segunda-feira, agosto 16, 2010

A pobreza cultural de Salvador


Há um equívoco grave em relação ao que se pensa sobre a cultura, em Salvador.

Por conta desse pensamento comiserado de incensar os oprimidos – doença nefasta que é um dos grandes equívocos reforçados pela era Lula – a exaltação da cultura própria, endógena, popular, chegou a uma hiperbólica cegueira sobre a pobreza cultural que nos assola.

Todos os países intelectualmente espertos souberam dialogar com outras culturas, outros povos, outros modos de produção, criação e identidade, para se reinventarem. Há, ao redor do mundo,  programas de intercâmbio, de residência e de estudos de outras culturas que fazem com que, dessa mistura, possam florescer novas formas de pensar, de agir e de criar.

Aqui, em Salvador, há esse pensamento equivocado de que somos uma cultura forte e rica. Mentira. Somos uma cultura fraca e pobre, justamente porque nos fechamos em nossa própria cultura, folclorizando e exaltando ela como algo maravilhoso, especial, diferente de tudo.

Por trás dessa baianidade, se esconde a opressão de nos caracterizarmos como pessoas que falam alto, cospem no chão, mijam na rua, são felizes em sua miséria, não estudam, não crescem. Há uma opressão em relação ao negro soteropolitano, pois legitimar a imagem do negro falastrão, esculhambado, folgado, malandro, ignorante e cheio de ginga é a pior forma de se lutar contra o preconceito e a segregação. Devíamos, sim, lutar para termos mais “miltons santos”, e não legitimar o que nos empobrece, indignifica e nos folcloriza.

Azelites baianas são as mais estúpidas que eu conheço. Poderíamos pensar que esse baiano raso, de cultura pobre, estaria nas camadas baixas, mas basta ver as atrações da “chopada de medicina” pra percebermos que nazelites o problema é bem pior. Onde se poderia ter um acesso diferenciado à educação privilegiada, livros, concertos, exposições, a coisa fica mais feia ainda, pois, ao menos, as pessoas menos favorecidas, financeiramente, de Salvador, trazem em si a pobreza cultural própria, autêntica e legítima.

Sinto muito, mas é pobre, sim. Uma população precisa ter acesso a todos os meios culturais para enriquecer sua cultura. Dizer que sambar, comer acarajé, ir pro candomblé e jogar capoeira é ter uma riqueza cultural é balela. É pouco. Como é pouco alguém que passa o dia ouvindo Mozart e nunca viu o Ilê Ayê subir o Curuzu.

É natural que, num povo onde se exalta a mediocridade de se bastar com sua cultura endógena, a cultura seja rasa e as possibilidades exíguas. Com isso, não tem teatro, música, dança nem literatura que se sustente. E, o pior, começa-se a pensar que o “especial” povo de Salvador tem suas particularidades, num egocentrismo pateta que serve de desculpa à falta de educação e cultura de nossa população.

Enquanto os governos, as instâncias privadas e públicas responsáveis por diretrizes culturais, enquanto os pseudo-intelectuais que se valem de modismos pra serem publicados e incensados, enquanto esse pessoal todo continuar legitimando nossa pobreza cultural, não haverá como melhorar nossa miséria. Não poderemos pensar em uma economia da cultura, em um mercado de trabalho digno pro artista, onde ele não precise de emprego paralelo, nem tampouco depender 100% do estado, pra poder sobreviver e fazer sua arte.

Salvador tem um potencial imenso, pelos pensadores e artistas que tem, pelos recursos, pela inventividade, pra se tornar uma cidade do século XX. Desde a década de 50 que tentamos. Mas a persistência no amadorismo, no folclorismo e no medo de crescer que acomete as províncias, em geral, faz com que o século XXI seja um futuro inalcançável, por enquanto. Tornemo-nos modernos, por enquanto. Já é um começo.

Vamos parar de achar que Salvador é linda, que seu povo é lindo, que sua cultura é linda. Um bom começo é ensinar as pessoas a ver a poesia das coisas. Estamos petrificados frente à poesia do mundo.

E pra que se aguce a possibilidade de ler a poesia das coisas é preciso educação e cultura. Outra cultura. A cultura que não querem dar ao povo; seja porque acham lindo o povo ser do jeito que é, seja porque é mais difícil fazer uma revolução cultural sólida, ou seja, principalmente, porque um povo culto vai perceber melhor a merda em que está vivendo e os merdas que estão no comando.

quarta-feira, agosto 04, 2010

Por quem brilham os olhos...

