrados dos que, seis meses após o primeiro contato com o teatro, já se dizem grotowskianos, artaudianos, pós-dramáticos e vanguarda, teremos a estreiteza de perceber apenas a historinha bem contada, e passaremos ao largo do que realmente importa numa obra de arte: como o que ela pretende dizer dialoga com seus detalhes, sua forma, sua estrutura e sua particularidade. E nesse ponto, mesmo uma história banal pode se tornar uma grande obra. Pois, caros leitores, não é com a história que se sente o prazer da obra, mas com a genialidade que ela é contada, dita, esmiuçada, dissecada pra gente.

E nesse ponto percebe-se que Ugo Betti, com sua peça, comete delitos na ilha do Realismo. Basta perceber que a construção das personagens tem muito mais de simbólico que aquela profundidade tão exigida numa peça onde cada um tem suas contradições, uma história de vida, um passado que vêm à tona. Betti joga com isso, pois o forasteiro que aparece traz uma história que apenas justifica sua entrada naquela casa, mas o que prende ele àquelas três mulheres é o desejo. Dele e delas.

Pra quem não conhece a peça, trata-se de três mulheres, uma viúva com sua filha e sua cunhada, que moram numa ilha onde só há cabras. Um forasteiro chega dizendo ter servido ao exército junto ao marido de Ágata, a viúva, e que veio com a missão de cuidar dela(s). Ele acaba num jogo de sedução com as três, gerando conflitos e a situação vai ficando insuportável até que... Bem, não vou contar o final da peça, por mais que eu defenda que a história não importa, e sim como a leremos, veremos, ouviremos.

Os cortes dos atos são abruptos. Não há mudança interna alguma nas personagens. Pelo menos não como imaginamos ser uma peça realista bem-feita. A vida daqueles personagens quase não existe socialmente, é uma peça que se passa ao longo de dias, ou semanas, e não há nada no passado ou no futuro que vá fazer diferença, ali. O jogo se estabelece à revelia das “regras realistas”, e todo o antes e o depois da ação são mandados às favas.

Na recente montagem de formatura realizada na Escola de Teatro da UFBA, em Salvador, com direção de Harildo Deda, alguns elementos corroboram a idéia do não-realismo. A luz do espetáculo, assinada por Eduardo Tudella, traz uma carga de simbolismo que chega a brincar com matizes que representam desejos, friezas, cruezas e solidões. Seu cenário também é recheado de símbolos. Paredes frias de uma casa sem desejo, abaixo do nível da rua, sufocada, móveis duros e quartos que se escondem pra cima e para baixo, como os desejos das três mulheres, enredadas nesse obscuro objeto que é Ângelo, o forasteiro que traz no nome o anúncio no milagre que se anunciará em delito, em crime, em pecado. É o anti-anjo da salvação.

Não é o tipo de texto que eu montaria. Nem o tipo de montagem que me mobilizaria o espírito a ver. Mas dá prazer curtir um teatro de idéias sólidas. Citando o cinema, referência mais fácil, Glauber Rocha amava Visconti, e Bergman, Fellini, só pra exemplificar antagonistas que se encontravam no infinito da arte.

A aí me vem a preocupação. O problema que vejo em muitos palcos da cidade e por aí afora não é excesso ou falta de realismo, excesso ou falta de transgressão, excesso ou falta de drama, texto, história, enredo, trama, personagens, ação.

Qualquer texto funciona se por trás dele existe uma idéia do teatro, posta em cena através de uma filosofia da forma, de uma estética do pensamento.

E isso não é pra qualquer aventureiro que lance mão de criatividade rasa e referências frouxas.

É preciso ler pra que não cometamos delitos na ilha dos burros.


GVT.

segunda-feira, dezembro 15, 2008

Pagode; atitude e tragédia social - esparsos apontamentos de fim de ano...


Não tenho nada contra o pagode. Muito pelo contrário. Esse primo da chula do recôncavo e do samba de roda traz em sua essência uma musicalidade e um molejo – além da jocosidade e sensualidade – que merecem destaque.

Quase todos os grandes compositores do país já homenagearam, cantaram e/ou compuseram pagode. Caetano acaba de lançar uma canção do seu novo disco que é uma clara citação às músicas de pagode, com um refrão denunciador “que onda, que onda, que onda que dá, que bunda, que bunda” (transformando bunda em oxítona que nos faz lembrar um trocadilho com que boom dá). Gil compunha pagode antes de o pagode estourar e ser conhecido. Bem, mas Gil fez quase tudo antes de todo mundo, não conta.

O problema do pagode está numa questão que foge à letra fácil, ao duplo sentido, à sensualidade e às melodias simples. Tudo isso se encontra em Luiz Gonzaga, em Braguinha, em Tom Zé, em João Bosco, em Caymmi, porque tudo isso é música popular. O real problema do pagode está na atitude de quem o segue, quase que como um assecla, um fiel.

* * *

Fui assistir pela vigésima vez ao espetáculo Palafitas, da Companhia Jorge Silva, no Centro Cultural de Plataforma. Fiquei feliz com o público (pouco) e vi ali uma possibilidade de ação concreta que poderia ser feita através da boa arte (ah, um espaço desses na mão de artistas engajados e visionários, com uma boa verba pra fazer boa arte e disponibilizar a essa comunidade... ah, tanta coisa a ser feita...). Mas uma coisa me chamou a atenção. A quantidade de gente reunida na praça para o; pagode.

Por trás daquela imagem de baianidade que, entra governo, sai governo, querem instituir como algo de legítimo, autêntico e louvável, encontra-se uma população, preponderantemente de baixa renda e de origem negra, que encontra ali seu desabafo, sua válvula de escape e sua redenção. E isso é perigosíssimo. Aliás, esse assunto de negritude é bom mesmo pra aquela galera que inventa congresso, encontro, faz ONG, etc, tudo pra pegar o dinheiro das “reparações” governamentais e de empresas com sentimento de culpa, que querem trabalhar pelo “social”.

Mão de obra qualificada e gente com uma amplidão cultural é o que mais falta em Salvador. Estamos perdendo o centro da cidade para os estrangeiros, e digo que ainda bem. Se nós não sabemos cuidar, se somos desleixados, não valorizamos nosso patrimônio, como diria Darwin, há uma seleção natural. Os xópins de Salvador estão empregando gente de outras cidades por conta de uma falta de qualificação da nossa mão de obra. Os bares e lojas têm um atendimento péssimo. Claro que isso tudo não é culpa do pagode, mas vê-se nessa manifestação que toma clubes, casas de espetáculos e ruas, um reflexo comportamental de uma população que não está nem aí para o resto, o que importa é requebrar, tomar cerveja, pegar homem e/ou mulher (vai lá saber...). Há uma inebriação que reflete um comportamento esculhambado, brejeiro, descompromissado, e essas pessoas não se importam nem um pouco de estarem marginalizadas. Sentem-se bem em seu gueto e vão levando a vida em subempregos, em ofícios muitas vezes mal realizados.

Essa imagem do negro que toca tambor e é feliz, que come seu acarajé e dança capoeira precisa acabar. O negro não é negro, é baiano, humano e igual. Ele precisa se estabelecer como gente, e não como ser exótico que requebra na boquinha da garrafa. Legitimar isso é não só perigoso como ofensivo. O pagode é nosso baile-fanque, e não há nada de legal nisso. É muito simpático que artistas burgueses, da zona sul do Rio ou que moram fora do país elogiem essa manifestação tão forte, autêntica e legítima, não é? Mas eles parecem não estar nem aí para o que existe por detrás disso. Ser simpático olhando de cima pra baixo é abjeto.

E o pior, pra completar, é que nas camadas altas, o negócio não é tão diferente. O branquinho “Parmalat” é tão ou mais imbecilizado pelo status quo, visto que nem mesmo a verdade e força das camadas mais baixas – identificadas com a vida “real” soteropolitana – são encontradas nesse mundinho pequeno de festas, baladas, xópins e boates.

* * *

Tenho duas teorias sobre o péssimo atendimento na Bahia. O trauma da escravidão e o que eu chamo de “mentalidade do bico”.

O trauma da escravidão suponho ser o que faz, em muitas ocasiões, o atendente não atender bem. Servir bem ao outro passa a ser humilhante, e não um serviço, como o próprio nome diz. Aliado a isso, a mentalidade do bico, que consiste em a pessoa não encarar seu ofício como um trabalho, mas como um “bico”. A pessoa não é vendedora, garçonete, está vendedora e garçonete. Se for demitida, tudo bem, volta pra casa da família, em algum bairro Qualquer Coisa Vinte e Três, e espera pelo próximo emprego vivendo da aposentadoria da tia, ou da pensão da avó.

Essa falta de ambição e desleixo atravanca o progresso de uma bela cidade que nós temos, mas que nunca deixa de ser província; pequena, tosca. É uma pena vermos uma imensa população abandonada, esquecida e desgovernada, que poderia estar progredindo e crescendo culturalmente, que poderia e tem capacidade de crescer com a cidade, com seu desenvolvimento econômico, cultural e social. Ações deveriam ser pensadas, conjugando educação e cultura.

Mas nada disso importa, pois daqui a pouco toda essa comunidade linda, forte e autêntica vai se embriagar e requebrar numa festa de pagode ali na frente. E perpetuar nossa tragédia social.


GVT.

segunda-feira, dezembro 08, 2008

meritocracia em tempos de massa


Num momento onde se discute muito a democratização na cultura, me deparei com um artigo de Fernando Rodrigues, jornalista da Folha de São Paulo, sobre futebol.

Não que eu queira trazer para o blog assunto tão controverso e tão amado por mim, mas ao comentar o hexacampeonato do São Paulo Futebol Clube, um articulista político, falando de futebol, retorna à política falando de cultura, e tocando num assunto espinhoso, mas necessário:

A conquista do campeonato brasileiro de 2008 pelo São Paulo Futebol Clube ajuda a disseminar no Brasil um valor quase inexistente no país: a meritocracia (grifo meu). Vence quem se esforça e trabalha mais ao longo de todo o campeonato. (http://uolpolitica.blog.uol.com.br/)

Ele está se referindo ao novo sistema do campeonato, que vigora há seis anos (quem tiver interesse, basta acessar o blog supracitado). Mais abaixo, ele repete:

... A meritocracia (grifo meu) é uma característica vital de sociedades desenvolvidas. É bom que no Brasil comece a vigorar exatamente na mais popular de todas as manifestações culturais, o futebol. (idem)

Sempre acreditei que deveria haver uma melhor distribuição da cultura, mais acesso, mais democratização. Mas em relação à manifestação, e não aos mecanismos de subvenção, apoio e patrocínio.

A arte é o espaço da meritocracia. Ganha pra produzir quem merece, quem trabalha regularmente, quem vem construindo seu espaço e buscando uma linguagem, quem vem exercendo seu ofício a despeito das intempéries, crises e mudanças. E deve ganhar para que sua obra possa ser difundida, apreciada, divulgada e democratizada.

