domingo, julho 31, 2011

Pausas, plateias e preconceitos

10:15hs da manhã de domingo.

Acordei às 07:30hs. Às 08:30hs estava na portaria do Teatro Castro Alves me encontrando com Marcelo Praddo para ajustarmos os detalhes finais de nossa apresentação.

Às 10:30hs Marcelo adentraria o palco principal para fazer a abertura de mais um Domingo no TCA. Esta foi a quinta vez que o Teatro NU teve a honra de participar desse projeto que populariza as artes, diversifica o domingo da TV, caranguejo e sono. Fizemos em março e abril O pedido de casamento e em maio e junho O urso.

A receptividade foi tão boa que juntamos as duas peças curtas de Anton Tchekhov e criamos o espetáculo “Dos males dos casamentos: Tchekhov em dois tempos”, com temporada de duas semanas no Theatro XVIII: temporada que pela receptividade nos fez resolver continuar a ideia do espetáculo e vamos fazer mais três apresentações no Cine Cena Unijorge. Vamos dividir pauta com outro espetáculo do Teatro NU, Sargento Getúlio, primeiro monólogo de Carlos Betão.

O projeto Teatro NU TCA surgiu de um convite de Rose Lima. Ela conhecia nossas peças curtas, que apresentamos no âmbito do projeto Teatro NU Cinema, e nos convidou para entreter a plateia enquanto não chegava a atração principal, das 11hs da manhã. As pessoas costumam chegar cedo para conseguir bons lugares e, em muitos casos, conseguir entrar, visto que o sucesso do projeto vem quase sempre enchendo e muitas vezes lotando os milequinhentos lugares desse teatro que está deixando de assustar as pessoas, trazendo a comunidade pra dentro de um espaço que é dela mais do que de ninguém.

Pois eram 10:15hs dessa manhã ensolarada de domingo e Rose Lima liga pra meu celular. Um ônibus, vindo de Candeias, tinha trazido várias crianças e pré-adolescentes para ver o filme das 11hs: Eu me lembro, de Edgar Navarro, filme que pelas fixações do cineasta era impróprio para aqueles meninos.

Rose liga e pergunta se a peça da gente conseguiria prender a atenção daqueles meninos.

Volta a fita.

Marcelo Praddo, Rose Lima, Fernanda Bezerra, nossa produtora, a torcida do Bahia, do Vitória e da Catuense desconfiavam da eficácia de Dos males do tabaco para uma gigante plateia do TCA. Depois da ótima receptividade que tivemos com as duas comédias de Tchekhov – que nos estimulou a dar continuidade e criar um espetáculo com as duas – parecia que Dos males do tabaco ia ser o primo pobre, a raspa do tacho, um enchimento de linguiça.

Voltamos às 10:15hs. Digo a Rose que esse monólogo de Tchekhov não tinha o apelo das duas comédias deliciosas dele. Digo que não era o espetáculo ideal, mesmo curto, para apresentar a meninos de, sabe-se lá (e o pior é que sabemos), que formação cultural (do mais miserável ao bilionário, as referências culturais têm sido muito limitadas e preocupantes).

Logo depois eu digo que, justamente por não ser o lugar comum, por não vender barato, por não imitar uma estética televisiva, ou uma comédia rasgada, ou um funk apelativo, seria interessante para a formação daqueles meninos passar pela curta experiência de ver um Tchekhov não tão cômico e não tão fácil.

Rose me chama ao palco às 10:25hs para falar um pouco da peça, do Teatro NU, do convite, do projeto. Uma forma de preparar aquelas crianças para quase 20 minutos de TEATRO.
Logo ao começar, lembro que tinha de estar na mesa de luz, para dar a indicação do único movimento que toda a peça teria. Fui correndo pra cabine e fiquei de lá, vendo o espetáculo.

A cada pausa de Marcelo, a cada momento menos risível do texto, meu coração vinha à mão, minha alma vinha às vistas, minha respiração quase não vinha. Mas a atenção do público, os risos inteligentes da plateia e a genialidade de Anton Tchekhov junto à maestria de Marcelo Praddo me faziam relaxar. E ver que o público pode, sim, gostar de TEATRO.

Às vésperas de mais uma estreia na minha vida – Sargento Getúlio, outro monólogo – esta manhã de domingo foi muito especial.

Respeito todo tipo de arte, até aquelas que preconceituosamente resisto à chamar de ARTE. Tenho que me recolher à minha insignificância e perceber que mundo gira à minha revelia: sou só um grão na infinitude de formas e possibilidades de um mundo que muda, que gira e se modifica pra voltar a ser o mesmo.