Pintura de Sante Scaldaferri
Uma das principais características de um grande homem é saber reconhecer a grandeza de outro. Mesmo que indo mais longe que seus mestres, os grandes sempre souberam, na reverência, aprender a ouvir, respeitar e admirar aqueles que vieram primeiro e puseram mais uma pedra na imensa construção da nossa cultura.

Todos os grandes iconoclastas, mais do que simplesmente derrubar seus antecessores, foram, sim, em busca de referências mais atrás. E a admiração vai além das fronteiras estéticas, além das escolas e movimentos.

Estava eu no Xópim Barra, andando com meu amigo Artur Brandão e conversando sobre a realidade cultural de Salvador, projetos, idéias, frustrações, quando avisto Sante Scaldaferri. Antes mesmo de chamá-lo, ele me viu e veio em minha direção.

Tivemos, à beira da escada rolante do Barra, uma breve conversa sobre teatro, cidade, cultura, e Sante nos rememorou seus momentos na idade de ouro da cidade, os anos Edgar Santos.

Esse reitor da UFBA, responsável pela formação das escolas de música, teatro e dança, trazendo a fina flor do mundo para Salvador na década de 50, vira e mexe está presente em meus textos. Era um visionário, ousado e preocupado em inserir a cidade na contemporaneidade e na vanguarda do mundo.

Sabem aquela sensação de sentir saudades do que não se viveu? Pois me considero um órfão de Edgar Santos, e muito me alegrou ver, num depoimento que Tom Zé deu para um curta de Daniel Lisboa, ele utilizar essa mesma expressão. Tom Zé discorre ali, com saudosismo e decepção, a orfandade de Salvador, desligada da pequena revolução do reitor da UFBA e seus convidados – Martim Gonçalves, Lina Bo Bardi, Ernst Widmer e tantos outros –, orfandade esta que tem levado cada vez mais nossa cidade ao obscurantismo.

Sante discorreu sobre as pessoas que ele conheceu, com quem ele trabalhou, tudo que ele aprendeu, a pequena revolução que se afigurava naquele momento, nomes e mais nomes gloriosos da nossa história, e pude perceber algo lindo naquele momento. O mesmo brilho que devia estar em meus olhos, estava nos olhos de Artur, ouvindo aquele homem falar. Porém, mais lindo ainda era ver o brilho nos olhos de Sante.

Um artista plástico consagrado como ele, que alcançou o reconhecimento que ele alcançou, falava como um menino, feliz, animado, que contava seu dia no parque, sua noite na lanchonete. Ele contava e relembrava com frescor e vontade, como se gozasse, naquele momento, do prazer daquela história, dos fatos, das pessoas, da história.

Nenhum homem é uma ilha. Somos produto do nosso meio, das nossas vivências, da nossa história e de quem conhecemos, com quem aprendemos, o que vivemos e apreendemos à nossa volta.

Quem são suas referências? Quem são as pessoas que te rodeiam e que te inspiram?

Fiquei imaginando meu momento em Salvador. As pessoas que me rodeiam. As referências artísticas, culturais e intelectuais que me influenciam, me inspiram, me provocam. E confesso que me bateu uma inveja, inveja boa de Sante. Pude ver um olhar decepcionado da imensa falha que se tornou o projeto de Edgar Santos. A imensa burrice, mediocridade e falta de parâmetro das coisas. Não há mais esteio para se pensar a cultura. A estupidez tomou conta da academia, dos jornais. Onde se respira, onde o ar se renova, ventila, onde encontramos uma brisa de lucidez, de amparo, de saúde intelectual?

Por um instante, parei, olhei ao meu redor, pensei na minha vida, na minha cidade, e me projetei como um velho sonhador, um possível artista reconhecido, sábio, e fiquei pensando, numa situação dessas, encontrando gente mais nova. Por quem meus olhos brilhariam, olhando meu passado que é o meu presente, talvez presente de grego, talvez melhor do que penso?

Quem são suas referências? Quem são as pessoas que te rodeiam e que te inspiram?

Por quem seus olhos brilham?