Hoje em dia, quer se democratizar a verba da cultura, inclusive subvertendo o mérito artístico, em prol da comiseração.

E não se cria uma estrutura, um ambiente para que esse resultado, tosco ou não, seja difundido, morrendo em apresentações onde o grande público não tem acesso, não sabe que está acontecendo, e quando sabe já acabou.

E assim a arte vai desandando, os profissionais se desiludindo, a vontade de fazer arte diminuindo, os palcos ficando carentes de grandes artistas...

Mas sempre haverá aqueles que farão de qualquer jeito, com qualquer um, sem que ninguém ganhe e ninguém veja. Aonde isso vai dar?

Pra mim já não está dando mais...


GVT.

terça-feira, dezembro 02, 2008

Coincidências, reincidências...

Houve uma entrevista com a atual presidente da Fundação Cultural do Estado da Bahia domingo, dia 30 de novembro, um pouco mais de uma semana após este blog virar uma interessante tribuna de discussão.
Uma das questões colocadas repetidas vezes no blog foi quanto ao fato dos artistas não se reunirem, não haver uma sociedade civil organizada. Como já havia dito, participei de todos os movimentos que soube, aqui nessa cidade à beira-mar. E todos se enfraqueceram, em seu início, meio ou fim, por falta de discussões maduras, efetivas, e por falta de artistas representativos da nossa recente história que estivessem presentes.
Entre discursos de "incompetência", "puxa-saco", "maluco", e tantos outros, o fato é que não vejo meus pares presentes em sua esmagadora maioria. E sei que não será através de ofensas num blog que resolveremos ou discutiremos nossa situação.
Reproduzo, abaixo, um emeio que recebi convocando artistas de teatro da cidade a se reunirem segunda próxima, no Cabaré do Teatro Vila Velha.
Mais uma vez, irei. E tentarei relatar o que aconteceu, o quão produtivo foi, e quem foi. Como uma forma de entendermos nossa culpa, também. Nossa omissão. Ou nossa reviravolta.
Segue emeio, sem correções, abaixo:


REUNIÃO DO FÓRUM DE TEATRO DA BAHIA

Olá caros colegas,Apesar das desesperanças e do cansaço das infrutíferas reuniões, apesar da descrença nos encontros e mobilizações, não podemos deixar de arriscar. E não existe outro meio de mudança se não pelo dialoga e mobilização.
Todo esse discurso para dizer que estamos convocando toda a classe para repassar os informes sobre uma reunião da Câmara Setorial que presenciei em Brasília falar e aproveitar o ensejo para falar de outros assuntos que merecem ser considerados importantes para nós.
Veja a pauta a baixo:
O que: Reunião da Câmara Setorial de Teatro da Bahia
Onde: Teatro Vila Velha / Cabaré
Quando: Segunda
dia 15/12

Horas: 19:00h

PAUTA
1 – Noticias sobre a continuidade e reformulação das Câmaras Setoriais. Relatório da ultima reunião, ocorrida em outubro, em Brasília junto ao Ministério da Cultura. (João Lima)

2 – Nosso posicionamento e estratégias com relação a proposta do Conselho Estadual de Cultura sobre a reformulação das políticas norteadoras dos editais de concorrências e das leis para a produção cultural.
Ps: Este é o momento de brigarmos pelas mudanças que queremos e ficar atentos para o que não queremos.

3 – Inicio de discussão e elaboração de uma pauta de reivindicação de política cultural municipal junto ao novo mandato do velho prefeito.

4 - Informes sobre o encontro da Redemoinho em Salvador. (Gordo)

Contamos com a sua presença,

João Lima

quinta-feira, novembro 20, 2008

Ricardo Castro: uma ilha no governo da Bahia...

No man is an island entire of itself; every man is a piece of the continent, a part of the main. If a clod be washed away by the sea, Europe is the less, as well as if promontory were, as well as if a manor of thy friend's or of thine own were. Any man's death diminishes me,
because I am involved in mankind; and therefore never send to know for whom the bell tolls; it tolls for thee.

John Donne

O pianista Ricardo Castro é uma ilha no atual governo. Principalmente no que tange à cultura. Em entrevista recente à revista dominical Muito, no jornal A Tarde, Ricardo Castro expôs idéias – algumas que eu já conhecia – que reafirmaram o que eu já pensava; ele é uma nota dissonante na atual gestão – ou falta de gestão – das artes na Bahia.

Sem precisar ir pra nenhum congresso nem simpósio na FACOM-UFBA pra discutir o que é cultura, nem tampouco sem fixar a nota única que os gestores da cultura arranjaram pra dizer que fazem algo, que é descentralizar e interiorizar a cultura, Ricardo expõe idéias, utopias, conceitos, é objetivo e claro.

Se espremermos das pessoas que estão ferindo, digo, gerindo nossa arte, ouviremos questões vagas, idéias difusas, enfim, uma falta de direcionamento, de uma efetiva política cultural que contemple nossa riqueza, nossos profissionais, um pensamento que aponte para um futuro melhor, mais digno e sofisticado.

Ricardo Castro quer ter uma orquestra completa, que possa tocar Mahler. Sim, Mahler, ele não falou Maracatu. E qual o problema? Ele acha uma vergonha não termos uma orquestra completa. Ele quer contratar mais músicos, ao contrário do desmanche que tentam fazer em outras áreas, pois na atual gestão um artista ganhar dinheiro é privilégio. E mais, acha um absurdo não termos um teatro – ele até já deu o nome; João Gilberto – onde a orquestra possa tocar em dias nobres. O congestionamento do Teatro Castro Alves, pra ele, é um despautério. Ele quer que a Orquestra Sinfônica da Bahia cresça, se aprimore, tenha um programa mais efetivo, um teatro próprio (enquanto os gestores deixam os poucos que temos às moscas, basta ver o Solar Boa Vista, o Espaço Xisto, etc.).

Seu projeto Neojibá pretende profissionalizar meninos de todas as cores, cidades, crenças e castas sociais, para serem futuros excelentes músicos que possam enriquecer nossa orquestra e fazer parte do corpo estável de qualquer boa orquestra do Brasil e do mundo. As fronteiras já estão se abrindo, e bons músicos estão surgindo. Não é projeto social de inclusão pra formar um bando de desafinados, é um projeto de profissionalização. Coisa que a música erudita traz em sua organização, sua estrutura, sua formação, diferente de áreas como o teatro onde tudo pode, tudo serve e ficamos soltos num amálgama difuso de valores e princípios.

Quando Ricardo Castro fala em fundar uma escola de música, de nível internacional, na Chapada Diamantina, por exemplo, ele não enfeita seu discurso com uma comiseração e culpa, mas sim com objetividade e clareza. É um processo de abrir portas através de uma estrutura sólida, competente, baseada em técnica, estudo, eficiência. Não é dar esmola ao interior, mas ampliar o raio de ação da cultura, da arte, que pode e deve ser universal e atingir todos os cantos; mas sem perder de foco a excelência.

Ricardo Castro tem, em seu discurso, uma evidente política pública para a música clássica, de concerto, erudita, como queiram. Critica as estruturas, pensa grande, tem sonhos, quer uma profissionalização. Sua objetividade contrasta com a falta de idéias, conceitos e políticas que possam delinear algo de interessante para as artes. Passaram-se dois anos e ainda discutimos, nos reunimos, e o governo vem com a desculpa de que “nos últimos 16 anos”, blábláblá, ainda. Botem nos últimos 18, agora. E daqui a dois anos, nos últimos 20. O tempo passa e não vejo políticas públicas, não vejo um visionário que pense grande, pra frente, objetivamente e com idéias arrojadas para tirar as artes baianas do fosso que eles mesmos estão ajudando a cavar, cada vez com mais evidência.

Ricardo Castro é uma ilha. E eu já sei por quem dobram os sinos.


GVT.

sábado, novembro 08, 2008

A dança se utiliza da ação para chegar ao movimento.
O teatro se utiliza do movimento para chegar à ação.

...

Mahler, OSESP e a anti-Bahia

Gustav Mahler é um dos meus compositores preferidos. Rechaçado por alguns radicais que tacham suas composições sinfônicas de irregulares, Mahler veio bagunçar o coreto restabelecido por Brahms, numa reação ao wagnerismo que assolava a Europa.

Pela via clássica, Brahms buscava as antigas estruturas, pela via filosófica, Nietzsche combatia o pessimismo, o catolicismo, o anti-semitismo e o misticismo exacerbado de Wagner, buscando antídotos a algo que se agigantava aos poucos e que culminaria, no povo germânico, em algo não muito bom para o século XX. Mas isso são outros quinhentos...

Voltemos a Mahler. Mesmo de sangue judeu, Mahler continuou sua reverência a Wagner, mas trouxe um molho especial à sua música, que misturava o popular com o cerebral, o militar com o telúrico, sua música representava a crise dos impérios, o ruir de século XIX, a dissolução de verdades que pareciam dominar o mundo e sucumbiriam com a primeira grande guerra.
Sua primeira sinfonia em ré maior, apelidada Titã, já revela o compositor que criaria algumas das mais belas, estranhas e marcantes melodias do século passado. Destaque para o terceiro movimento, onde a canção popular Bruder Martin (versão alemã do Frère Jacques) começa a levar-nos a um mundo sombrio – num solo de contrabaixo – e que vai, de forma genial, descambar para uma música de cabaré, com naipes de metal soando como numa big band. O popular como inspiração. Como princípio e meio. E a arte como fim.

A OSESP, sob a batuta de John Neschling, soube traduzir muito bem este espírito, e merece aplausos por conseguir tocar este compositor difícil e complexo, cuja obra pode sofrer de certa miopia por conta de caretices. Mahler sempre buscou o popular, buscou ser popular – em sua medida – e dialogou em seus lieds e sinfonias (a obra dele é praticamente dividida entre essas duas formas) com melodias folclóricas, com poemas folclóricos de vários continentes (ele não era um nacionalista estúpido), como também assim o fizeram quase todos os compositores eruditos, que de eruditos não tinham quase nada – boêmios, festeiros e sem aquela pompa digna dos acadêmicos que se seguram nisso para ter respeitabilidade, pois não passam de carreiristas sem talento, em sua maioria.

Penso que o artista deva transubstanciar a realidade que o cerca. A arte começa onde acaba a vida. É naquele ponto onde a criação se ilumina e transcende o real, o palpável, que vemos brotar a obra particular de um mundo fantástico, onírico, espelho retorcido de uma realidade dura, metamorfose efusiva de uma vida morna.