A despeito disso, penso que não podemos subestimar o público, nem tampouco ignorá-lo. Fazemos arte para ser vista, apreciada e, em muitos casos, como tento eu, para mexer, incomodar, provocar e bagunçar o coreto.

Não me apraz aquela arte ensimesmada, feita do artista para ele mesmo, muitas vezes uma arte hermética, sonolenta, incompreensível. “Todo artista tem de ir aonde o povo está” não é só citação de agenda. A arte tem que comunicar.

Mas também me incomoda muito quando os que vendem fácil, ou apenas buscam o sucesso – uma opção válida e que não é da minha conta – subestimam a plateia, o público, a galera.

“O povo sabe o que quer, mas o povo também quer o que não sabe”, já diria Gilberto Gil. Preocupar-se em fazer de tal modo porque é assim que o povo gosta, pra mim, é tão inválido quanto arrotar que o povo não está preparado para “este tipo de arte”. Rotular tal espetáculo como ideal para tal bairro, tal público, tal classe social, é tão preconceituoso quanto avaliar classes sociais, cor de pele, opção sexual e política de acordo com princípios específicos.

Se você tem o que dizer e sabe como dizer, o público vai te ouvir. Acredito nisso como uma convicção. Pode ser comédia, drama, tragédia, musical ou experimental.

Ouvir o silêncio da plateia, ouvir os silêncios de Marcelo, e apreciar a poesia de Tchekhov tanto quanto a plateia de hoje foram um cartão de visita para eu ainda acreditar que a arte move, comove e promove uma revolução íntima: a maioria das vezes invisível, mas que faz valer o fato de eu ter optado por essa carreira numa terra onde, como dizia Otávio Mangabeira, se paga 50 pra você não ganhar 20.

 Espero continuar sendo coadjuvante de artistas como Anton Tchekhov, Marcelo Praddo, Ivan Bastos, Eduardo Tudella, João Ubaldo Ribeiro, Carlos Betão, Fafá Menezes, Rodrigo Frota, Manuela Rodrigues, Mário Soares, Sante Scaldaferri e tantos outros que me comprovam, a cada dia, que vale a pena continuar. Agradeço a Fernanda Bezerra, a Rose Lima, Renata Hasselman, Petrus Pires, Clarissa Rebouças, e tantos outros, por sustentarem essa loucura que é ir contra a mesquinhez, a mediocridade e a inveja que corroem o belo palco deste grande teatro do mundo que é o pequeno palco dos nossos teatros.

A apresentação de hoje foi linda. E me ensinou muito. A arte continua me modificando, me acrescendo e mexendo comigo. Se algum desses sentimentos chegou a alguém da plateia, já valeu ter acordado às 07:30hs da madrugada de um domingo ensolarado e perder/ganhar os próximos dias ajeitando Sargento Getúlio para mais uma batalha contra a descrença, a desconfiança e a ignorância dos incautos e descompreendidos.


GVT.

quinta-feira, julho 21, 2011

A Copa do Mundo, a cultura da Bahia e a arte de Salvador...

Certo dia, uma amiga andava com o filho no Pelourinho, Centro Histórico de Salvador. De repente, o adolescente viu uma mulher vestida de baiana, se requebrando sozinha. Num primeiro instante, ele achou que ela dançava com algum fone de ouvido. Depois, ele percebeu o motivo da dança: um gringo se aproximava.

Salvador vai ser uma das sedes da Copa do Mundo, que acontecerá no Brasil em 2014. Ano interessantíssimo na política brasileira e baiana. Já sabendo quem os soteropolitanos escolherão para seu prefeito em 2012 – não há mais chance de João Henrique fazer obra pra alegrar a massa ignara que o reelegeu –, 2014 será ano de Copa do Mundo no Brasil e eleição pra governador e presidente da república.

Lula já estará mais distante no imaginário popular. Aqui na Bahia, Jaques Wagner já terá cumprido seu segundo mandato e nenhum grande nome até agora despontou na situação e na oposição. Eleição interessantíssima. Dilma se candidata e se reelege? A direita volta a tomar o poder na Bahia na esteira de uma provável prefeitura mais pra direita que esquerda?

O recente escândalo que não quer cessar, relacionado ao Ministério dos Transportes, é um assunto que não me interessa discutir. Não da maneira como poderia, agora. Falar da impunidade, da corrupção, dos conchavos, isso tudo até a mangueira que plantei no fundo de meu quintal está cansada de discutir. A questão é: como Salvador, sendo mais província e, portanto, mais fácil de haver corrupção, impunidade e conchavos, será forjada pra 2014.

Levando em conta que apenas 30% da verba vai ser utilizada, pois provavelmente o resto fique entre superfaturamentos, molhadas de mão, comissões e subornos, qual Salvador vai chegar à Copa do Mundo e qual Salvador sairá dela?

