quarta-feira, dezembro 09, 2009

Um quinteto de lembranças e melancolia...




Primeiro movimento: Fã absoluto de Egberto Gismonti, passei minha adolescência a buscar discos, vídeos e entrevistas desse compositor que, sem saber, me formou musicalmente, mesmo da forma capenga com que pude me formar. Nessas buscas, encontrei um concerto de Gismonti acompanhado de orquestra, em VHS, e passei a mostrar essa fita pra todos meus pouquíssimos amigos de Salvador que conheciam e gostavam de Gismonti (dois).
No programa, havia Ruth, uma bela canção que o avô de Gismonti, Antonio, havia composto. Na canção, o solista era um flautista que prontamente decorei o nome – afinal, era solista de Gismonti! – Toninho Carrasqueira.

Segundo movimento: Rato de fichas técnicas, comecei muito cedo a saber quem batia palmas na penúltima faixa do CD não lançado de um compositor maldito desconhecido do grande público. Coisa de adolescente que não tinha o que fazer, lógico. Mas assim, acabei por decorar nomes que se repetiam em vários CDs, de artistas diferentes, e pude fazer minha seleção dos melhores instrumentistas pela quantidade de gravações e qualidade dos cantores ou solistas do disco. E sempre estava lá, na trompa, teimosamente, o nome de Philip Doyle.

Terceiro movimento: A Kuarup Discos sempre foi uma referência de qualidade pra mim, na adolescência. A maioria quase que absoluta dos músicos do Brasil havia passado, estava passando ou iria passar por esse selo. E assim pude comprar discos antológicos com gravações de Radamés Gnatalli, Ernesto Nazareth, Piazzolla, e muito chorinho. Assim, comprei o CD Noites Cariocas, onde, no encarte, dizia: os melhores do choro ao vivo no Municipal. Se eram os melhores, isso é sempre relativo, mas havia ali a nata do choro brasileiro, e uma gravação de Espinha de bacalhau me chamou a atenção pelo suingue impressionante do clarinetista, que entraria naquela “lista negra” dos que participavam de tudo quanto era disco. Esse era Paulo Sérgio Santos.

Quarto movimento: Também da Kuarup, um dos meus primeiros CDs, que comprei num balaio mais pelo título do que por conhecimento, foi do Quinteto Villa-Lobos. Heitor Villa-Lobos se tornou uma paixão minha, alimentada por Gismonti – que havia lançado um disco só com composições dele –, incentivado por Vivaldo Costa Lima, que me presenteou com um LP com as Bachianas n.5, e pela saudade do Rio de Janeiro. O disco de Gismonti tinha sido marcante pra mim no Rio, e quando voltei pra Salvador ouvia ele e chorava com saudades da minha outra terra, lugar onde havia passado os dez primeiros anos da minha vida – soteropolitano que sou, fui com oito meses pra lá... Era um quinteto de sopros que comprei pelo nome, mas que desfilava um repertório de choros e canções belíssimos.

Quinto movimento: Estou em Salvador, anos depois, no calor do verão, recém chegado de um belíssimo concerto do Quinteto Villa-Lobos, composto por ninguém menos que Toninho Carrasqueira, Paulo Sérgio Santos, Philip Doyle e mais dois excelentes músicas pra completar; Luis Carlos Justi no oboé e o fagotista Aloysio Fagerlande.

Como não estou num período “poliana”, obviamente muitos incômodos me vieram ao chegar ao concerto.

20hs de quarta-feira. E qualquer vagabundo aqui está pronto pra tomar uma ou curtir uma festinha. Não há desculpas. E o concerto do Quinteto Villa-Lobos, que estava cheio – mas não lotado – era gratuito!!! Era gratuito!!! Acho que vocês não entenderam; era gratuito!!!

Olhei pros lados e vi pouquíssima gente conhecida, apenas Mario Gadelha – a única pessoa de teatro que vejo freqüentar concertos por aqui – pra cumprimentar; o restante, músicos da OSBA que não falam comigo.

