quarta-feira, maio 26, 2010

Cartas a um jovem Gil Vicente


Querido Gil,
Sim, recebi seu último e-mail, mas confesso que não o compreendi. Por isso minha demora em responder...

Não compreendi como a "opinião pública" soteropolitana que ainda mantém o mínimo interesse nessa arte - os segundos cadernos, os professores de teatro, os estudantes de teatro e a gente que faz teatro - pode acreditar que se há uma crise no teatro baiano, esta crise se deve a uma "falta de criatividade dos artistas da terra". Confesso, não entendi.

Queria ter mais informações, fatos, depoimentos para compreender... Uma análise, um artigo, sei lá, com bons argumentos. Algo que não caísse no démodé BAxVI que se tornou o debate (sic) "sobre os rumos da 'cultura' (sic) na Bahia", debate que esterilizou um ambiente racionalmente já rarefeito, debate que anestesiou um ambiente há décadas já perigosamente absorto em suas próprias entranhas e paixões.

Aqui no Rio leio jornal todo dia.
Na internet, lógico. Não sou assinante de nenhum, mas meu google chrome abre simultaneamente as páginas que mais acesso: atarde.com, globo.com, jb.com, uol.com e etc.com. Meu dia só começa depois que eu blábláblá, aquela coisa... E, deus sabe até quando, mas ainda mantenho o hábito de começar lendo as páginas de 'cultura' (de 'entretenimento'). Sou leitora ativa, vasculho no meio do lixo, vou à caça, mas não tenho encontrado nada a respeito disso por aqui, nem no terramagazine.com, que é editado por um baiano... Parece que o teatro baiano já não é mais mesmo uma matéria que interessa a tanta gente...

Mas eu realmente não entendo do que reclamam...

E quem é mesmo que reclama?? E o que seria esta tal "criatividade" que antes tinha e hoje não tem mais? O que é o ANTES??? A que antes estão comparando os já famigerados anos 00?! Ao engajamento da turma dos anos 60 ou a energia desmedida dos anos 70? Bom, talvez o antes se refira àquela alegria selvagem do fim dos anos 1980, que terminou desembocando na onda de profissionalismo ímpar dos 90, a onda à qual recentemente acabamos de ver terminar?

Sou realista.
Sei que a nossa memória social é curta. Portanto a crise só pode ser em comparação ao momento anterior imediatamente vivido: os anos 1990. É triste, mas enquanto sociedade, a nossa memória não tem o fôlego nem de 2 gerações, apenas sabe/acredita no que cada indivíduo por si viveu como "testemunha ocular". Por isso tudo vira memorialismo...

Numa arte tão efêmera quanto o teatro, com a freqüência de público que temos, não dá nem para imaginar os estragos que este tipo de comportamento social causa. A cada dez anos sabemos de uns três "pela primeira vez na Bahia", que causariam frouxos risos, se antes não provocassem náuseas profundas. E também não escondo minha dor lancinante quando conversando com as "novas gerações" cito um grande ator baiano "do meu tempo (!), dos anos 1990 (!!!)", e ouço um inocente desdenhoso: "nunca ouvi falar". No fundo, isso se torna apenas outra forma do mais vulgar dito popular: "Não vi, então não é bom". Ou, sendo na Bahia, o copyleft: "Não sei, não quero saber E TENHO RAIVA DE QUEM SABE".

Mas, tudo bem. Ninguém me obrigou a amarrar nesta pradaria o meu jegue.

O fato é que os anos 1990 não foram chamados de "os anos do profissionalismo teatral" na Bahia à toa. Ele aconteceu depois de um verdadeiro levante provocado ainda no final dos anos 1980 por peças movidas por self-made-men/women (os Los Catedrásticos, as esquetes da Companhia Baiana de Patifaria, a Oficina Condensada), peças criadas por jovens, que na época nada tinham a perder, que trabalhavam em outras atividades para sobreviver, que lançaram mão de suas pequenas economias pessoais para fazer as montagens, que conseguiram atrair um público de amplo espectro (não mais apenas os amigos e os parentes e os alunos e os pares) e que tiveram também a maldita sorte de pegar carona num espírito do tempo provocado pelo New Carlismo que queria novamente contar as "coisas da Bahia através das artes", sobretudo utilizando-as como ferramenta de marketing. E a resposta da cena foi: "Por que não?"

