sexta-feira, dezembro 28, 2007

Estamos de férias!


Amigos participantes, pitaqueiros e olheiros deste blog: Estamos entrando em nossas férias coletivas! (e sem 13º...) . Agora em Natal e Ano Novo vamos dar aquela paradinha para viagens, encontros com a família e outros que tais para voltarmos com energia extra em 2008. Eu, particularmente, viajo para Mutuípe, no interior da Bahia, e para Belém, no Pará. Me desejem boa sorte ;). De todo modo, deixei aqui um texto reflexivo sobre o início da minha tese de doutorado. Eu sei, eu sei que está pesado para um blog!... Mas é por isso que estamos entrando de férias, para ver se depois voltamos ao normal.

grande beijo!!!


Jussilene Santana


p.s.: Gil também manda beijos.

especulações

Alguns paradoxos sobre o nacional, o popular e a direção de
Martim Gonçalves para a Escola de Teatro da Universidade da Bahia (1956-1961)

Nos meios culturais e acadêmicos baianos muito se especulou e ainda se especula sobre o caráter da direção de Eros Martim Gonçalves à frente da Escola de Teatro da então Universidade da Bahia. Criada oficialmente em 13 de junho de 1956 e entranhada no coração da provinciana Salvador, a instituição, primeira escola de teatro no Brasil ligada a uma universidade pública, nasce sob a égide deste encenador que foi também seu primeiro administrador. Apesar da importância desta iniciativa para os campos educacionais, artísticos e culturais do país, até o momento nenhum estudo discutiu o tema com a profundidade e a seriedade que lhe são devidas.
Em minha pesquisa de doutorado, proponho como objetivo central analisar as escolhas estéticas tomadas por Gonçalves à frente da referida unidade de ensino e de prática teatrais. Através do levantamento da produção empreendida nos seis anos em que capitaneou a escola e sua companhia fixa, denominada de A Barca, pretendo investigar o porquê da escolha de Gonçalves por dados autores, intérpretes, metodologias de ensaio, na dada conjuntura temporal e sócio-econômica que estava submetido. Também objetivo investigar sobre as rotinas produtivas de atores e técnicos, assim como os esquemas de produção que dispunha, numa terra até então lastreada pelo teatro amador e por esporádicas passagens de espetáculos produzidos no Rio de Janeiro, São Paulo e, ainda bem mais raro, Portugal, Espanha e França.
Diretor da Escola de Teatro entre junho de 1956 e agosto de 1961, Martim Gonçalves dirigiu e apresentou ao público soteropolitano dezoito espetáculos, entre textos nacionais e estrangeiros. Outras dez montagens foram apresentadas por encenadores-professores convidados (na ordem): Antonio Patiño, Gianni Ratto, Charles McGaw, Herbert Machiz e Luis Carlos Maciel. Mesmo com as viagens e após o afastamento definitivo de Gonçalves, as peças escolhidas faziam parte do projeto por ele já acordado para o ano letivo em questão. Administrador ativo, Gonçalves realizou ainda um sem número de eventos, entre eles, palestras, seminários e mostras de filmes que também nos ajudam a compreender o seu projeto artístico-educacional.
A administração Gonçalves acontece num momento de radicalização do espírito nacionalista no Brasil. São os anos do governo Juscelino Kubistcheck, de crescimento da industrialização e de abertura para o capital internacional. O Nordeste (e a Bahia em particular) atravessa uma intensa mobilidade em sua estrutura social a partir da descoberta de petróleo em seu território. Em toda a nação, o governo democrático e eleito permite que a sociedade civil e a juventude universitária se organizem como nunca. Para grande parte do país, era chegada a hora de romper com as dependências externas, máculas de sucessivos períodos históricos e diversos modos de colonização. Nacionalismo e politização capturam as artes exatamente nos anos 1950/1960, sendo que a popularização da linguagem teatral foi encarada como uma arma ativa neste combate.