Pensei em como a Ditadura Militar foi competente em separar os estudantes universitários. O que seria a antiga Escola de Música e Artes Cênicas foi cindida de forma que não conheço as pessoas da Escola de Música, muitos estudantes ali nunca pisaram nem pisarão num teatro onde eu esteja apresentando algo, e dificilmente – se não foram pra OSBA – eu verei esses estudantes tocando. Muitos sairão de Salvador – a Terra do Nunca, o deserto da esperança – pra tentar a carreira fora, e os que ficarem se enfurnarão na carreira acadêmica. Triste Bahia madrasta pra músicos, também.

Mas o pior. Quase ao fim, Toninho Carrasqueira, depois de desfilar com os outros quatro músicos belíssimos arranjos muito bem executados, com alma e verdade – resolveu agradecer seus patrocinadores; VOLVO e BOSCH (faço questão de registrar, mesmo sendo parte, ou todo patrocínio através de leis de incentivo).

É absurdo, quase uma piada pra mim ouvir aquele excelente flautista agradecer a sensibilidade dessas empresas pois gravadora nenhuma se interessou pelo projeto deles de gravar arranjos de Villa-Lobos (o quinteto tem esse nome, mas grava muito choro e outros compositores até mais que “o Villa”). Tive que ouvir, com um aperto enorme no coração, Toninho dizer que agradece às empresas pois a mídia só pensa em dinheiro, em divulgar o que dá dinheiro – do jabá ao rendimento em publicidade – e a música deles não toca na rádio e nem na TV.

Imaginei o que será o futuro desse país, que parece ter se suicidado com Zweig. Fiquei com uma imensa vergonha de ser brasileiro. Não porque nosso povo seja pior. Não é isso. Lá fora, a ignorância e o mau-gosto imperam, também. Mas os grandes artistas são respeitados, mesmo que sem salas cheias e sem grande audiência. Nossa música é nosso maior patrimônio, e no ano do cinquentenário de morte do nosso mais célebre compositor, fui obrigado a ouvir um discurso triste como esse. Triste pra mim. Aqueles músicos estavam sublimando aquilo com música sublime, e encerraram a noite com um arranjo do Trenzinho do Caipira magistralmente feito por Jessé Sadoc Filho.

Essa apresentação era pra ser feita numa temporada, a preços populares, com casa cheia. E não gratuitamente num dia só. Mas essa não é a realidade. O teatro não estava lotado e eu, que tão maldosamente pensei em copiar o CD deles (que meu amigo que não foi mandou comprar), acabei por não só comprar o novo como um duplo, que curiosamente se encerra com um quinteto do saudoso Lindembergue Cardoso. Quem? Ah, um compositor baiano de música clássica. Coisa que não toca na rádio. Não passa na TV.

Hoje, agora, tenho vergonha de ser baiano e brasileiro. Mas muito fácil acho motivos pra ter vergonha de ser terráqueo, e aí quem sabe viro um aeronauta e saio por aí recitando Cecília Meireles:

Agora podeis tratar-me

como quiserdes:

não sou feliz nem triste,

humilde nem orgulhoso,

- não sou terrestre.

quarta-feira, dezembro 02, 2009

O vale-cultura vale?


O Governo Federal acaba de lançar o vale-cultura. À maneira do vale-refeição, seria um instrumento de consumo de bens culturais. As empresas se cadastrariam e os funcionários – variando de 10% a 90%, de acordo com a faixa salarial – entrariam com uma porcentagem para obter esse benefício, com saldo estipulado de até R$50,00.

O argumento do Governo é que uma imensa porcentagem de brasileiros jamais foi ao cinema, nunca entrou em museus, em nenhuma circunstância sentou num teatro pra ver dança, música, peças. Com esse vale, haveria um estímulo ao consumo de cultura, estipulado um crescimento de até R$ 600 milhões/mês ou R$ 7,2 bilhões/ano.

A política vive mais de votos do que de resultados efetivos. Paliativos e tapa-buracos são, comumente, realizados, com um intuito populista de angariar votos. Muitas ações têm caráter muito mais de sensação que, solidamente, de políticas a longo prazo.