Na seqüência da década de 1990, diferentes estruturas de apoio à produção teatral na Bahia foram montadas ou reestruturadas. A simbiose da "classe" com o governo Carlista não foi apenas no apoio dado a certa temática (a Bahia como o "grande e quase único tema" de diferentes espetáculos teatrais apoiados), mas ocorreu também na relação patrimonialista e paternalista entre alguns gestores e artistas.

Se pudéssemos analisar de forma apartidária, inclusive de fora do "partido do teatro", perceberemos que parte da crise "que se vive hoje" já estava sendo engendrada nestes dois grandes aspectos do sistema produtivo montado: 1. Pelo próprio desgaste temático provocado pela moda do "vamos pensar a baianidade nos palcos", que teve seu frescor no início, claro, mas que como TEMA também encontrou seu esgotamento em pouco menos de dez anos. A Bahia poderia ser um TEMA bom quando era um tema entre os demais num roteiro cultural que ainda se pretendia amplo. Depois, se tornou quase que a fórmula do sucesso! E da forma como sucedeu não deixou herança, deixou apenas replicantes.

E 2: No desgaste provocado pela exclusividade do uso da lei de incentivo Faz Cultura no capitaneamento das produções teatrais. O Faz Cultura era uma caixa preta, descriptografado apenas para alguns, com os problemas inerentes ao modo de produção via renúncia fiscal que mais tarde seria debatido nacionalmente também. Ou seja, é uma questão colocada para o país, o caminho ficou cheio de armadilhas, mas POSSIBILITOU A ESTRUTURAÇAO DE UMA RESPEITÁVEL REDE de trabalhos, de artistas atuantes, de valores de cachê, de periodicidade de produções! E de estruturação de um MERCADO TEATRAL!!

O fato, amigo GVT,
é que esta turma toda que era jovem e deliciosamente irresponsável nos anos 1980, já chegou aos anos 1990 mais pragmática e realista. Exigiu (e conseguiu!!) condições para continuar trabalhando. Se não fizessem isso, com certeza, pessoas como eu e você não teríamos visto nem um quarto deles em ação nos palcos! Boa parte continuou com o filão BAHIA, mas o sucesso geral possibilitou a montagem de outros estilos de encenação e também se arriscou fugir do estilo (por si só nem bom e nem mal, porque não há isso em poética) próprio de ambientes desorganizados: a dependência do ator-estrela e/ou do ator-comediante.

Essa geração começou a cobrar cachês e, pasmem, a SOBREVIVER daquela atividade que simplesmente lhes tomava 99% do tempo. Incrível? Que isso um dia tenha acontecido? A gente também já conversou o quanto o surgimento e aparelhamento das casas de teatro deve à música baiana, que terminou reformando espaços e preparando técnicos, sobretudo de luz e som, que se revezavam na música e no teatro. A gente também, numa conversa, já listou de cabeça uns quinze nomes de profissionais de primeira linha que hoje só encontra trabalho remunerado na música. Trabalhar para teatro? Só se for uma dívida antiga para um amigo... Voltamos ao 'teatro só para amigos”... Em todos os aspectos. O público voltou a ser majoritariamente formado por amigos.

Mesmo a "classe teatral" sabia dos problemas inerentes àquele "mercado embrionário" que se formava, também fazia suas queixas. Mas de forma acéfala, para não variar, as reclamações só pipocavam quando o arroz queimava na própria cozinha. Mas os ganhos geracionais, de todo modo, estavam se acumulando. Qual é o principal ganho? Ter diferentes gerações de atores baianos trabalhando! Porque está é a única chance para os atores mais novos que surgem. No teatro, ver gente boa é a única fórmula para gerar mais gente boa.

É claro que o governo Wagner não teria perícia técnica e artística para fazer a mudança cirúrgica necessária ao cenário que encontrou. Ao invés disso, fez terra devastada, quis "Começar um novo tempo". Não foi NADA sensível ao "mercado" que funcionava antes. Sequer considerou-o como tal! Ouvi de inúmeros trabalhadores do governo que me disseram Hãhn? quando perguntei sobre o que ia acontecer com o mercadinho teatral baiano. A questão não seria mais o teatro baiano dando seus pulos para se inserir na economia capitalista, mas o teatro (mais uma vez!) como caminho para a mudança social. Cansativo. Não nego que muitas pessoas se salvem assim, mas a arte que elas fazem com certeza será condenada.