Como não poderia deixar de ser, ao longo deste período, a presença do texto nacional no projeto de Gonçalves à frente da Escola de Teatro já era bastante discutida. Nestes seis anos, ao lado dos grandes nomes da dramaturgia ocidental (como Tchecov, Strindberg, Camus, Lorca e Brecht) ele monta os brasileiros Maria Clara Machado (O Boi e o Burro a caminho de Belém), Ariano Suassuna (Auto da Compadecida), Arthur Azevedo (Uma Véspera de Reis na Bahia e A Almanjarra), Antonio Callado (O Tesouro de Chica da Silva), Francisco Pereira da Silva (Graça e Desgraça na Casa do Engole Cobra) e o baiano Ecchio Reis (Cachorro Dorme na Cinza). Este último resultado do Curso de Formação do Autor, mantido pela instituição e que, nos próximos anos, ainda promoverá outros cursos de playwriting, sob a coordenação de Stanley Richards.
Contudo, apesar desta presença, o projeto-pedagógico de Gonçalves, não parece mostrar sintonia com qualquer engajamento, seja a temáticas, a estilos ou a uma moral particular. A partir da minha dissertação de mestrado, Impressões Modernas – Compreensão e Debate sobre Teatro na Cobertura dos Jornais A Tarde e Diário de Notícias entre os anos 1956 e 1961, a figura de Martim Gonçalves surge, não raramente, paradoxal. Não é incomum às vezes termos a impressão de que as matérias falam de pessoas diferentes. Daí a habitual leitura que, desde a época, tenta capturá-lo: herói ou vilão? Contudo, do contraditório que é essa persona pública construída pelos jornais, emerge, talvez, uma certeza: Martim Gonçalves era um legítimo ‘homem de teatro’.
A partir desta dissertação e como hipótese inicial de trabalho para o doutorado, defendo a idéia de que Gonçalves objetivava se mover no próprio campo social da arte, ou seja, naquilo que este possui de autodeterminação e auto-engendramento de seus próprios significados e hierarquias, segundo suas próprias regras, agentes, obras e instituições. Através das montagens teatrais que capitaneou em seis anos de produção, Gonçalves pretendia se movimentar num ambiente no qual a liberdade de expressão, tanto de forma, quanto de conteúdo, deveriam ser soberanos em relação aos eventuais desmandos de outros sistemas sociais heterônomos, ou seja, em relação às demais regras do jogo do poder econômico, político e/ou midiático. E o que é mais curioso: ele queria se mover no interior de um campo no qual ele próprio traçava os primeiros contornos.
Sendo assim, meu doutorado pretende provar a tese de que a produção estética empreendida pelo encenador Eros Martim Gonçalves, durante os anos em que esteve à frente da Escola de Teatro da então Universidade da Bahia, objetivava, através das regras do próprio campo artístico, pregar a liberdade e a independência dos valores da arte teatral em relação à sociedade que outrora encontrou por aqui. A questão é que, simultaneamente, ao constituir-se este campo de poder paralelo, magistralmente (e quase que unicamente) gerenciado por Gonçalves, a arte teatral em Salvador ameaçou os demais campos instituídos, provocando a ruptura e o isolamento do diretor, sobretudo a partir da montagem de A Ópera dos Três Tostões, de Bertolt Brecht.
Voltado para seu ofício, Gonçalves parece menosprezar as ingerências dos outros campos sociais no fazer artístico teatral, a despeito de, paradoxalmente, considerá-los apenas até o momento em que seus projetos conseguissem ser capitaneados. Como um legítimo ‘moderno’ acredita na autonomia da arte e no que esta, assim acionada, poderia ensinar sobre o “resto do mundo”, pretendendo discuti-la apenas em seus próprios termos poéticos. Contudo, Gonçalves também soube ativar os poderes políticos e midiáticos à disposição para alavancar o projeto da instituição, sobretudo em seus primeiros anos. O paradoxo é que, através de suas escolhas poéticas, dava mostras de que ‘teatro não se mistura’, a priori, com política, ética e religião, atitude comumente entendida como alienação, diletantismo e esteticismo. Adjetivos rapidamente sacados pelas elites intelectuais de esquerda e rotineiramente empregados ao diretor.