Não quero ser também imediatista em achar que o vale-cultura é simplesmente populista. Seus efeitos só poderão ser medidos se o governo fizer um real controle com estabelecimentos, museus e casas de espetáculo para registrar o que esse trabalhador resolveu consumir. Mas eu, que considero a cultura o bem maior de um povo, e que acho que é a cultura que muda a sensibilidade, a sociabilidade e a responsabilidade (e várias outras “dades” do ser humano), sempre dou um passo atrás com ações desse tipo, nem que seja pra olhar melhor e ver sua real utilidade.

Pensemos. Boa parte da população, hoje em dia, tem celular. Qualquer bar da esquina tem um bando de todas as camadas sociais, consumindo cerveja a qualquer hora do dia e da semana. Temos uma população pobre, sim. E que tem pouco acesso a bens culturais. Mas uma porcentagem grande disso é a falta de interesse proveniente de uma falta de educação e formação do indivíduo. As pessoas gastam dinheiro, se endividam na onda do consumismo, dos crediários e cartões de crédito. E consomem, quando se trata de cultura, somente alguns poucos segmentos de arte e entretenimento – independente, diga-se de passagem, do preço.

Pouco se tem feito no real sentido de formar um cidadão desde a primeira infância. Enquanto os canalhas dos políticos se locupletam com a grana que veio de nossos impostos, nenhuma ação efetiva é feita pra aumentar salários e melhorar as condições do ensino básico. O ensino médio tem se tornado, com o ENEM (que acho importante, registre-se aqui), uma porta de entrada pra universidade. Mas e a formação desse adolescente ao longo dos três anos que ele passa estudando? Que políticas públicas vêm sendo pensadas pra formação do indivíduo de forma consistente, sólida e ampla?

Infelizmente, terei que cair no lugar comum em que muitos devem estar caindo ao saber desse vale-cultura: o bem cultural consumido com esse benefício não modificará em nada o acesso do cidadão a outras estéticas artísticas. Dificilmente, um trabalhador que adora pagode – nada contra o pagode – resolverá assistir à Orquestra Sinfônica da Bahia porque tem o vale-cultura. Será mais fácil ele usar o benefício pra comprar um DVD do grupo de pagode que ele goste, ou assistir a um daqueles encontros musicais de pagodeiros numa casa de espetáculos qualquer.

Ouvi num encontro em Salvador, inclusive, do próprio Ministro da Cultura, Juca Ferreira, que não haveria preocupação do Governo Federal com a escolha do bem cultural que o cidadão fizesse. Importava haver o consumo de cultura. O que significa que não importa se o cidadão vai continuar consumindo Cláudia Leite e jamais saberá quem é Cláudia Cunha. O que, em decorrência disso, parece significar que o vale-cultura é mais um mecanismo do pão (bolsa família) e circo (vale-cultura).

Volto a dizer, não quero me precipitar em detonar o projeto, nem tampouco discordo totalmente quando o Presidente da República diz que há pessoas que não tem o que comer e nem condições imediatas de acesso, e o bolsa-família funcionaria, assim, como um socorro desesperado aos totalmente desfavorecidos. Mas são projetos que se isolam de outras ações mais contundentes a longo prazo. Ao menos, não vi grandes ganhos neste sentido nos sete anos de governo Lula. Dá-se acesso a muita coisa, mas será que o acesso a universidades, bens culturais, e outras ações que o governo promove, estão aliadas a uma melhora efetiva de nossa população? Ou são atitudes de reparação social que funcionam apenas pra satisfazer, de imediato, os que reclamam – com razão – da falta de acesso a determinadas possibilidades?

Existem muitas idéias boas de inclusão social, como o próprio Ministério da Cultura chama essa ação. Mas incluir quem e o quê aonde? Pra depois gerar o quê? E ter que resultados?

Como diria a personagem Olga, da peça As três irmãs, do autor russo Anton Tchekhov (será ele consumido através do vale-cultura?):

“Se pudéssemos saber! Ah! Se pudéssemos saber!...


GVT.