E nesse bojo houve ainda um tremendo erro de julgamento! Acreditou-se numa versão determinista da realidade, num "é o meio que faz o homem!" E raciocinaram: "Ora, ora, aquela turma lá dos anos 1980 não se produziu de forma criativa sem grana, sem salário, sem tempo, sem condições? Então? A chave do sucesso está NESTAS condições!" Triste. Como disse, seria hilário se...

Acontece que esqueceram como foi difícil para esta geração 80 re-começar depois de um longo inverno. Depois de todos os desmandos que quebraram a "produção" anterior. Numa outra oportunidade eu me repito, conto sobre os anos 1960 "quebrando" o que foi montado nos anos 1950 (você não agüenta mais me ouvir falando isso... Confesse...), mas não preciso nem dizer que mais uma vez presenciamos a dança de Shiva. Essa imensa turma de artistas baianos que se profissionalizou na década de 1990, formada por artistas DE DIFERENTES idades (! dos 7 aos 70!) se retraiu ou foi retraída do "cenário", aí o espaço literalmente sobrou para os novatos de todos os tipos. No grupão que "saiu de cena" estavam: 1)A turma das antigas que não topava mais passar por um retrocesso e trabalhar recebendo miséria ou não recebendo; 2) Parte grande da turma jovem que desceu para o Rio de Janeiro e São Paulo; 3) A outra parte da turma jovem que continuou atuante na Bahia "lascando de banda" para escalar um elenco que ainda tope trabalhar nas condições oferecidas; 4) E uma turma considerável das antigas simplesmente cansou.

Bom, tenho que falar sobre mim?
Detesto argumentar usando experiências pessoais... Eu demorei 6 anos para montar minha última peça na Bahia, Joana d'arc. Nosso projeto foi primeiro reprovado, depois renegado, posteriormente escolhido como suplente e, por fim, ganhou um edital. Haja Paciência... Saiba que oferecíamos sempre O MESMO projeto, só alterávamos o orçamento. E mesmo depois de premiado, demoramos 14 meses para receber a grana. Eu literalmente concebi e pari uma criança, a doce Ana Luísa, enquanto aguardava a verba.

O prêmio recebido, depois de reduzido, só dava para promover 13 apresentações!!! Montamos o espetáculo com 1/3 do orçamento original lá de 2004. A diretora voltou novamente a se multiplicar em sonoplasta e operadora. A atriz voltou a se revezar na assessora de comunicação. Voltamos ao "se vira nos 30" porque não tinha como pagar a todo mundo, era um espetáculo que exigia um elenco grande. Não era um monólogo. Não era um binólogo. Não vou discutir mais isso, mas chegamos a pensar em montar um monólogo só comigo, chamado Eu, Joana, devido às sérias restrições orçamentárias. Mas utilizar a restrição orçamentária como tema para um espetáculo/monólogo soava como cópia para mim, já tinha visto esta peça. Graças a Deus conseguimos um elenco que aceitou um cachê praticamente simbólico para o talento e empenho que demonstraram. Os 2/3 que TIVEMOS que retirar do orçamento foi basicamente da área de mídia!!!! Mídia...Esta coisa essencial no mundo de hoje para não isolar mais a já isolada manifestação teatral na contemporaneidade. Outro revés.

Não... Também não quero falar do estrago que causa para toda uma turma que agora está se formando/entrando para o teatro não assistir freqüentemente os "artistas de diferentes idades que se profissionalizavam nos anos 1990". Os meninos dos anos 1980 ainda tinham seus ícones baianos, inclusive para COMBATER! Professores, atores e diretores simultaneamente em cartaz para RENEGAR!!!! A história do teatro baiano pode ser divertida se a gente encara algumas montagens como respostas a outras montagens! Inclusive “os grandes sucessos”! Isso é teatro: mimese contínua, angústia da influência, o ver e copiar, dizer que não copiou, melhorar, acumular...

Nêgo, isso para não dizer da luta pelo Teatro NU, ein? Os diferentes projetos reprovados, nosso primeiro edital, no qual recebemos 9 mil contos... ai...