Tal estado de coisas, não apenas nas artes cênicas, assumia no período a polarização simplista entre universal/alienado versus nacional/engajado. Contudo, parece redutor não perceber como a Escola de Teatro neste período se apropriou metodicamente de diversas contribuições do fazer teatral, independentemente de suas origens, promovendo assim seus possíveis desdobramentos, inclusive a partir de grupos que se desmembraram dela. Cabe lembrar que teatro moderno, ou melhor, a arte moderna, já não obedecia a fronteiras, acolhendo contribuições, entre tantos, de artistas russos, alemães, americanos e franceses.
O que nos chama a atenção em especial é a sensibilidade de Gonçalves também para temáticas nacionais e populares, fator que nunca foi bem compreendido por aqueles que criticavam sua produção.
Dito isto, aqui poderíamos acolher uma série de matérias retiradas da cobertura jornalística do período que repercutem tais iniciativas da Escola de Teatro em trabalhar com as raízes populares da região. Uma matéria sobre o reinício das aulas na Escola de Teatro, publicada em 13 de abril de 1957, informa que Martim Gonçalves organizará, na França, a exposição Dança e Teatro Popular no Brasil. No texto, lemos que o professor esperava com a mostra (mais tarde integrada ao acervo da Escola de Teatro) desenvolver um “programa de ensino, formando novos técnicos para o teatro brasileiro e incentivando os autores dramáticos a entrarem em contato com as fontes de inspiração tradicional e popular”.
Na mesma linha de aproximação de nossas matrizes culturais populares, vemos outro artigo de Martim Gonçalves publicado no Letras e Artes, de 23 de novembro de 1958. No artigo ‘O Mamulengo’ Gonçalves analisa as origens do teatro de bonecos nordestino, explicando a diferença entre os fantoches, de feitura popular e encenação direta, para a marionete, erudito e de leitura complexa. Sendo, segundo ele, o mamulengo, “um teatro de improvisação (...) de ação dramática simples (...) muito famoso em Pernambuco”. O longo texto cita ainda um importante fazedor de mamulengos, o pernambucano Severino Alves Dias, mais conhecido como doutor Babau, e seu principal personagem, o Cheiroso. Na ocasião, Gonçalves compila cantigas do grupo, associando o gênero de suas histórias à farsa e à Commedia dell’arte. No final, ressalta que esta estética sobreviveria nas nossas feiras.
É também por esta época que a Escola de Teatro repercute na imprensa a reorganização do Rancho da Lua, antigo grupo nordestino, desativado há 46 anos. Na matéria do Diário de Notícias, Mestre Hilário das Virgens, autor do Rancho na cidade de Itaporanga, afirma que “a última apresentação (ocorreu) em Esplanada em 1912”. O grupo fez apresentação especial nos jardins da Escola de Teatro, em 09 de dezembro de 1958, sendo o fato divulgado no dia seguinte pelo jornal. A atração descrita como “simples e brejeira” acabou angariando o apoio da Rádio Sociedade para apresentações em diversos bairros da capital, através do projeto Sociedade nas praças. A matéria publica uma cantiga e ainda explica a diferença entre Rancho (mais pandego e democrático) e Terno (mais sério e aristocrático), contudo ambos grupos festeiros das solenidades de Natal. No espetáculo Uma Véspera de Reis na Bahia, apresentado em junho de 1960, os alunos da Escola apresentaram um Terno de Reis com músicas organizadas pelo Rancho da Lua. O fato também repercutiu na imprensa. Nota-se em todo texto publicado o cuidado conceitual de separar as peculiaridades de cada expressão.