GVT.

domingo, agosto 01, 2010

Sobre Fábio, Sebastião, Teatro Físico e o Processo

O teatro é uma arte complexa. Seu resultado final advém de uma reunião de elementos da cena que são fundamentais e equilibrados em importância. Não podemos esquecer nenhuma das etapas e nenhum de seus elementos, sob pena de ter uma criação incompleta, e, portanto, não se realizar enquanto teatro, na acepção mais sólida do termo.

Essa coisa chamada “teatro físico” veio como uma moda, assim com a técnica de clown, para Salvador. E toda moda é prejudicial, inconsistente e traz, em si, a característica do pastiche e, muitas vezes, da falta de fundamentação e solidez. O que não invalida e nem tampouco desqualifica o trabalho das pessoas sérias, que vêm construindo uma carreira que, para além dos modismos, têm nestas e noutras técnicas e estilos a essência de seu trabalho.

Fabio Vidal é um desses. O chamado teatro físico não está na obra dele por ser uma moda, por ser visceral, contemporâneo, ou – com perdão do termo – pós-dramático. Está nele porque é sua essência. Quando soube que eu estava trabalhando com Fabio Vidal, Marcelo Flores, colega dele na Escola de Teatro, me contou que ele já buscava uma linguagem pessoal até mesmo nas aulas de Harildo Déda. E o próprio Harildo tinha a grandeza de compreender o caminho pessoal de Fabinho e admitir suas limitações em ajudá-lo.

É claro que passar por Harildo Déda é um aprendizado até mesmo pra quem não sabe como absorver desse mestre os ensinamentos básicos do teatro que independem de estilo, época ou moda. E Fabio, com certeza, soube como aproveitar não só Harildo, mas o ambiente da Escola de Teatro naquela época, período prolífico da instituição, onde ele – por exemplo – seguiu caminho com Meran Vargens, mas fez uma peça, pela Companhia de Teatro da UFBA, com Ewald Hackler. O ambiente de troca, de idéias, e vontades e projetos era muito estimulante, e dentro disso tudo Fabinho soube como aproveitar o momento e se estabelecer como artista.

Um pouco mais de dez anos depois de eu ter me formado e convivido com Fabio Vidal na Escola de Teatro, e sempre convivendo com o amigo e conversando com o artista, recebo o convite de trabalhar a dramaturgia do seu trabalho novo. Em nosso processo com Sebastião, Fiquei muito satisfeito e feliz com a preocupação
que Fabio Vidal tem com todos os elementos da cena. No fundo, ele já sabia, dentro de si, talvez inconscientemente, tudo que ele queria pra peça. Mas se preocupou em me chamar para um auxílio luxuoso, mais do que um salvador da pátria.

Fabio Vidal faz teatro físico. Ele mesmo – ao ministrar oficinas – usa esta expressão. Mas eu acho que ele simplesmente faz teatro, que é isso tudo, é tudo ao mesmo tempo agora. Sua criação, através do corpo, é notória, mas os elementos todos do teatro estão ali, físicos, etéreos, metafísicos e dramáticos. A balança das modas tem sempre pendido pra um lado, e, hoje em dia, a dramaturgia é sempre o lado frágil, desequilibrado, sem peso. Criou-se uma ignorância e desleixo com o texto que é talvez explicável pelo atual nível de analfabetismo funcional que acomete nossas escolas, faculdades e instituições.

Sebastião se mostrou um processo onde o artista Fabio Vidal estava atento a todos os elementos da cena. Desde o texto até a música. Desde a criação corporal até a identidade visual do projeto. Teatro não se faz sozinho. Mas sozinho se chega longe se a honestidade com a obra artística faz com que o artista se preocupe em ter as pessoas que ele confia pra ajudarem nesse caminho da criação de um espetáculo. Fico muito feliz de ter sido uma dessas pessoas. Apesar da condução do trabalho ter levado ele a trilhar a parte final do espetáculo sozinho, apenas me pedindo um texto aqui e uma opinião acolá, pudemos dividir momentos essenciais de sua criação onde ele sabia quase tudo, já tinha tudo desenhado, mas precisava apenas de um empurrão.

Espero poder “empurrar” esse artista mais vezes. E que não seja pro lado negro (ou afro-descendente, pra ser politicamente correto?) da força. Espero ter conhecido, para além do amigo, mais um parceiro de profissão.

(Texto originalmente publicado no blog http://sebastiaoemprocesso.blogspot.com)