A cidade esburacada, mal iluminada, com um sistema de transporte falido, violenta, abandonada, suja e que parece não ter gestão, é a cidade também onde a cultura é escandalosamente rechaçada. Já não sei o que fazer para pressionar a prefeitura para que tenhamos um teatro municipal, uma secretaria de cultura, orçamento digno para gestão das artes, etc.

No âmbito estadual, a cultura também é um problema. O atual secretário de cultura pegou uma pasta atolada em dívidas. Resolveu pagá-las e, por conta disso, adiou a possibilidade de implementação de uma política cultural para a Bahia. Manifestei-me publicamente a favor da alternativa da demanda espontânea este ano, mas na esteira disso há um problema grave. O secretário terá apenas dois anos para realizar algo de interessante, visto que 2014, para além da Copa, traz todo esse quadro político e a guerra do caixa dois, da verba pra área de comunicação, o contingenciamento do orçamento, tudo isso vai emperrar algo de efetivo para a cultura da cidade, a não ser que...

A não ser que se pense um PAC, um Plano de Aceleração da Cultura, para os próximos anos da cidade. Já devíamos estar pensando qual Salvador queremos mostrar pro mundo, que alternativas, que urbanização queremos revelar neste evento que é um holofote fantástico e que pode dar uma guinada sensacional no turismo, na cultura e no comércio local. Ou não.

A palhaçada vergonhosa do nosso metrô serve de exemplo. Não levo a menor fé de que haverá menos corrupção, menos superfaturamento, desvio, propina nas verbas da Copa. Um pequeno grupo, aqui, vai se locupletar e ficar ainda mais rico, vai construir várias coisas em benefício de poucos, vai descaradamente anunciar melhorias que renderão votos, admiração e aplausos.

Mas e a nossa cultura? O atual secretário diz que quer incentivar o teatro profissional. Atualmente, temos duas orquestras sinfônicas, a da Bahia e a YOBA, ligada ao projeto NEOJIBÁ. As artes plásticas andam abafadas, mas conheço vários artistas plásticos que rodam o mundo. Salvador tem toda capacidade de se tornar um balneário cultural. Um local onde passado e presente dialogam, onde arte e diversão sejam chamarizes importantes, podemos dar saltos arquitetônicos nas propostas de obras futuras – temos gente qualificada pra isso. A reforma do TCA, pra mim mais urgente que a da Fonte Nova, se bem gerida pode mudar a perspectiva das artes em Salvador.

Urge que o governo estadual pense um plano para a cultura e para as artes que possa fazer crescer, em três anos, o potencial profissional, técnico e de relação com a população local, como um atrativo que os soteropolitanos curtam. A arte, na maioria das vezes, fica fechada em guetos e nossa música, tão rica, nossas artes cênicas, audiovisuais, ficam à margem da sociedade.  O governo pode ajudar nessa ponta.

Do prefeito atual não espero nem que tape os buracos que estão estragando meu carro, e se tapar, vai ser malfeito, para alguém ser convocado de novo e encher o bolso com seguidos recapeamentos de péssima qualidade. Mas urge que o próximo repense o papel de uma prefeitura, tão ou mais atuante que o governo estadual em outras capitais, nas artes e na cultura local. E isso precisa ser uma demanda do cidadão de Salvador. É preciso pressão, interesse, que esse assunto tome as folhas de jornal.

Que Salvador mostraremos a quem vem de fora? Uma cidade conectada com o futuro, mas que sempre valoriza seu passado? Uma cidade que não tenha ilhas de excelência que possam enganar o estrangeiro, mas que funcione como um organismo pulsante de produção, recepção e distribuição de qualidade? Uma cidade que possa encantar e trazer turistas, movimentar a economia? Um lugar onde comece a ter um turismo cultural, gente que venha de fora para ver nossas produções artísticas de qualidade, nossos eventos, festivais, espaços culturais e museus?

Ou insistiremos na imagem preconceituosa, opressora, preguiçosa e que, em seu folclore, ajuda a manter alguns poucos que se valem da nossa imagem estereotipada, e que é a imagem de uma negra vestida de baiana se requebrando sem música para o turista?

“Nessa terra a dor é grande
A ambição pequena
Carnaval e futebol...”

sábado, julho 02, 2011

A Neojibá e os desafinos de um ensaio


No documetário The art of improvisation, Keith Jarrett declara que sua música não vem da música. A inspiração para compor e improvisar vem de outras sensações, outras artes, ideias, filosofias.

Isso significa muito. Percebe-se o grande músico que ele é não pela destreza técnica, mas pela inventividade e particularidade do artista. A técnica existe, tem que existir, mas ser esquecida. É quando o artista se joga da beira do precipício onde a técnica o levou que a grande arte acontece. Sem a técnica, ele não chega à beira. Sem a loucura do salto, ele fica preso somente à técnica e se torna um executor, não um artista.