Um ano depois, em 1959, já com a parceria da arquiteta Lina Bo Bardi, Martim Gonçalves mergulhará ainda mais nas raízes populares da cultura nordestina na Exposição Bahia, da V Bienal de São Paulo. A apresentação do evento, assinada por ambos, é publicada na capa do Letras e Artes, na edição de 11 e 12 de outubro de 1959. Na abertura do artigo, eles questionam as fronteiras habituais do que é ou não arte, recusam suas divisões em categorias estanques e afirmam o direito do homem comum em viver na plenitude de suas expressões:
“A grande arte que cederá seu lugar a uma expressão estética ‘não-privilegiada’, a produção folclórica, popular e primitiva perderá seu atributo (mais ou menos explícito hoje) de manifestação não-consciente ou de transição para outras formas, e significará o direito dos homens à expressão estética, direito esse reprimido há séculos nos ‘instruídos’”.
Na instalação cênica armada no Parque do Ibirapuera em São Paulo, flores de papel, objetos de barro, cumbucas, imagens de santos e carrancas ressaltam que a “vida cotidiana exprime poesia”, a depender do “jeito de se olhar as coisas”. Ainda segundo o texto, “não por mero acaso essa exposição é apresentada por uma Escola de Teatro, pois o teatro reúne todas as necessidades do homem estético”. A Bahia foi escolhida e eles explicam o porquê: “Apresentamos a Bahia. Poderíamos ter escolhido a América Central, Espanha, Itália Meridional ou qualquer outro lugar onde o que ainda chamamos de ‘cultura’ não tivesse chegado” (grifo nosso). Obviamente, cabe ressaltarmos que o conceito de cultura empregado por eles é sinônimo de civilização, de urbanidade. Este tópico merece maiores desdobramentos.
O cineasta Glauber Rocha, que também participou da organização do evento, dá sua versão, no artigo ‘Episódio Bahia na cidade de São Paulo’, publicado no mesmo caderno, no mesmo dia:
“Eu sempre pensei que o mal do artista brasileiro é sua consciência: ou ele renuncia ao vanguardismo, sacrificado por existência histórica em função de uma pesquisa de base (e aí poder oferecer daqui há dois séculos uma tradição) ou salta para a vanguarda e se liquida na curva do encontro com sua autenticidade. (...) a renúncia é um golpe de maior alcance e coragem”.
Afinada ao debate, no final deste mesmo mês, a Escola de Teatro inaugura na estréia de A Sapateira Prodigiosa,
“(...) uma exposição de arte popular em relação com as fontes de inspiração do grande poeta Garcia Lorca. Será uma manifestação do Museu Vivo que a Escola de Teatro inaugurou no saguão do teatro e que vem apresentando ao público uma série de exposições das mais interessantes sobre documentos da vida brasileira, a terra e o povo como também, exposição de objetos de arte brasileira e estrangeira” (Diário de Notícias, 27 de outubro de 1959).
O que notamos na pesquisa do mestrado já citada é que as demais escolhas de Gonçalves – trabalhar com o repertório internacional de textos, receber o apoio, inclusive financeiro, do governo americanos num momento de extrema polaridade da geopolítica mundial, menosprezar uma intervenção política mais imediata nas montagens – irão, aos poucos, ser privilegiada na cobertura dos jornais estudados, em detrimento ao trabalho que o diretor ainda realizava de investigação das raízes populares nordestinas e de formação de autores baianos. Chegando-se mesmo à tentativa de retirar de sua figura tais ações, transmitindo-a para sua parceira de projetos Lina Bo. Note-se, para maior investigação, as questões da autoria da própria exposição na Bienal de 1959 e a criação e supervisão de Martim Gonçalves para a Escola da Criança, em funcionamento no Museu de Arte Moderna da Bahia (então Mamb), no foyer do Teatro Castro Alves.