Pois é. Cansei por hoje.

beijos carinhosos,
JU

terça-feira, maio 25, 2010

Palestra sobre dramaturgia, dia 27/05!


Dia 27 de maio, às 19:30hs, no Campus da Lapa da UCSAL, o diretor artístico do Teatro NU, Gil Vicente Tavares, estará dividindo uma mesa com o renomado e premiado dramaturgo, Prof. Dr. Marcos Barbosa, da UFBA. Na ocasião, os dois farão uma palestra sobre dramaturgia brasileira a partir de suas obras, vinculando ao tema da XI Semana de Letras; "Literatura e Trangressão". Apareçam e divulguem! 

(na foto, Marcos Barbosa, eu, Claudio Simões e Gideon Rosa, no "Diálogos sobre dramaturgia contemporânea ano 0" com Letizia Russo)

sábado, maio 22, 2010

Elegia


Damário 
              se foi
Calvário  
             se fez
Poesia 
            desfaz
Imagem 
            da Cruz

segunda-feira, maio 17, 2010

UNDERGROUND faz 15 anos

O filme Underground, de Emir Kusturica, completou 15 anos, agora em 2010.

15 anos se passaram, mudou-se a década, o milênio, e por mais que muitos queiram, ainda vivemos os ecos do pós-segunda guerra mundial. Nem a queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética foram suficientes pra mudar o panorama mundial.

Uma ordem mundial só muda quando as urgências são outras. E, infelizmente, o filme de Kusturica está debutando atual e necessário.

Vencedor da Palma de Ouro em Cannes, quando ainda não se premiava Michael Moore e outras bobagens, este foi o segundo prêmio do cineasta, chegando ao status de ganhar duas palmas de ouro, feito só realizado por mais dois ou três cineastas do mundo.

Kusturica consegue ser uma mistura de Bertolt Brecht com Federico Fellini. De Eugène Ionesco com Ettore Scola. Sem a mínima preocupação com o que herdou, o cineasta sérvio conseguiu chegar ao patamar de ser um dos maiores cineastas do mundo, de todos os tempos.

Se me perguntassem sobre quais obras cinematográficas me inspirariam mais, dentre todas já feitas, Underground estaria entre as três. Para as outras duas vagas a briga seria boa entre filmes de Scola, Bergman, Fellini, Tarkóvsky, Greenaway, Sokurov, e talvez eu não soubesse listar.

Acabei de ver o filme, e me emocionou mais do que das primeiras vezes. É impressionante como o cineasta consegue unir o trágico e a bufonaria, a festa e a dor, e fazer um filme que mexe com todos os sentimentos de uma vez.

Ser político sem ser panfletário, ser trágico sem ser melodramático, ser poético sem ser cafona, ser palhaço sem ser ridículo.

Se todos os artistas conseguissem dosar isso, com certeza teríamos obras mais complexas, desatreladas de ideologias, modismos, questões politicamente corretas e idéias rasas.

Nas mais de duas horas e meia de filme, Kusturica tem muito a nos dizer. É clara e evidente a complexidade do tema que ele aborda, pois ele está falando de si, de sua dor, mas criando uma fantasia para isso. É um fingidor que chega a fingir que é dor a dor que realmente ele sente pelo seu país, pelo seu povo.

Adoro arte política, mas só tenho visto arte ideológica.

Adoro arte que emociona, mas só tenho visto melodrama.

Adoro arte com humor, mas só tenho visto humor sem arte.

Underground é uma lição de como se fazer uma obra-prima se utilizando dos elementos da arte sem que eles pareçam gastos, rasos, maneiristas.

Consistência. Complexidade. Conhecimento. Esses são os princípios da arte. Só consigo ultrapassar a barreira do racionalismo na arte quando esses princípios são alcançados. Aí, então, sou pura emoção.

Só, então, “a minha alma sangra”.

Vejam, revejam o filme. As lágrimas de vocês serão as mesmas que as minhas.



GVT.

domingo, maio 09, 2010

"Selvador", civilização em ruínas?


No caminho para as duas últimas apresentações d’Os Javalis, em Camaçari, deparei-me com uma grande construção à esquerda da pista, saindo da Avenida Paralela. Ao perguntar o que seria aquilo, a resposta – quase que natural e óbvia das pessoas – foi que ali seria o Norte Shopping, ou algo que o valha.