Por motivos que não quero perscrutar, uma histeria generalizada tomou conta da nossa terra em busca de raízes, de identidade, um desespero em se apegar ao passado, em categorizar, delimitar e dividir a sociedade. Buscamos uma legitimidade que nunca existiu, e vemos a todo instante uma segregação pensada para encher o bolso dos que organizam congressos, movimentos, associações e grupos artísticos que – ao contrário do nosso querido Mahler, se apegam sofregamente ao que de mais real existe para eles, num equívoco cultural imenso, para se fortalecer – empobrecendo a linguagem, a obra, a arte.

Pelo menos, John Neschling não precisou dizer como os aspectos de uma música estrangeira seriam incorporados ao universo da Bahia, dos artistas e dos espectadores. E nem precisou esclarecer como a sinfonia pretendia exercer impacto e diferenciação no contexto soteropolitano. E trouxe um pouco de anti-Bahia para aqueles que, como eu, ainda acreditam na arte como algo universal, sem fronteiras, e que só nos faz crescer ao nos fazer apreciar o diferente, o novo e o inusitado.

Palmas para a OSESP, que trouxe um Mahler bem executado e com o molho na medida certa. Fico até curioso em saber se a levantada dos metais, em partes pontuais da obra, era algo previsto ou invenção da orquestra. Ficou bem interessante.

Palmas aos sucessivos governos de São Paulo que legitimam a arte mais complexa, subvencionam a pesquisa – ao contrário de alguns estados que questionam a existência de núcleos de criação artística, apontam pretensos favorecidos, pulverizam verbas numa estúpida reparação não sei de quê –, e criam novas salas, novos espaços, pesquisa e dignidade, trazendo para o Brasil prêmios como os dois Diapason D´Or (um dos três maiores prêmios de música clássica do mundo) que a OSESP ganhou pelas suas gravações dos Choros de Villa-Lobos.

Um povo só cresce se avança, se olha pra frente, se estuda e se aprimora. Uma sociedade que louva seu primitivismo e faz dele a mola-propulsora de sua cultura e de sua arte, acaba por se enredar numa trágica caricatura de si mesma. O popular é o que existe, o que emana, é nossa vida, nosso dia-a-dia, nosso jeito de ser. O popular é nossa essência misturada, inautêntica e forte. E além disso, somos o que? Apontamos pra onde? Ficaremos sempre passeando entre a Casa Grande e Senzala?

Não há maior opressão do que segregar legitimando a diferença.
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pode parecer bobagem...

... Mas com um certo retardo, publico aqui o parecer da comissão do edital que participamos e não ficamos entre os três selecionados e entre os quatro suplentes:

O desenvolvimento do projeto nao esclarece as opções esteticas que farão parte da finalização do trabalho. Também omite como os aspectos de uma dramaturgia estrangeira serão incorporados ao universo da Bahia, dos artistas e dos espectadores. Não esclarece como o texto pretende exercer impacto e diferenciação no contexto soteropolitano.

Só pra lembrar, o projeto seria a montagem de Animais noturnos, peça de Juan Mayorga, autor renomado e premiado na Europa. Seria a primeira montagem de um texto dele no Brasil, bem como – através da chancela e apoio do Instituto Cervantes – proporcionaríamos a primeira vinda dele ao Brasil, para falar de sua obra aqui em Salvador. Sob minha direção, o projeto contava com o seguinte elenco: Carlos Betão, Evelin Buchegger, Marcelo Praddo e Jussilene Santana.

A comissão de seleção, como já havia dito, foi composta por Ana Lúcia Oliveira Paolilo, Cláudio Cajaiba e Jorge Vermelho, com o acompanhamento de Ney Wendell, diretor de Teatro da FUNCEB.

terça-feira, novembro 04, 2008

segunda-feira, outubro 20, 2008

meia-entrada, meia-sola, meia-boca


A atual mentalidade dos gestores da cultura é pulverizar as verbas. Com isso, os profissionais ganham menos, ficam menos tempo em cartaz e fazem trabalhos meia-sola, com claro resultado meia-boca. Mas em iniciativas vinculadas ao governo não pagamos meia-entrada.

Existem milhares de pessoas, em Salvador, que gastam inteiramente seu dinheiro em restaurantes caros, em lojas caras. Mas espertamente falsificam a carteira de estudante pra pagar pela metade o trabalho de um artista. E acham correto, pois no Brasil só é corrupta a ação do outro, a nossa é esperteza.

No Circuito Sala de Arte, o artista paga meia-entrada. Em vários teatros de Salvador, também. Mas no Teatro Castro Alves, artista não paga meia-entrada. No Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia, feito com dinheiro da Caixa Econômica Federal, com o Fundo de Cultura do Governo Estadual, e com co-patrocínio do Banco do Brasil e da FUNARTE (Ministério da Cultura), artista também não paga meia-entrada.

A atual mentalidade dos gestores da cultura impõe que os artistas façam um trabalho meia-sola, com um resultado meia-boca, mas o prejuízo que as artes estão tendo é inteiro. Total. Completo.


E disse Marcelo Praddo:

"A obrigação de pôr a cultura ao alcance de todos teve muitas vezes o indesejável efeito do desaparecimento da alta cultura, minoritária pela complexidade de seus códigos, em favor de um amálgama no qual tudo cabe".

Calma, Marcelo Praddo não disse isso. Ele apenas me disse que saiu numa revista semanal esta frase de Mario Vargas Llosa, escritor peruano. E Mario Vargas Llosa não estava se referindo à atual gestão da cultura na Bahia. Ou estava?

Aproveito para citar uma frase anônima que li certa vez:

"Enquanto certos procedimentos culturais (estéticos e políticos) são rechaçados e criticados em outros lugares do mundo, na Bahia eles são utilizados como novidades revolucionárias."

sexta-feira, outubro 10, 2008

Nilda Spencer sai de cena...


Lembro da delicadeza de Nilda.
O pretenso veneno de sua personagem no filme Eu, tu, eles era rodeado de delicadeza. Um de seus últimos trabalhos, Lábios que beijei, era todo de uma delicadeza com Wilson Melo, seu parceiro de cena, com o público, com o sensível texto de Paulo Henrique Alcântara, que vi sendo germinado nas aulas de dramaturgia de Cleise Mendes. Que, por sinal, vi pela última vez em cena recitando poesias de Florbela Espanca, junto com sua filha, Elisa Mendes, Teresa Araújo e; Nilda Spencer.

Ainda um adolescente, fiz a assistência de meu pai neste espetáculo, e pude entrar em contato com algumas das minhas referências no mundo do teatro baiano; e me encantava estar naquele universo, com aquelas mulheres.

Nilda talvez seja o símbolo da guinada que o teatro baiano tentou dar, no final da década de 50. Um projeto fantasticamente maluco de Edgar Santos tentava trazer a vanguarda européia para dialogar com a Bahia através da criação da Escola de Teatro, de Dança e de Música da Universidade Federal da Bahia.

Nilda se formou na primeira turma da Escola de Teatro, e o projeto de profissionalização via, naquele momento, uma possibilidade de Salvador ser um centro de referência. As idas e vindas, ao longo dos anos de mudanças de poder, de diretores, de reitores e de reformas fizeram a Escola de Teatro balançar, pra um lado e pra outro, mas a carreira de Nilda enquanto mulher de teatro se tornou inabalável.

Foi atriz na época que ser atriz era ser puta. Foi atriz na época que ser atriz era subversivo, foi atriz na época que ser atriz já não precisava ser.

Lembro uma vez, no Pelourinho, onde estava numa mesa de bar com Nilda. A sua grande preocupação era que só poderia tomar um uísque, pois voltaria dirigindo pra casa. E ria. E falava putaria. E brincava. E vivia. Tudo com a mais exuberante delicadeza.

Um artista não morre. Sai de cena. Escrevo isso não para ser poético, sensível, delicado como ela. Mas pelo simples fato de que um verdadeiro artista deixa em nossa memória, marcada, aquela presença no palco, aquela imagem na tela. Enquanto houver lembrança, a atriz está viva.

Nilda sai de cena, e eu fico aqui, caladinho, segurando a porra do choro – e Nilda daria tanta risada disso que falei... – aplaudindo sozinho o final de seu espetáculo.

GVT.


sexta-feira, outubro 03, 2008

Direto do túnel do tempo...

Escrevi este artigo em agosto de 2007, para ser publicado, o que não ocorreu, na ocasião. Como, além do fato das coisas não terem melhorado, se anunciam novas questões mais preocupantes ainda na gestão da cultura baiana, resolvi colocar o artigo aqui no blog, local onde não dependo de veleidades, preferências e tendências.

REINALDO MAIA E A DEMOCRACIA NA CULTURA BAIANA

Dia 20 de agosto, no projeto Fala Vila, o convidado da noite foi Reinaldo Maia, diretor e dramaturgo, um dos mentores do Arte contra a barbárie, movimento paulista que – numa reação à falta de uma efetiva política pública para o teatro em São Paulo – tornou-se referência e possibilitou que se criasse a Lei de Fomento do Município de São Paulo. A lei foi aprovada na gestão de Marta Suplicy (PT) e garante uma verba anual para cerca de 30 grupos, que apresentam seus projetos e são julgados de acordo com critérios escolhidos pelos próprios artistas.

Convidado numa articulação do Vila com a Fundação Cultural do Estado da Bahia, Reinaldo Maia discorreu sobre arte e política com a desenvoltura de quem batalhou e obteve êxitos importantes para o teatro em sua cidade.

Curiosamente, boa parte de seu pensamento era diametralmente oposto à atual filosofia vigente na FUNCEB, numa clara lição de democracia – por parte dos gestores da cultura baiana – que merece ser aplaudida.

O diretor e dramaturgo, também componente do grupo Folias d´Arte, foi bastante enfático quanto a questões de pulverização (democratização?) da verba e contrapartida social, dois carros-chefe da FUNCEB, bem como questões relacionadas à verba ser dinheiro público.

Reinaldo Maia quis deixar bem claro que ele era um artista, e que não era função dele fazer assistência social, distribuindo ingressos gratuitos e fazendo oficinas nas comunidades carentes e periferias, dois claros exemplos do que a política atual quer empurrar goela abaixo dos artistas baianos. Falou que estes eram papéis do governo, que a contrapartida oferecida por ele era seu trabalho, com qualidade e postura crítica, já que arte, segundo ele, eu e alguns mais pensamos, é uma ferramenta de discussão do homem e da sociedade e cumpre seu papel enquanto arte (e é assim que a arte tem seu valor intocado nas nações mais avançadas).

Tocando em assuntos como sentimento de culpa da classe média, proselitismo e esmola, o convidado da noite, sem nenhuma intenção direta de atacar a atual gestão baiana, mostrou-se bastante irritado com a transferência de responsabilidade do governo, deixando bem claro que para ele as iniciativas pontuais de distribuição de convites e oficinas não são inclusões sociais, são pontuais e não efetivas, e que não compete a ele pensar isso. Não bastasse ter que tentar sobreviver com a pouca verba, ainda incluir programas sociais paralelos, obviamente não-remunerados e que ainda ocasionam gastos para o artista. Tanto de tempo quanto de verba.