Jussilene Santana, dezembro de 2007

sexta-feira, dezembro 14, 2007

A MELODRAMÁTICA INDÚSTRIA CULTURAL


O século passado foi o momento da história onde mais de perto a arte teve que se relacionar enquanto produto, num sistema de funcionamento abertamente capitalista, no ocidente.
A Escola de Frankfurt, com seus grandes filósofos de tendência abertamente marxista, foi quem primeiro se debruçou sobre esta questão, pondo na ordem do dia a relação arte e capital, produto, moeda.
Foi desta Escola, mais precisamente de Theodor Adorno, que surgiu a expressão “Indústria Cultural”. Feliz achado que cunharia todo o processo de capitalização da criação artística, momento em que “elementos inconciliáveis da cultura, arte e divertimento” acabaram por ser “reduzidos a um falso denominador comum” (ADORNO, 2007: p.29), numa desesperada tentativa de fisgar o público fugidio, por um lado, e numa esperta tentativa de lucrar a partir do entretenimento, por outro.
A estandardização e a produção em série, analisadas por Adorno, foram insistentemente estimuladas para uma uniformização do produto; numa clara relação com o processo industrial que revolucionou e instaurou o capitalismo no mundo. Processo de padronização, este, que pudesse agradar a todos e ser produzido e reproduzido de forma sistemática, para atender a uma demanda de venda e retro-alimentar o sistema.
A lógica capitalista, estreitamente ligada à lógica burguesa e – como bem analisa Weber – à protestante, também, já começa a aparecer no teatro durante a ascensão das classes menos favorecidas e não-nobres, durante a Revolução Francesa. Neste período, surge o Melodrama, um estilo de teatro “para este público novo, em sua grande maioria inculto, no qual se desejava inculcar certos princípios de sadia moral e boa política” (THOMASSEAU, 2005: p.28). É uma mentalidade nova que surge, atrelada à ética protestante onde “o trabalho profissional sem descanso como o meio mais saliente (...), ele, somente ele, dissiparia a dúvida religiosa e daria a certeza do estado de graça” (WEBER, 2005: p.102), onde a ascese religiosa estava intimamente ligada ao ganho, ao lucro: era a mentalidade da predestinação através da bem-aventurança em vida. Os eleitos seriam os “bem-de-vida”.
A moralidade surge também como forma de proteger o patrimônio, a propriedade, através da legitimidade genética, financeira e social, e não é por acaso que a moralidade está intimamente ligada à ideologia do Melodrama.
A produção em série, desenfreada e desesperada dos autores do período, se valendo de formas, fórmulas e técnicas conquistadas a partir do drama burguês e de um estudo corrompido da poética de Aristóteles – que viria a ser o cânone do teatro bem feito – é curiosamente refletida no caráter descartável de tais produtos, aqui chamados propositalmente por este nome. As peças ficaram pra história da dramaturgia apenas como exemplos de um período, não mais sendo montadas, esporadicamente lidas.
Neste período parece girar na cabeça dos artistas de teatro o germe de uma indústria cultural, as cifras de um lucro fácil e sedutor, um teatro cheio de bailados, artifícios, efeitos, mágicas.
É bom lembrar que “assumindo o trono”, as classes não-aristocráticas passam a não mais trabalhar com o sentido do mecenato, as tradicionais famílias perdem suas riquezas e o paroxismo disso parece ser o século XIX, onde toda a Europa passa a explorar matéria-prima através da colonização e se concentra em girar seu capital todo em torno da indústria; terra e títulos perdem seu valor, e o mecenato é trocado pela necessidade direta do artista de vender sua obra.
“Para todos alguma coisa é prevista, a fim de que nenhum possa escapar; as diferenças vêm cunhadas e difundidas artificialmente” (ADORNO, 2007: p.11), e a arte passa a uniformizar-se em seus padrões, buscando o entretenimento e esquecendo o caráter particular da arte de ser espaço de subjetivação, transgressão e questionamento. “Divertir-se significa que não devemos pensar, que devemos esquecer a dor, mesmo onde ela se mostra” (ADORNO, 2007: p.41). Assim, o artista se torna um manipulador de fórmulas que agradem o público; seu produto precisa ser vendido.
A fórmula cheia de qüiproquós do Melodrama, com seus vilões, donzelas, irmãos trocados, questões financeiras, moralismos exacerbados e questões religiosas, dentro de uma estrutura matematicamente elaborada de reconhecimentos, títulos e perseguições, parece ser uma herança da qual o teatro não consegue nem quer se desvencilhar. Levado para a televisão e para o cinema, as doses são ainda mais cavalares, e tudo dentro de uma perspectiva industrial, de venda e consumo – se possível imediato – para fazer girar o capital, mola-mestra do nosso sistema.