Como já disse tantas vezes, Salvador é uma cidade boa pra tomar cachaça e beijar na boca. A referência explícita à idéia de um balneário, de um lugar de diversão e festa, se alia aos grandes programas do soteropolitano nos finais de semana. Se não se está na praia, se está no xópim. Ou numa daquelas festas adolescentes que os marmanjos retardados culturais passam a vida freqüentando.

O Teatro Maria Bethania fechou, virou bingo. O Iemanjá serve mais a colégios e formaturas. O Espaço Xisto Bahia está em reforma há tempos, bem como o Solar Boa Vista (ambos do Estado), onde fui ensaiar Os Javalis e, após reforma anunciada pelo Governo, as goteiras ainda caíam no palco; uma lástima.

Se formos falar da prefeitura da cidade, vira piada. Não temos um teatro municipal, o único espaço de apresentações, o Teatro Gregório de Mattos, está fechado e não vemos nenhum movimento para que a prefeitura da cidade tenha uma relação obrigatória e automática com a cultura da cidade. Passe-se em branco e fica-se por isso mesmo.

Agora, em meio à reforma do Teatro ACBEU, recebemos a notícia que o Teatro Jorge Amado vai fechar. Um teatro particular, que, diferente de alguns outras da cidade, não recebia mesada do governo e vivia das pautas, caras e sempre cheias, advindas de um processo quase que natural de peças com caráter extremamente comercial, possibilidade plausível de se tentar sustentar os custos da casa.

Mas não deu. O espaço será leiloado, possivelmente, por não ter conseguido cumprir um empréstimo feito ao Desenbahia. Ficaremos sem mais um teatro na cidade, não sabemos por quanto tempo, isso aventando a possibilidade mínima de que quem compre resolver reabri-lo; o mais fácil é virar um prédio de negócios na árida Pituba burguesa.

É engano achar que uma cidade como Salvador chegará algum dia ao status de metrópole civilizada culturalmente de forma natural e espontânea. Vivemos numa terra onde nossa cultura que é exaltada pela TV, pelos folclores sobre nosso povo, está vinculada a mijar na rua, a falar alto e ser esculhambado, a requebrar, a tomar todas, a pegar mulher, a se embriagar na praia ou nos ensaios de pagode e música de carnaval, vivemos uma cultura rasteira e folclórica que, ao invés de ser dosada com antídotos de sofisticação, simplesmente fica sendo exaltada como identidade.

É sempre bom lembrar que a iniciativa de Edgar Santos, de tornar Salvador um centro de excelência e vanguarda do mundo, na década de 50, foi combatida por jornais, pelos estudantes da Universidade Federal da Bahia em passeatas, enfim, uma política cultural efetiva tem que ser estruturada, organizada e imposta. A criança sempre preferirá o chocolate à sopa; o povo sempre preferirá o raso ao profundo.

Ambos podem coexistir, e ambos se alimentam. Não existe fundo sem raso, nem raso sem fundo. São complementos do universo. Pra que exista o belo, precisamos da referência do feio. Pra que exista o leve, precisamos conhecer o pesado. Com uma referência só, a cabeça entra num estado letárgico de aceitação e preguiça; e é isso que vemos na cultura soteropolitana.

É preciso lutar pra que a Prefeitura de Salvador tome vergonha na cara. É preciso lutar pra que o Governo do Estado olhe mais pela outra arte, aquela que não flui naturalmente pelas praças e becos da cidade. É preciso que a iniciativa privada, que enche os bolsos de dinheiro, entenda seu papel social de fomentar um desenvolvimento da sociedade, e não se preocupe apenas em vender suas marcas em camarotes de carnaval e eventos popularescos, no famoso capitalismo selvagem que não percebe que noutros centros a economia da cultura é uma realidade que permite investimento em orquestras, companhias de dança, galerias de arte particulares, teatros e espaços culturais.

Mas por enquanto, o que temos é a construção de novos xópins e o fechamento de velhos teatros. "O teatro é um avançado meio de civilização, mas não progride onde não a há", dizia Almeida Garret.

E regride onde a civilização é trocada pela barbárie. 


GVT.