Quanto à questão do dinheiro público, mais uma vez ele chamou a atenção para os equívocos referentes às contrapartidas. Questionou porque que a sociedade não cobrava da FORD, que veio se estabelecer aqui sem pagar determinados impostos durante dez anos, carros gratuitos para a população carente. Ou porque o perdão da dívida de indústrias e agronegócios não era retribuído em ações sociais e distribuição de produtos e estoques. Como ele mesmo questionou, parece que o teatro, por ser mais desfavorecido, fica como massa de manobra para o proselitismo e assistencialismo do governo.

Indignado, pediu desculpa – ao final da noite – pela sua exaltação, mas ressaltou que a direita paulista vinha pressionando os artistas com as questões acima levantadas, chamando-os de privilegiados; ao que ele respondeu que o mérito artístico, pra além de ser discutível, era determinante para a distribuição coerente da verba pública. Chamou a atenção para um inútil pensamento de distribuição de empregos nas artes, como se a pulverização das verbas fosse resolver problemas de desemprego, e ressaltou a questão de que com a verba esfacelada, quem perdia era a qualidade do trabalho artístico, que, segundo ele, era o que menos importava à direita paulista, mais interessada em ganhar votos tirando o pouco de quem já não tem muito, leia-se; os artistas.

O mais curioso é que todo o pensamento da direita paulista, que ele tanto criticou, é muito afinado com o que vem se pensando na atual gestão cultural da Bahia.
Será que a esquerda, hoje em dia, serve apenas para ultrapassagem?

terça-feira, setembro 30, 2008

arte contemporânea II (ou como diria Noel; com que roupa eu vou?)


Pequeno diálogo ao fim de outro espetáculo:

- Super contemporâneos aqueles figurinos de época...

- A onda agora é montar peças históricas com figurino contemporâneo! Montar peças históricas com figurino de época é coisa do século XIX, início do século XX...

- E antes do século XIX?

- Montava-se a peça histórica com figurinos contemporâneos.

- Ah, tá. (Pausa reflexiva). Ih, perdi o bonde...

quinta-feira, setembro 18, 2008

Em tempos de eleição...

O ANALFABETO POLÍTICO

O pior analfabeto
É o analfabeto político,
Ele não ouve, não fala,
Nem participa dos acontecimentos políticos.
Ele não sabe que o custo da vida,
O preço do feijão, do peixe, da farinha,
Do aluguel, do sapato e do remédio
Dependem das decisões políticas.
O analfabeto político
É tão burro que se orgulha
E estufa o peito dizendo
Que odeia a política.
Não sabe o imbecil que, da sua ignorância política
Nasce a prostituta, o menor abandonado,
E o pior de todos os bandidos,
Que é o político vigarista,
Pilantra, corrupto e lacaio
Das empresas nacionais e multinacionais.

Bertolt Brecht.

quarta-feira, setembro 10, 2008

Esclarecimento

Devido a alguns emails que recebi e perguntas feitas por algumas pessoas próximas, sempre com as perguntas “vocês botaram projeto no edital da FUNCEB” ou “por que o Teatro NU não botou projeto no edital da FUNCEB”, resolvi esclarecer publicamente o ocorrido.

O Teatro NU colocou, sim, um projeto no edital da Fundação Cultural do Estado da Bahia. Tratava-se da montagem de Animais noturnos, peça de Juan Mayorga, autor renomado e premiado na Europa. Seria a primeira montagem de um texto dele no Brasil, bem como – através da chancela e apoio do Instituto Cervantes – proporcionaríamos a primeira vinda dele ao Brasil, para falar de sua obra aqui em Salvador. Sob minha direção, o projeto contava com o seguinte elenco: Carlos Betão, Evelin Buchegger, Marcelo Praddo e Jussilene Santana.

Concorremos na categoria de 60mil, e não ficamos entre os três aprovados e nem, tampouco, entre os quatro suplentes.

Meu nome estava em outro projeto que também não interessou à comissão do edital. Tratava-se da comemoração de 20 anos de carreira de Carlos Betão. A convite do próprio, que resolveu encampar um projeto pessoal. A idéia seria transpor, pela primeira vez, a obra de João Ubaldo Ribeiro Sargento Getúlio, para o palco. Esta obra foi significativa da literatura brasileira e projetou o autor baiano, tendo sido publicada em vários países e sido filmada com Lima Duarte no papel principal.

O projeto concorreu na categoria de 30mil e não ficou entre os quatro aprovados e nem, tampouco, entre os oito suplentes também.

A comissão de seleção foi composta por Ana Lúcia Oliveira Paolilo, Cláudio Cajaiba e Jorge Vermelho, com o acompanhamento de Ney Wendell, diretor de Teatro da FUNCEB.

Vale ressaltar, também, que inscrevemos o espetáculo Os javalis no Festival Latino-Americano de Teatro da Bahia e no Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia, e também não fomos selecionados pra nenhum dos dois.

É isso.

GVT.

sábado, setembro 06, 2008

TRÊS CENAS BAIANAS

Essas três cenas abaixo, escritas para um espetáculo comemorativo dos dez anos do CEDECA (Centro de Defesa da Criança e do Adolescente), ficaram esquecidas no meu computador, tendo servido apenas ao espetáculo que dirigi no Teatro Vila Velha.
Na atual conjuntura soteropolitana, onde a violência se faz mais presente do que nunca e cresce junto com a desenfreada população, acabei por sentir a vontade de "ressuscitar" essas cenas, numa tentativa de dialogar com o momento estranho que nossa cidade vive.
Vale lembrar que as duas histórias, entrecruzadas nos diálogos, foram fruto de uma pesquisa nos arquivos do CEDECA, relatos de uma guerra do homem com homem, que não acaba nunca - parodiando o título de um espetáculo do Bando de Teatro Olodum...

CENA I

I - CENA DAS MÃES

M1- E ele só estava voltando pra casa...

M2- Sempre confiei nele, afinal, era meu marido...

M1- Eu juro que ele nunca teve entrada na polícia...

M2- Não esperava entrar em casa e ver o que eu vi...

M1- Nunca vi fazer desordem...

M2- A cama toda desarrumada...

M1- Calma moço, foi assim...

M2- Comecei a me tremer toda...

M1- Era um domingo, e ele sempre saía de casa com os amiguinhos dele... era bom rapaz, isso eu posso garantir... foi pra uma festa lá no clube...

M2- Ele bebia demais, eu admito, mas sempre tratou a gente com muito carinho... eu não ia ouvir o que as vizinhas estavam dizendo, sabe como é esse povo... eu sei que eu confiei demais...

M1- Nunca foi de arruaça, eu posso garantir pro senhor, ele queria ser advogado, trabalhava vendendo cuscuz na rua, mas sempre estava cedo em casa. Olha, eu juro pro senhor que ele nunca foi de ficar até tarde na rua, pelo contrário, voltava cedo pra trazer o pão. Isso quando ele vendia alguma coisa, claro né, o senhor sabe como tá difícil vender qualquer negócio hoje em dia, o povo não tem dinheiro pra comprar e a gente fica sem dinheiro pra comer... ah!, mas digo ao senhor que ele nunca roubou, nem ele nem os coleguinhas...

M2- Era motorista de ônibus, o desgraçado. A gente se juntou faz dois anos e ele até brincava que os peitinhos dela estavam crescendo e eu achando que era carinho de pai, sei lá, ele dizia que se sentia pai, comprava queimado pra ela, muita roupinha... ah!, engraçado que as roupas que ele comprava eram sempre curtinhas, sainha, topizinho, e eu nem me apercebia... até achava bonito quando ele botava a menina no colo...

M1- Nesse dia ele até me disse: “ó, mainha, esse trocado que eu peguei não é muito não, se der eu até trago o pão pra senhora”. Os meninos até esculhambavam com ele, nesse dia mesmo, ficaram dizendo que iam tomar tudo de cerveja, mas assim na minha frente, sabe, moço, foi coisa de perturbação, eles não eram dessas coisas não, meu menino sempre foi respeitador... o outro lá, que deus me perdoe, é que estava endiabrado... homem com arma se acha homem duas vezes, ainda mais quando é da polícia, você sabe, né!? Eles abusam mesmo...

M2- Mas nunca imaginei que ele abusasse dela... quando bebia, ele sumia de casa, só voltava no outro dia, chegou até a ir pro trabalho direto. Ele às vezes trocava turno, dizia que era pedido do chefe e a gente não se encontrava em casa, acho que eram nessas horas que ele, sei lá, prefiro não falar... desculpa moço...

M1- E foi assim, o menino voltava da rua, só bateu boca com o motorista, coisa de parar fora do ponto, menino o senhor sabe, né?, tudo perturbado, estava com os coleguinhas, parece que os policias não gostaram...

M2- Eu entrei em casa e vi tudo escuro, já era hora da minha menina ter chegado...

M1- O polícia desceu junto com os meninos, o motorista parou...

M2- Eu entrei no quarto ouvindo aquele chorinho...

M1- Eu soube que teve até gritaria...

M2- E os dois lá...

M1- Foi um tiro só...

M2- Tinha que ser com ela!?

M1- E foi isso...

M2- E foi...

M1- E...

M2- Desculpa, moço...

CENA II

II - CENA DOS AGRESSORES

H1- O senhor antes de tudo me respeite...

H2- Sim, calma, eu só quero saber a verdade...

H1- Moleque, rapaz, uns vagabundo...

H2- Me fale da história, meu senhor!

H1- Era feriado, eu já disse...

H2- O senhor tinha bebido...

H1- Porra, deixa eu contar!

H2- Desculpa.

H1- Tomei umas cervejas, sim, era feriado, porra, eu tava folgando...

H2- Se o senhor estava folgando, por que a arma?

H1- Sei lá, a gente é polícia, tem que tá preparado pra qualquer coisa!

H2- Pra matar um menino!?

H1- Já disse pro senhor que eu não queria matar, foi só pra dar um susto!

H2- E mirou no menino!?

H1- O senhor que ouvir a porra da história ou quer contar a sua!? Eles estavam perturbando o motorista, queriam que parasse fora do ponto, vinham cantando um pagode alto no fundo do carro, eu e meu colega ficamos logo perturbados, aquela zuada, final de noite... e aí os meninos, de repente, estavam batendo boca com o motorista. Aí desceram, xingaram o motorista e rumaram uma pedra no ônibus...

H2- Pegou?

H1- No ônibus?

H2- Sim!?

H1- Eu sei que eu desci do ônibus, o motor mesmo pediu, parou o carro e atirei...

H2- Em direção ao menino...

H1- Só pra assustar, porra!