Na história da música clássica, vemos como grandes compositores foram buscar inspiração fora da música para criar e pensar a música. É muito comum um artista plástico citar uma expressão de teatro, um dançarino citar uma expressão da música, porque é fora do que nos é comum que a provocação vem.

Beethoven e o poema de Schiller, Ode à alegria. Mahler e os poemas chineses que viraram A canção da terra. Schumann e tudo que ele escreveu e pensou e criticou e que voltou, à sua obra, transubstanciado. Mussorgsky e seus Quadros de uma exposição.

Reza a lenda que quando Debussy foi pedir a Maeterlinck a autorização para que a peça Pelléas et Mélisande, de sua autoria, fosse musicada como ópera pelo compositor francês, este se tremeu todo porque ia conhecer “o grande dramaturgo”.

É comum vermos movimentos artísticos mais relacionados a uma arte influenciarem o pensamento de outra arte depois. O artista, enquanto antena da raça, sempre buscou captar, antes de tudo, o seu entorno. Compositores indo a balés, coreógrafos indo ao teatro, dramaturgos indo a óperas.

Digo tudo isso porque fiquei assustado com os integrantes do projeto Neojibá. Um projeto onde jovens estudam e integram uma orquestra que já começa a ter certo destaque inclusive internacional. Capitaneado por Ricardo Castro, pianista de renome que voltou à Bahia para ser diretor da Orquestra Sinfônica no estado, o projeto se tornou seu grande foco, após a sua saída do governo e mudança de gestão.

Há um mês ensaiando Sargento Getúlio no Teatro Castro Alves, e dividindo sala com esses meninos, constantemente somos interrompidos pela entrada deles que, alheios ao que se passa no momento – um ensaio teatral onde o ator, sozinho em cena, necessita uma atenção fenomenal – eles vão invadindo sem pedir licença. Depois de umas duas ou três advertências ao setor de produção do TCA, e conversa com os próprios meninos, a falta de educação e sensibilidade desses músicos neófitos hoje foi uma gota d’água e uma grande decepção.

Entusiasta que sou da música clássica, passei esse mês todo puxando conversa, comentando obras musicais, sempre que encontrava com alguns deles. Mesmo com a má-vontade para se retirarem da sala no meu horário de ensaio, mesmo com eles ensaiando e o som vazando pra sala e desconcentrando o ator, tentei ser simpático, de coração. Mas é assustador perceber que esses meninos parecem mais animais adestrados que projetos de artistas.

Qualquer pessoa de inteligência mediana que estudar horas com afinco um instrumento conseguirá tocá-lo. Ao fim de um ano, de uma década, que seja, estudando 5, 10 ou 15 horas por dia, mas com estudo e aprimoramento técnico, pode-se virar um executor, um repetidor, uma “máquina programada”.

Tocar numa orquestra não completa um artista. Sempre me assustei com a aparência de nerd da maioria dos músicos eruditos de Salvador, bem como a sua ausência em eventos da cidade que não fossem um concerto de alguém famoso. A música clássica, sempre tão distante do público comum, acaba tendo certa culpa nessa distância, por se comportar como uma música alienígena, tocada por marginais da sociedade e da cultura, preocupados, apenas, em executar bem uma partitura.

O húngaro Sándor Végh dizia que preferia as notas erradas de um grande músico às notas certas de um músico medíocre. Um grande músico sabe o que é teatro. Jamais interromperia um ensaio grotescamente, estupidamente. Talvez até entrasse discretamente pra observar, por curiosidade e vontade e necessidade de entrar em outros mundos que não aquele fechado, recluso e limitado mundo de suas partituras e instrumentos.

O projeto Neojibá tem diversos méritos. Ver os meninos ensaiando pelas escadas e corredores do TCA dá uma esperança de que possamos diversificar e enriquecer nossa cultura. Mas tudo isso vai abaixo quando vemos a pobreza de arte e espírito que cerca esses jovens. Dando pulinhos e tocando canções suingadas, eles podem receber aplausos efusivos de europeus e asiáticos, mas parecem não saber, no sentido mais belo e rico da palavra, o que é arte.

A verdadeira revolução é a que muda o homem, o indivíduo, e não o coletivo. Ver um rebanho de moleques tocando bem não é suficiente. É preciso se pensar o artista. É preciso se pensar o homem, sua riqueza, sua compreensão da beleza de outros mundos.

Infelizmente, a falta de educação e sensibilidade desses meninos não parece levar para esse lado. A música perde artistas. O mundo perde arte. E eu hoje perdi a paciência.