H2- E a pedra, pegou no ônibus?

H1- Foi só pra assustar!

H2- Pegou no ônibus? Eu te fiz uma pergunta!

H1- Porra, não pegou não...

H2- Então por que?

H1- Tinha que manter a ordem...

H2- Atirando...

H1- O senhor está me deixando nervoso...

H2- Eu só quero entender...

H1- Porra, vá se lenhar!

H2- O senhor, antes de tudo, me respeite!

H1- Mas eu só queria entender...

H2- O senhor me deixe em paz...

H1- Mas sua mulher nunca desconfiou?

H2- Minha mulher trabalhava muito...

H1- Sim, vocês raramente se encontravam em casa, o senhor já disse... o senhor gostava de beber, não?

H2- Gosto.

H1- O senhor batia nela?

H2- Porra, mulher chata, você sabe, né...

H1- Ela dizia que o senhor tratava a menina muito bem... bem até demais, não acha?

H2- A patroa liberou ela mais cedo...

H1- Sim, é isso mesmo que eu preciso que o senhor conte...

H2- Porra, a desgraçada sempre se atrasava, eu até desconfiava da demora, brigava com ela e tudo... porra, a menina dando sopa... ela era vagabunda, isso eu garanto ao senhor!

H1- Sua enteada?

H2- Ela mesmo, nigrinha... botava uns shorts curtos só pra me tentar...

H1- O senhor acha então que a culpa é dela?

H2- Eu era cuidadoso, porra...

H1- E o choro?

H2- Era medo da mãe, dengo... eu sou inocente, meu senhor...

H1- 12 anos, não é isso?

H2- Fez treze agora...

H1- Durante quanto tempo?

H2- Os peitinhos dela começaram a crescer... essas meninas se desenvolvem cedo... a menina lá, dando sopa...

H1- O senhor confirma?

H2- Porra, minha mulher não...

H1- O senhor pode confirmar tudo?

H2- O senhor quer calar a boca!

H1- Basta.

CENA III

III - CENA DAS CRIANÇAS

C1- Não vou dizer nada não...

C2- Mas eu até tentei gritar!

C1- Não teve nada não, moço...

C2- Era só uma dorzinha...

C1- Eu tentei reagir...

C2- Lembrei de minha mãe...

C1- Aquela coisa estranha na gente...

C2- Depois ficou tudo escuro...

Pausa.

C1 e C2- Era um pouco cedo ainda...

C1- Tinha sido liberada do colégio e não tinha pra onde ir...

C2- Tava com meus colegas, todos prontos, era Domingo, uma animação retada...

C1- Eu preferia não voltar pra casa, mas minhas colegas tavam tudo ocupadas, uma tinha que ajudar a mãe, a outra queria fazer a tarefa sozinha e também, meu padrasto, àquela hora, não tinha voltado pra casa, eu tinha certeza... ah? Sei lá, preferia não encontrar com ele...

C2- A gente se encontrou cedo pra dar tempo de pegar um buzu vazio, mainha até achou melhor, “evitava confusão!”. O clube também ia ficar entupido, já tava até imaginando...

C1- O jeito foi voltar pra casa. Eu juro que eu só pensava em fazer logo a tarefa... poxa, eu não queria nada... quer dizer não tava querendo nada além do dever...

C1 e C2- O problema foi a volta...

C2- A porra do carro tava cheio, mesmo assim a gente disfarçou a agonia, cantamos um pagodinho e tava até seguro, na volta, tinha policial e as porra no ônibus, pensei logo. Sei lá, Domingo de noite fica um bocado de vagabundo por aí, tirando onda, sei lá...

C1- A casa vazia, pensei logo. Fiquei menos tensa... ah!, sei lá, sozinha eu podia estudar, não imaginava que ele... é isso... pudesse ter voltado do trabalho, ou não tivesse ido trabalhar, sei lá, ele não me disse nada – e nem precisava...

C2- Pô, eu só pedi pro motor parar fora do ponto e ele já veio logo me xingando...

C1- ...me pegando... não... aquela maldita cachaça! Bem que minha mãe já tinha dito que ia jogar esse negócio fora...

C2- Quem tinha bebido era ele... tá, eu só tomei uns goles... o trocado nem sobrou pro pão. Também, era tão pouco...

C1- Tão pouco pra minha mãe chegar... mas dava tempo...

C2- Desci do ônibus, o buzu andou um pouco e parou de novo. Eu estranhei, mas continuei andando. Meus colegas de repente gritaram e eu olhei pra trás pra ver o que era, vi os policiais, achei que era bandido e corri, ouvi uma zoada e...

C1- Ele me pegou, eu não queria, não entendo porquê...

C2- Passou isso tudo pela minha cabeça...

C1- E aquela coisa estranha acontecendo...

C2- Fechei os olhos...

C1- Uma voz bem longe...

Pausa.

C2- Não vou dizer nada não...

C1- Mas eu até tentei gritar!

C2- Não teve nada não, moço...

C1- Era só uma dorzinha...

C2- Eu tentei reagir...

C1- Lembrei de minha mãe...

C2- Aquela coisa estranha na gente...

C1- Depois ficou tudo escuro...

quinta-feira, agosto 28, 2008

teatro nu com a minha música...

Depois da surpresa de ter ganho o III Festival de Música da Educadora FM, com a canção A viagem de Firmino, e ter ganho o 2ºlugar no Festival de Música da Bahia, edição 2006, com a música Se você for da Bahia, parceria minha com Ivan Huol, tive a felicidade de ter uma música gravada no CD de Cláudia Cunha. Mar do norte, parceria minha com Ivan Bastos, pode ser ouvida no www.myspace.com/claudiacunha, num arranjo feito pelo próprio; belo arranjo, por sinal.
Dois Ivans, dois parceiros. Huol, responsável principal pelos meus êxitos nos festivais (meu padrinho!?), e Bastos, conhecido no meio musical como "professor". Duas referências absolutas pra mim, na minha adolescência, e que tive a honra de ter, depois, como parceiros. Honra essa agora transformada na bela gravação de Cláudia Cunha.
É isso. Apenas quis dividir minha felicidade e aproveitar pra homenagear meus parceiros e minha cara cantora.

GVT.

segunda-feira, agosto 18, 2008

Na época de meu pai...

Na época de meu pai, Salvador era uma cidade que apontava para o futuro incensando seu passado. A geração anterior à dele havia despetalado para o mundo uma cultura típica, rica e festeira, nas músicas de Dorival Caymmi, nos romances de Jorge Amado, nas pinturas de Carybé e nas fotografias de Pierre Verger (estes dois últimos adotando a Bahia como sua terra e tendo sido adotados por ela), pra falar apenas de alguns que se foram. Mas era uma geração que também denunciava e ousava.

Nas canções de Caymmi, a pobreza misturada ao orgulho e à força do pescador, as primeiras dissonâncias; nos romances de Jorge Amado, a verve comunista que tanto o projetou e que fez sua obra ser mais do que o simples cartão postal que alguns o acusam. E toda uma obra de uma geração que, ligada às novidades que surgiam, dialogava com seu tempo e seu espaço.
Na época de meu pai, um jovem temporão havia chegado ao Rio de Janeiro, capital do país, com um jeito diferente de tocar violão e cantar, vindo lá de Juazeiro. E João Gilberto havia aberto a cabeça de toda uma geração baiana que iria revolucionar o país.

Na época de meu pai, as castas sociais eram misturadas em rodas de capoeira, nas festas de largo, no samba-de-roda do Mercado Modelo, no cineclube de Walter da Silveira, na Escola de Teatro da UFBA, nos seminários de música da mesma universidade que havia sido acrescida de novos cursos, implantados por Edgar Santos, que trouxe a Salvador a vanguarda do mundo.
Na época de meu pai, ele pôde ver Yanka Rudzka, Gianni Ratto, Koelreuter, Lina Bo Bardi e tantos outros trazerem uma linguagem nova que se mesclava ao som dos atabaques, ao corpo redondo das baianas, à expressão sofrida, mas gozadora, de um povo. E dessa mistura puderam surgir Glauber Rocha, Gilberto Gil, João Ubaldo Ribeiro, Caetano Veloso, Muniz Sodré e toda uma geração – a geração de meu pai – que mexeu com as estruturas de uma cidade adormecida em seu pensamento e visão.

Mas na época de meu pai, todos sabiam o limite entre o popular e o erudito, entre o amador e o profissional, entre o capitalismo e a arte. Até porque era uma geração que, apontando para o futuro, vislumbrava uma cidade cujo seu potencial artístico e cultural pudesse transformá-la numa referência mundial para a dança, a arquitetura, o teatro, o cinema, a música.
Outras épocas vieram, e a migração para o sul-maravilha, a ditadura, a direita no poder e (pasmem) agora a esquerda (heim?) no poder, dentre vários outros fatores, fizeram com que Salvador nunca deixasse de ser uma província. Tudo isso fez de nossa cidade um lugar de artistas mendicantes, sem espaço e sem reconhecimento; um lugar onde o folclore é munição do estado para fazer a ação mais preconceituosa que existe, que é valorizar o que há de genuíno e exótico como forma de prender um povo, de forma violenta, à sua decorrente falta de amplitude de visão e conhecimento; um lugar onde uma arquitetura de péssimo gosto foi engolindo as belezas de nossas prédios antigos, um crime que já havia se iniciado, por exemplo, quando da demolição da nossa igreja da Sé – pois é, temos uma Praça da Sé sem uma igreja da Sé – pra passagem de uma linha de bonde, e chega agora a proporções de irresponsabilidade tal que até as pedras portuguesas, os casarões históricos e nossa orla são alvos de especulação imobiliária e estupidez da administração pública.

Salvador se tornou um projeto falido. Não se pensou num processo de urbanização que dialogasse com o contemporâneo sem tirar os olhos do passado. Pelo contrário, a especulação imobiliária transformou nossa cidade numa mistura de Miami com Favela da Rocinha, espremidos que estamos por uma cidade que transita entre a aparência eterna de “invasão” com a de prédios das alturas, estéticas e localizações mais diversas, quase que em sua maioria evitando se pensar num diálogo com nossas vistas, nossa história, nossa cara. Os seguidos administradores públicos, para além de abrirem as pernas para a descaracterização da cidade, nunca olharam pra um de seus maiores bens, seus artistas, que ano após ano migram da cidade, ou se enfiam em universidades para ganhar a vida, frustrados por não ter havido um projeto, um plano, talvez uma extensão da abortada idéia de Edgar Santos e tantos outros da época, que sabiam dos valores existentes nesta cidade.

Hoje parece não ser mais a época de meu pai. Um homem que viveu a pujança da Bahia dos anos cinqüenta, sessenta e setenta, hoje se tornou um dos maiores poetas do mundo, uma figura culturalmente importantíssima, mas que, como as pedras portuguesas, parece estar sendo arrancado da realidade medíocre da nossa província soteropolitana.

Ele e tantos outros de sua geração bradam contras os crimes realizados à nossa cultura, à nossa arte. Ele é de uma geração que queria e tinha projetos para a cidade, mas que se espremeu entre brados quixotescos.

Enquanto os donos do poder legitimam e valorizam a ignorância, o amadorismo, a burrice e a pobreza da nossa grande massa – por um lado –, e por outro baixam a cabeça para interesses escusos e para uma classe média iletrada e manipulada, Salvador continua deixando de ser a cidade de Caymmi, de Jorge Amado, de Walter Smetak, de Rolf Gelewski, e de alguns grandes homens vivos que, atordoados, assistem à degradação da cidade que arranca seus valores, sua cultura, e planta em seu lugar a mediocridade e o mau-gosto do fim dos tempos...

GVT.

Texto dedicado à geração de Ildásio Tavares, meu pai, e a Dorival Caymmi, que foi encontrar uma outra Bahia por aí...

sábado, agosto 16, 2008

O Teatro e a Olimpíada (1ª parte)


Como não se fala, se vê ou se ouve outra coisa por estes dias parece que não dá mesmo para escapar do óbvio. Mas queria aqui fazer um esforço para pensar na Olimpíada com outros ângulos, relacionando-a com o meu tema ad exaustaum: o Teatro.

Os dois são manifestações culturais surgidas na Grécia Antiga, sabemos. Não vou especular muito sobre a causa de uma ter se tornado um espetáculo de interesse mundial, enquanto a prática do outro se transformou em algo pulverizado, de apoio restritíssimo, que movimenta pouca ou nenhuma publicidade e, causa-consequência, tem importância periférica na atual sociedade de consumo mediática.

Só vou lembrar da conversa que tive com minha amiga, a atriz Adriana Amorim, que está no mestrado do PPGAC investigando sobre as relações entre o teatro e o futebol, ou seja, entre o teatro e uma modalidade esportiva.

Depois que ouvi sua angustiada e legítima exposição sobre a diferença da quantidade de públicos, eu dei meu pitaco sobre o interesse massivo de um, em detrimento do desprezo massivo do outro. Em ordem, eu acho que: Em 1º lugar, no futebol há competição; Em 2º lugar, as regras são claras; 3º lugar, o objetivo final é obvio até para aqueles que não conhecem todas as regras: meter a bola na rede.

Acho que, sim, grosso modo, a competição e a simplicidade das regras explica muita coisa sobre o sucesso numa sociedade de espetáculo (qualquer uma). A simplicidade das regras que faz com que todos acompanhem o fenômeno, a competição que faz com que tomem partidos, irmanados em torcidas que promovem a participação e o engajamento. Não vivemos tempos de reclusão e observação. Não queremos a re-presentação, mas a presentificação, etc.

Em outra direção, lembro que o teatro também já teve suas torcidas. Na Grécia mesmo, as peças eram apresentadas em forma de competição. A maturidade da tragédia grega, por volta de 500 a.C, ocorreu graças a concursos públicos promovidos, anualmente, pela pólis.

Sófocles, autor de Édipo Rei, foi vencedor destes concursos dramáticos 24 vezes. Ésquilo levou 13 coroas de louros para casa (bom, não sei se era este o troféu para o teatro também...) e Eurípedes, de As Bacantes, levou outros cinco. Os números estão lá na História do Teatro, de Nelson de Araújo, e em outros livros. Isso para não falar da competição entre Shakespeare, Marlowe e Ben Johnson, da concorrência entre as diferentes casas de óperas, entre as sopranos, entre as primeiras atrizes. Sim, e entre os intérpretes de Shakespeare!

Quando um público, como o inglês por exemplo, conhecedor de um autor como Shakespeare, acostumado a assistir dezena de peças dele, vê um novo ator desempenhado o clássico papel, este público já tem de antemão algumas regras. O ator tem que ser muito bom para superar todas as expectativas da platéia e superar o desempenho dos outros intérpretes ao lado. É como no salto com vara: tudo mundo prende a respiração porque sabe o que vai acontecer. E respira quando o atleta o surpreende. Isto é competição. Isso mexe com o sangue.

É bem diferente do Brasil, por exemplo, pelo menos em relação a Shakespeare, onde a cada geração surge um eleito incomparável. Puxa vida, eu nem sei explicar como isso acontece... E que fique bem claro que obviamente não é culpa dos atores, que estão fazendo a coisa certa, mostrando seu trabalho, dando as caras, assumindo desafios. Mas que é um sistema provinciano no qual estamos cada vez mais inseridos, isto é.

Vale destacar que há muito tempo 'ser provinciano' não é mais associado apenas ao habitante de uma província real, digo, de uma cidade do interior. Ser provinciano, para a história das mentalidades, é estar limitado às suas fronteiras, sendo incapaz de ver e reconhecer o que há de fora delas. A percepção da realidade é "minha aldeia" e, dentro deste círculo (de variados tamanhos), achar que acontece tudo de mais importante no espaço e no tempo. O sistema midiático, claramente sem memória temporal, apresentando tudo como a "última bolacha do pacote", é reconhecidamente um ambiente provinciano. Lembre-se: para o provinciano só importa o que habita naquela aldeia.

Bom, mas voltando a competição, há muito dela na dramaturgia televisiva. Isso é inegável. Competição que, com certeza, provoca a produção, e - vá lá, sejamos humanos - nossos mais elementares instintos. É bom lembrar que tanto as competições teatrais quanto a Olimpíada quando aconteciam suspendiam as guerras em curso. O Teatro e o Esporte substituiam as competições de verdade. Neles continuamos inimigos, mas de 'mentirinha', sublimando nosso espírito de destruição real. Bom, não sei muito sobre Freud, só o suficiente para dizer com ele que é na sublimação dos instintos que está a base da civilização.

Mas, meu Deus, olha como o texto ficou grande só com a abertura... Incrível. Queria escrever sobre o esporte de elite e sua relação com o teatro de elite (e não, teatro DA elite!!!!). Deixo para uma segunda parte.

Beijing a todos.

quinta-feira, agosto 07, 2008

Confissões de uma africana albina

Todo mundo que freqüenta este blog já está cansado de saber que eu vim de São Caetano. São Caetano o bairro vizinho da Liberdade (liberdade pro Ilê) e não a cidade do sul. Como o povo diz, nasci e me criei em São Caetano (liberdade pra São Caetano).

O que isto significa só Deus e meus amigos é que sabem porque eu mesma não faço idéia. Não! Minto. Faço sim... Faço porque, aos poucos, fui registrando como o meu jeito de ser repercutia ou causava.

Quando eu era pequena, a minha maior diversão era ir para a praia junto com minhas amigas. Domingão em Ondina, porque era rasinho, formava piscina e nossas mães deixavam... Agora, pense: alguém aqui sabe a distância? Por mais cedo que saíssemos de casa – e olhe que a gente se programava desde a véspera, separando o que cada uma ia levar, e etc. – a gente sempre chegava na orla umas 11h, 12h.

Primeira coisa que a gente fazia era escolher tipo uma zona para abrir as toalhas. Geralmente as meninas gostavam de ficar perto do Ondina Apart e eu não tinha muita escolha. Ou melhor: não dava importância para esta discussão. Para mim, tanto fazia. Até porque eu era a pirralha do grupo e não mandava em nada.

Formávamos um pequeno travesseirinho com um montinho de areia e lá íamos esperar o menino do bronzeador passar com aqueles saquinhos amarrados num pau. Lembro como se fosse hoje a sensação em minha pele daquele líquido oleoso e vermelho já quente pelas andadas do vendedor pela praia.

Umas 15h, geralmente a meu pedido, a gente ia para o ponto, pegar de volta o Barra/São Caetano da Transol. Como sempre, eu falava que ia ficar mais tempo, mas não agüentava. Resmungavam elas, enquanto sacudiam a roupa, dizendo que não iam me levar mais.
Como dizer?... Já no ônibus, durante as horas até em casa (depois ainda tínhamos que caminhar uns 20 minutos do ponto até nossa rua) eu sentia um mal estar terrível. O corpo todo latejando. O olho querendo fechar. Alguém aí já botou um tomate para ferver? Já viu como a pelezinha sai?

Geralmente eu faltava aula segunda-feira pela manhã. Não conseguia vestir uma camiseta. Só pelos 12 anos de idade foi que descobri o Caladril. Aos 19, me apresentaram o protetor solar.

Uns dois, três dias depois, as bolhas subiam. Eu e meu irmão gostávamos de pocá-las com uma agulha. Como mainha reclamava, a gente fazia escondido. Os meninos da rua ficavam rindo, mas eu nem ligava. Até que um deles, um dia, falou na minha cara que eu era uma barata descascada.

Eu dei um grito e saí correndo. Cheguei em casa chorando. Mainha, claro, perguntou por que. Eu disse e ela falou que ia reclamar com dona Marieta, a mãe dele. Depois da bronca que obrigou Edson a ficar de castigo, os meninos ficaram cantando uma música inventada que tinha uma barata descascada na letra.

Depois eles esqueceram.

Isso para não lembrar dos shows do Zampiapombo, na Formiga de São Caetano, e de outras histórias que o povo de Zambi vive me pedindo para contar em peça ou num roteiro...

Tem até um projeto meu com Xanda Dumas, infelizmente adiado devido a sua viagem para a França. Os mais radicais me pedem mesmo um pocket show, tipo microfone e banquinho, em protesto pela carestia em que estão submetidas as produções teatrais, mas eu não tenho talento para isso... Sou uma atriz dramática que precisa de toda a parafernália que o teatro moderno inventou para contar suas histórias. Preciso de, sobretudo, outro ator, porque já disse e esta é minha profissão de fé, o teatro nasce com o diálogo. E a arte de dialogar é a que mais me importa.

Por Jussilene Santana

P.s.: Pesquisei na net e não há nenhuma citação para este tema... Se vcs virem depois um projeto assim, já sabem de onde ele saiu...

sábado, agosto 02, 2008

A.rte Con.Tem/por.@neA

Pequeno diálogo ao fim do espetáculo:
- Não entendi nada.
- Mas não é pra entender, é pra sentir.
- Eu sinto muito.
Postado pela mais nova dupla caipira de Salvador Gil e Jussi
"que mexe com minha cabeça e me deixa assim"
Rumos Baneb Cultural

Uma história do Teatro vista da Província - Cap.1

De 500 a.C até meados do século XX, dos gregos aos baianos:
Predominância do teatro dramático, ilusionista, aristotélico. Ou seja, é aquele teatro que defende um lugar à parte da sociedade para contar histórias; Nele há, sobretudo, personagens e texto; E quase que com certeza (mas nem sempre, vide Shakespeare) há cenários e figurinos. Aqui estão a preparação de atores de Stanislavsky, a direção de cenas de Antoine e uns 7 milhões de clássicos da dramaturgia.

De meados do século XX até hoje (ou os 50 anos de nossa contemporaneidade):

Teatro Épico, Bertolt Brecht, alemão
O distanciamento proposto por Brecht promove que um pé do ator fique no teatro ilusionista e o outro fora dele, na sociedade. "Sejamos críticos do que fazemos!". Essa postura abre caminho para teatros políticos de todas as cores. Anos 30/40/50

Teatro da Crueldade, Antonin Artaud, francês
Sim, ele viveu antes de Brecht, mas seus escritos só foram apropriados no discurso da contracultura, nos anos 60/70. Deu o mais sonoro não ao drama burguês, ilusionista, e este urro continua sendo ouvido e ecoado até hoje. Rejeita a supremacia da palavra, do texto. Prega a 'volta' do corpo. É o pai-avô da performance. Como nunca saiu da Europa, descobre os rituais do Oriente nas feiras internacionais que visitam Paris.

Teatro Pobre, Jerzy Grotowsky, polonês
Escreve um livro que, traduzido, será a Bíblia de gerações de atores do Terceiro Mundo por motivos óbvios: "Não precisamos nos preocupar com nenhum adereço, porque só o ator é essencial". Depois, afasta-se inclusive disto. E afirma que nem o teatro o interessa mais, mas sim o contato quase santo entre as pessoas. Vide seu último livro: Dia Santo. Anos 50/60/70.

Antropologia Teatral, Eugenio Barba, italiano
Como assistente de Grotowsky, de certa forma se apropria de suas propostas. Para ele, o mais importante é o contato entre os atores e as pessoas. Na início da década de 70 faz a pergunta essencial: "O que é um ator quando não se tem um espetáculo?". Daí, inicia a prática do teatro como "baratto culturale", uma troca através de uma montagem com a comunidade, um lugar para o diálogo com as realidades diversas. No final dos anos 70, cria na Dinamarca o ISTA (International School of Theatre Anthropology) onde estuda as bases técnicas do trabalho do ator a partir de um processo comparativo com os vários estilos de interpretação oriental e ocidental. Na prática é uma rede internacional e multi-cultural de performers, atores, estudiosos e acadêmicos do teatro. Tem até um professor de Salvador, Augusto Omolú.

Teatro do Oprimido, Augusto Boal, brasileiro
Após percorrer a história da encenação de Stanislavsky a Brecht e ajudar a criar o Teatro de Arena em SP, Boal sai do país durante a Ditadura Militar para nunca mais voltar (de fato). Conhecido mundialmente por seus exercícios para não-atores, prega: "O teatro deve ser um auxiliar das transformações sociais e formar lideranças nas comunidades rurais e nos subúrbios". No seu método, que lhe valeu uma indicação ao Nobel da Paz em 2007, as técnicas de teatro são usadas abertamente para a conscientização do homem comum no seu cotidiano. Anos 70/80/90/00...

Etnocenologia, Jean Marie-Pradier, francês
Anos 90. Numa perspectiva muito similar à antropologia do teatro, se preocupa com a cena em geral, não mais se limitando às análises dos espetáculos propriamente ditos (ou seja: as peças, as montagens, etc). Tudo e/ou qualquer comportamento humano pode ser espetacular. As cenas da vida cotidiana são espetaculares. Para alguns até espetaculosas... Super-ultra-trans-disciplinar pede ajuda aos universitários da sociologia, da antropologia, da história para analisar seus objetos-sujeitos-objetos. Febre em todos os países de língua francesa e na Bahia.

Anos 00:
Enfim, teatro, ator, personagem e texto hoje são palavras minadas, quase sem sentido, a depender de quem as pronuncia, de quem as ouve... Isso para não falar de platéia, de público.... Na contemporaneidade, aos trancos e barrancos, todas estas correntes (pode-se dizer que são correntes?) estão por aí. Se, grosso modo, nas graduações das escolas de teatro, em quatro anos, consegue-se percorrer (correr) dos gregos ao Boal dramático, com pinceladas de Grotowsky, nas pos-graduações o caminho não é nada linear. Pode-se cair na contemporaneidade de qualquer época. Em qualquer época.

Por Jussilene Santana
junesantana@gmail.com

O poeta está nu

Sempre resisti a mostrar meu lado poeta. Ofício que exerço bem antes da música e do teatro. Meu pai, meu maior crítico, sempre tentou incentivar que eu escrevesse e publicasse poesia. Mas se com música e teatro a coisa já está difícil, cadê o estímulo?

Eis que surge a possibilidade de ter alguns poemas publicados numa edição portuguesa (capa ao lado). A publicação diVersos, poesia e tradução, das Edições Sempre-em-Pé, pretende mapear a poesia mundo afora, além de trazer para Portugal o conhecimento de obras em outras línguas.

Através do convite do editor José Carlos Marques, enviei o que de menos pior eu tinha e lá foram selecionados, por eles, seis poemas. Ou é o começo do fim, ou é o fim do começo? Bem, publiquei. Agora, seja o que as musas quiserem. Abaixo, segue um dos sonetos publicados, que, pela temática, tem mais a ver com um blog chamado Teatro NU, já que aqui não é coluna social da minha vida...

TCHEKOV
A gaivota que voou em cena,
Pousou no ombro do encenador.
De lá voou pra além do bastidor
E foi sumindo, ficando pequena

Até virar saudade. Uma pena,
Apenas, lá no chão, lembrava a dor
De ver morrer também o seu autor
E uma arte que luta com a antena

Da tv, com a tela do cinema...
Mas ressuscita a cada personagem
Que desconstrói e reconstrói a trama.

E vive a arte. Pois não há problema:
O homem sempre busca sua imagem
Buscando no outro aquilo que se ama.

Por Gil Vicente Tavares
gvtavares@uol.com.br

O Teatro e a Adolescência Tardia...

Adolescente não combina com teatro. Calma. Não falo aqui da juventude em si, dos jovens de fato e de idade. Mas daquela pessoa que, se por um lado não se descolou da infância em seus raciocínios, comportamentos e conhecimentos, tem necessidades e desejos de um adulto, bem como a necessidade e o desejo de se parecer com ele (ou negá-lo).

Nesta fase, a “crise da adolescência” traz rebeldia, desatenção, falta de concentração, necessidades sexuais que se embaralham com a necessidade de auto-afirmação, comportamentos inusitados, “depressivos” ou “excitados”, e uma postura de cagar solenemente para a cultura de seu lugar, de seu país, de sua realidade.

Mapeando de forma superficial, vemos aqueles que só pensam em baladas, em ficar com as mulheres nas baladas, curtir festas, eventos, passar ao largo de outra música que não seja a de sua tribo, passar a anos luz de distância de algo que contenha mais do que duas linhas escritas, e consequentemente, nem pensar em teatro.

* * *
Logo o teatro, que na Grécia antiga era recomendado por médicos como remédio para algumas doenças... E não me espanta o fato de estarem usando filmes com este intuito, como pude ler recentemente numa notícia publicada aí na rede. A arte, de uma forma geral, vem suprir a tríade educacional proposta por Platão em sua República (e, que, curiosamente, rechaça o teatro, mas aí são outros quinhentos, entra mimetismo, caverna, é papo pra outra hora).

Diz que ele achava que arte (ele se referia mais à música), filosofia e educação física era a base para formar o cidadão. Com a sensibilidade, subjetividade e fantasia da arte, o raciocínio da filosofia e a saúde física através dos esportes, o homem poderia estar completo em sua formação. O poder da arte, de transpor o homem para um mundo de sonhos, pesadelos, utopias, desastres, desejos e culpas que fujam da mesquinhez do dia-a-dia dão um potencial à arte de formadora do espírito, da alma, do pensamento, do íntimo de cada um; chame-se como quiser essa coisa.

Parece que o "adolescente" não está preparado nem quer isso. Ele não quer sentar pra ler um livro que tire ele do real. O virtual pra ele é o videogueime, a internet e seus acessórios cada vez mais complexos e baratos; celulares, tocadores de mp3, etc. Ficar num teatro, por uma hora e meia, ouvindo um texto? Nem pensar. Ainda mais um texto que não fale do seu cotidiano, que não dialogue com ele diretamente. E acho, mesmo, que essa não é a função da arte.

Pra isso temos jornais, programas de televisão, a própria internet e até mesmo a sala de aula. Discorri mais sobre isso num texto aqui do blog, mais abaixo, que dividi em três partes, falando sobre arte e vida.

* * *
Em Salvador, vivemos um problema crônico de adolescência tardia. Os desejos e preferências de adolescentes de 18 anos são os mesmos de um jovem de 28, de um homem de 38 e de um “coroa” de 48. Evolui-se apenas na idade. Lógico que o trabalho, as referências vão aumentando... Uma lida na revista Veja e já encontramos um sabichão que pode lhe explicar tudo sobre a política atual no Brasil. Uma passada de olho numa revista masculina ou numa citação de livro de auto-ajuda, e encontramos um homem sensível que tenta ver a vida de forma menos estressada e mais lúcida. Ou então encontramos ávidos leitores de best-sellers que conseguem o feito invejável de ler um livro por ano e chamar os outros de iletrados.

Mas no fundo, o soteropolitano de classe média continua indo às mesmas festas do menino de 18, continua tendo os mesmos interesses, as mesmas demandas, a mesma superficialidade da cidade que é boa pra beber e beijar na boca. E ganhar dinheiro, claro (e aí, vamos até Weber, mas é outra história, também...).

Pois os empreendimentos em Salvador estão crescendo e, a cada prédio novo com 4 suítes que vejo com a placa 100% vendido, imagino mais um condomínio de pessoas pra lotar as festas de Sauípe e o Xópim Salvador.

* * *
Há quem diga que esta classe média, que está na faixa etária de 18 a 48, é filha e neta da ditadura. Mas talvez eu vá mais longe. Salvador recebeu os reflexos culturais da última grande monocultura brasileira, a do cacau. E foi uma geração que, ao invés de construir casas de ópera e comprar um piano pro filho estudar, mandava os rebentos para Disney e Miami.

O ciclo do cacau, em sua última fase de pujança, já estava encaixado no padrão do século XX, totalmente capitalista, ligado à indústria cultural e à ascensão estadunidense pós-segunda guerra. Essa influência demorou a chegar um pouco, pois a Bahia vinha já, de muito tempo, como um pólo de referência intelectual.

Tivemos a geração de Jorge Amado, Caymmi, Walter da Silveira e tantos outros, depois a geração de Glauber Rocha, Gilberto Gil e João Ubaldo Ribeiro, e mais uma cacetada de gente boa que é destaque no país e no mundo, mas depois disso, com ditaduras, crise na educação e estreiteza da classe-média, acabamos por viver um esvaziamento de cultura, uma falta de diálogo entre a sociedade e a arte de seu tempo, de seu local, como ferramentas de formação, conscientização e sensibilização do homem em nossa cidade.

Claro que posso registrar aqui os que tentam ser alternativos, mas que não passam muitas vezes de pessoas rasas que passam carnaval em Recife e ouvem Lenine e acham que são o antídoto cultural que nossa terra precisa (mas isso, também, é uma outra história).

* * *
Enfim, a arte está sufocada numa cidade que não dialoga com ela. As tentativas de ida ao teatro são muito mais por uma cobrança interna de fazer programas diferentes e mais “adultos”, do que uma necessidade interna de dialogar com estéticas e conceitos, quando não para acompanhar de perto algum sucesso baiano que vira obrigação de lazer mas que não reflete em nada a relação com o teatro em si.

Não se tem a arte como provocação e estímulo, como válvula de escape e um meio de tirar da secura da vida um pouco de sonho. É desesperador, pois ficamos entre a resistência e a rendição. O artista está cada vez mais desamparado pelo estado, que acha que devemos nos virar na iniciativa privada, correr atrás de patrocínios e públicos. Mas como, se são justamente estes adolescentes tardios que decidem o que apoiar, patrocinar e assistir?

E o capital da cidade circula apenas entre restaurantes, bares, xópins e festas. O deslocamento do teatro, frente à sociedade, e já tratado aqui neste blog em outros artigos, me dá – muitas vezes – aquela sensação de que eu devia desistir, jogar a toalha, ou – seguindo o conselho de uma maioria absoluta que me cerca – me mudar daqui pra um lugar 'menos' "alienado". O que me faz resistir é que um dos motivos maiores que me faz fazer teatro, ter um grupo e escrever pra este blog, é justamente poder sonhar em conseguir provocar, mexer, modificar, nem que seja uma pessoa da platéia, um leitor do blog, um adolescente, de qualquer idade, potencialmente capaz de apontar para uma realidade menos vazia, mesquinha, pobre e sem utopia.

Gil Vicente Tavares

Henri Langlois em Salvador

Semana passada, a Walter da Silveira exibiu um documentário extraordinário sobre um homem fundamental para a história do cinema DE TODO O MUNDO: Henri Langlois. Criador da Cinemateca Francesa, ele reuniu mais de 50 mil filmes, sem apoio do governo, de instituições, contra os burocratas e as políticas culturais do escritor André Malraux, então Ministro da Cultura.

Langlois, por conta própria, começou seu acervo num momento em que ninguém achava preciso e possível guardar aquelas películas e celulóides tão frágeis. Achavam também que o cinema não era arte. E Langlois, um visionário louco, resolveu guardar TUDO que encontrava pela frente, não só os filmes à época consagrados pela bilheteria. Sua justificativa: "Quem faz o julgamento é a posteridade. A obra vive por si mesma e provoca, eternamente, novas leituras".

E não pense que era por puro amor colecionista: "Os filmes só existem sendo vistos. É preciso guardar para assisti-los". Ou por amor ao consagrado: "O que me interessa são os filmes do futuro. Mas só conseguiremos ir para o futuro, se tivermos passado. Senão faremos filmes do passado eternamente".

Depois de formado o acervo, ele doou tudo ao Estado e ficou à frente do que se chamou Cinemateca Francesa. Graças ao seu trabalho, uma geração de cineastas pode existir, porque aprendeu assistindo aos filmes já feitos, estudando linguagem. Graças a eles todos agradecem (nominalmente, no documentário) como Godard, Hitchcock, Resnais, Allen e dezenas de cineastas. Ele é uma rara unanimidade no mundo (beligerante) do cinema.

Dizem que graças à sua absurda expulsão (!) da diretoria da Cinemateca, por ordem do Ministro Malraux, em fevereiro de 1968, ocorreram as revoltas estudantis de Maio. Esta idéia é comprada por muita gente, como Bertolucci, em Os Sonhadores, que reproduz o ato dos estudantes a favor de Langlois e acorrenta Eva Green à porta da Cinemateca, dando início ao filme.

Graças a Langlois, outras dezenas de cinematecas pelo mundo puderam existir, com certeza até o nosso Cineclubismo com o Walter da Silveira (WS, o homem e não a sala), na década de 1950, que formou Glauber. Langlois guardou cinema mudo, western, americano, italiano, francês e etc. Conseguiu muitos negativos com as companhias cinematográficas que faliam, com colecionadores dispersos, com diretores fracassados, aposentados... Nada foi comprado. Tudo na confiança e sob o discurso que o cinema mereceria ser guardado como um acervo, como uma biblioteca especial...

Enfim, eu poderia falar dias sobre um filme de quatro horas (horas basilares, formativas, fundamentais) e que contou na platéia baiana com cinco seres humanos. Eu não estava entre eles... Estava em Domingos Martins, no interior do Espírito Santo, batizando um bebê numa Igreja Luterana, por acaso fundada por imigrantes alemães. Logo após este culto religioso, recebo um telefonema urgente. Era de Salvador. O professor e diretor Ewald Hackler, meu orientador no doutorado, estava na platéia da W.S. e, angustiado, me perguntava onde estava eu que perdia aquela obra-prima, onde estavam todos.

Ouvi durante 40 minutos parte do que contei para vocês. Fiquei abalada e a primeira coisa que fiz ao chegar foi correr atrás das pistas que me levassem ao documentário "Le Fantôme de Henri Langlois", O fantasma de Henri Langlois. Nada em DVD no Brasil. Na Embaixada da França no Rio e em São Paulo só emprestavam para instituições culturais, com CNPJ, com sede oficial e etc.

Aplaquei um pouco do meu delírio na internet. Onde mais? E fiquei cada vez mais alucinada pela figura romântica, corajosa, direta e inteligente de Langlois. Fascinada como fiquei com o pensador português Agostinho da Silva (que merece um capítulo à parte), com o cineasta Ernest Lubitsch, com o escritor americano Kurt Vonnegut, com o diretor pernambucano Martim Gonçalves e outras pérolas daqui e de lá. Acreditem: Eles existem!

O que mais posso fazer enquanto aguardo o resultado do pedido cara-de-pau que fiz à Embaixada do Rio, dizendo que o Teatro NU era uma instituição cultural sem fins lucrativos, sem CNPJ, sem sede real (só virtual), mas com muitos interesses culturais e que deveria ter uma cópia do referido documentário? Dividir com vocês as pistas do melhor que consegui sobre Langlois até agora:

Há um trecho de um documentário com entrevistas do cineasta Costa Gavras no Youtube. Em inglês e francês em http://br.youtube.com/watch?v=PzrcdUtxF1k Tive que chamar meu marido para ajudar na tradução... ;) 4 minutos

Há outro trecho (em francês...) com Langlois em http://br.youtube.com/watch?v=B3tIRCYQi3I. 2 minutos

Há uma entrevista EM PORTUGUÊS (!) na Cahiers du Cinema, com Langlois, feita pelos meninos da Nouvelle Vague, entre eles Éric Rohmer e Michel Mardore. Eu gostaria de transcrever toda aqui... Mas é besteira. Os meninos da Revista Contracampo editaram e colocaram em http://www.contracampo.com.br/19/henrilangloisentrevista.htm.

E, nesta busca, me deparo com "uma versão brasileira" de Langlois no interior de Pernambuco, na figura de Lula Cardoso Ayres Filho. Um brasileiro fenomenal que coleciona três mil filmes, centenas deles brasileiros (e que a cinemateca de SP não tem) sem nenhum apoio oficial, sem empregados, com dinheiro do FGTS. Enfim... Em http://www.cinereporter.com.br/scripts/monta_noticia.asp?nid=743

Olha, não é perder tempo passar uma tarde na companhia deles ...
Por Jussilene Santana
junesantana@gmail.com

terça-feira, julho 15, 2008

A Rifa da Vaca

Temporada de caça aos patrocínios. Ou melhor, esta temporada nunca passa. Entra e sai mês e o dia-a-dia de qualquer grupo de teatro que se preze (e quem mais o prezaria?) é ir em busca de patrocínios, apoios. E isso na maioria das vezes sem nenhum fundo de caixa para bancar a feitura dos projetos, o trabalho das pessoas... Aos rés do chão: falta dinheiro mesmo para pagamento da impressão e do envio do sedex pelos Correios (ops, que estão em greve).

Há pouco tempo discutimos no blog do Teatro NU (http://teatronu.blogspot.com/) o valor das verbas da Funarte para os patrocínios na Bahia. Algo ofensivo para um estado com a nossa trajetória de espetáculos, atores, graduação e pós-graduação em Artes Cênicas: 20 mil, 30 mil contos... A saída já se tornou um clássico: Colocar o mesmo projeto em todos os editais que dão largada. Resultado? No final do ano são 300 projetos patrocinados pela Funarte, 300 pelas secretarias de cultura estaduais e 300 pelos patrocínios ligados aos bancos. Uma maravilha!

Só que esquecem de destrinchar nos relatórios mágicos que, na verdade, não são patrocinados 300 projetos vezes 3; Mas são, sim, os mesmos 300 que buscam um pouquinho do dinheirinho nas três instâncias. Lógico que este movimento é contraditório. Já que se fala em pulverização de recursos, de multiplicidades de grupos ganhando, quando vai se ver, a única opção que um grupo/artista tem de produzir algo significativo, e minimamente remunerado, é inscrevê-lo em todos os editais que encontra. São os mendigos oficiais que o crítico André Setaro delineou também na captação do cinema.

Quer dizer: é a democratização dos recursos, mas os projetos precisam ser “privilegiados” em mais de um edital! Sob pena de acontecerem de forma canhestra. Cada produção de peça, mesmo as de baixíssimo orçamento virou um trabalho duplo, triplo, sem exagero, às vezes quádruplo de captação. Desgastante isso? Imagina!! Somos todos tão bem remunerados! Ora! Às vezes não é possível nem colocar pagamento de administração num orçamento... O seu prêmio já é ter "sua obra" pronta.

Isso me lembra de uma vez, em 1982, quando em Mutuípe, a cidade flor do Vale do Jequiriçá no interior da Bahia, quiseram organizar o sesquicentenário da cidade. O povo do grêmio ficou à cata de apoios (em dinheiro mesmo!!) de diversos comerciantes da praça. Mas para não onerar muito cada um e, ao mesmo tempo, todos poderem participar daquele momento único nunca antes vivido na história do município, foi rifada uma vaca, doada por um abnegado.

Resultado: foram vendendo os bilhetinhos e, no final, o ganhador da mimosa, outro abnegado (a história, como se vê, está cheia deles) ainda doou a vaca para ser abatida num churrasco dominical no qual todos se empanturraram e ainda saíram reclamando da pobre vaquinha que era ossuda. Por que será?

Por Jussilene Santana
junesantana@gmail.com