Curiosamente, a excentricidade procurada na arte teatral – que tem sua origem nas representações populares e medievais, nas alegorias, no grotesco, no ritual e no simbólico – é um outro lado da mesma moeda, no que tange às questões do consumo e do produto.
Em sua maioria, “aquele que resiste só pode sobreviver integrando-se. Uma vez registrado em sua diferença pela indústria cultural, já faz parte desta” (ADORNO, 2007: p.23). Adorno vai, inclusive, refletir sobre a eventual liberdade dada pelo capitalismo: “A liberdade na escolha das ideologias, contudo, que sempre reflete a pressão econômica, revela-se em todos os setores como liberdade do sempre igual” (ADORNO, 2007: p.73).
Basta ver como certos artistas, portando a bandeira de diferentes e transgressores, num instante passam a fazer de sua excentricidade sua moeda de troca, num jogo de interesses onde – ao invés de superar-se em busca de novas linguagens e novas estéticas – o artista vende sua diferença como exótico animal de um circo imaginário.
Parece quase impossível sair das teias visguentas da indústria, e parece desesperador se ver defrontado com um impasse do artista sobre sua criação, sua sobrevivência e a busca do público. Saliento aqui o fato de que a arte deve comunicar, de alguma forma, para que ela possa se realizar, no teatro, a partir da premissa de que não se faz teatro sem ator e público, mas há algo na própria filosofia do artista contemporâneo que está contaminada, talvez, do pensamento comum.
É justamente neste ponto que se encontra a pedra de toque, a meu ver, para a possibilidade de saída do artista. O que mais vemos são obras que – a despeito de sua estética contemporânea, pós-dramática, extravagante ou visceral – encontram-se subliminarmente vinculadas a uma ideologia capitalista, religiosa, politicamente correta, bem como a uma resolução melodramática dos fatos que corrobora o caráter moralista, como bem diz Adorno: “A moral da cultura de massa é a mesma dos livros para rapazes de ontem, embora ‘aprofundada’” (ADORNO, 2007: p.52). Este caráter mais “aprofundado” que Adorno coloca pode ser visto de várias maneiras.
O teatro, assim como toda manifestação humana, obviamente, teve que ir se adaptando às revoluções científicas, filosóficas e estéticas que já se encontram sob o conhecimento, aceitação e conformidade do senso comum; quase que como regras de etiqueta à mesa das refeições fast-food.
A perda da inocência é algo que – qual bola de neve – se torna uma avalanche periódica na sociedade. Perde-se a inocência a partir de descobertas científicas, do desvelamento de fatos já sabidos, mas escondidos da sociedade, das mudanças tecnológicas, das informações da mídia, das revelações históricas. Com isso, perde-se também o olhar inocente, na arte. Faz-se então necessário que determinadas temáticas se adequem às novas realidades e morais de um período.
Seria muito ingênuo da parte de nós artistas – pra me utilizar da mesma palavra em questão – achar que novas temáticas que surgem, e como são tratadas, servem muito mais como transgressão do que como adequação à satisfação geral.
Falar de travestis, homossexuais, negros, poder feminino, políticos corruptos e desigualdade social são bolas da vez que surgem nas telas e palcos sob os aplausos de uma classe artística que cada vez mais se adequa ao gosto comum, ao pensamento medíocre da sociedade atual.
Podemos também ver obras onde, por exemplo, o vilão se dá bem no final. Ao invés de uma subversão do melodrama, podemos ver aí um artifício que ecoa na cabeça do público como: “olha como essa obra reflete nossa sociedade injusta”. Mas por trás disso não há nenhuma transgressão, relativização, subjetivação. O vilão se dá bem porque assim querem ver os espectadores ávidos por comprovar – num claro espelho da sociedade – que na ficção também acontece o mesmo que no jornal da noite. Fica claro e evidente que a arte perde seu caráter único de ser um espaço deslocado do lugar-comum.
É muito triste ver alguém analisar um mero subproduto artístico como algo inventivo e novo, por tratar de questões que o jornal da noite, as mesas de bar, as revistas semanais e a novela das oito estão tratando também. É a uniformização da arte, como produto e como idéia mediocrizante. Diz-nos Adorno:

Adequando-se por completo a necessidade, a obra de arte priva por antecipação os homens daquilo que ela deveria procurar: liberá-los do princípio da utilidade. Aquilo que se poderia chamar o valor de uso na recepção dos bens culturais é substituído pelo valor de troca, em lugar do prazer estético penetra a idéia de tomar parte e estar em dia... (ADORNO, 2007: p.61)

O princípio da utilidade, na arte, é visto aqui por Adorno como problematização para o real lugar da arte, que segundo Ortega y Gasset é o lugar que não é o humano, está para além do cotidiano, do usual, do que é esperado, aceito, moralmente e eticamente em consonância com o pensamento comum.
Mas a arte vem servindo como espelho da sociedade, e se basta assim, para ela. Já não se sabe o que a publicidade herda da arte (e vice-e-versa), o que a arte herda dos movimentos sociais (e vice-e-versa), o que os movimentos sociais herdam das revistas semanais e assim por diante, num rizoma negativo de fatos que superficializam e uniformizam as linguagens, e consequentemente, viram “as formas do surpreendente e todavia familiar, do leve e contudo incisivo, do especializado e entretanto simples” (ADORNO, 2007: p.69) que vão caracterizar a arte do século passado.
Não é, portanto, irresponsável perceber e assinalar no germe do capitalismo e do estabelecimento da burguesia o que viria a se tornar a indústria cultural do século XX, que procurou uniformizar e usar fórmulas para atrair o público, e – mais especificamente no teatro – um comportamento, técnicas e uma ideologia que surgem no teatro burguês e vão se firmar com o melodrama; teatro especialmente feito para uma classe ignara e que tem como princípio a ascensão e a circulação de capital.
“Senso crítico e competência são banidos como presunções de quem se crê superior aos outros, enquanto a cultura, democrática, reparte seus privilégios entre todos” (ADORNO, 2007: p.26,27). Tudo isso sobre a aprovação do “funesto apego do povo ao mal que lhe é feito” (ADORNO, 2007: p.26).
Antes de tudo, é preciso ter olhos de madeira, como os de Pinóquio, e tentar olhar de fora como se configura a sociedade. O grande intelectual, o grande artista e o grande filósofo têm a capacidade de perceber as dissonâncias da sociedade, a coisificação, a massificação, a mediocrização, tudo que a corrompe, deforma e uniformiza, e – com estes olhos de madeira – criticar, desvelar e expor as mazelas da sociedade.
O artista tem que descobrir a tragédia do seu tempo.

BIBLIOGRAFIA:

ADORNO, Theodor. Indústria cultural e sociedade. Editora Paz e Terra. São Paulo, 2007.
ORTEGA y GASSET, José. A desumanização da arte. Cortez Editora. São Paulo, 2005.
THOMASSEAU, Jean-Marie. O melodrama. Editora Perspectiva. São Paulo, 2005.
WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Editora Schwarcz. São Paulo, 2005.

sexta-feira, dezembro 07, 2007

Xmas qdo kiseres

TEATRO/leitura dramática
Mundo marginal adolescente


Xmas Qd Kiseres, do português Jorge Louraço, ganha leitura dramática dirigida por Gil Vicente Tavares nesta segunda, 10, às 18h30min, no Teatro Martim Gonçalves. Entrada franca.
A propósito dos 200 anos da chegada da família real no Brasil, que se comemora a partir de janeiro, o Ciclo de Leituras Dramáticas da UFBA escolheu o novo teatro português como tema. Xmas Qd Kiseres encerra a prévia de três leituras dessa nova dramaturgia completamente desconhecida no Brasil. A direção é do diretor e também dramaturgo Gil Vicente Tavares com os atores (na foto durante ensaio) Jussilene Santana, Igor Epifânio, Ricardo Fagundes e Mariana Moreno.
Em janeiro, quando deverá realmente acontecer o Ciclo com a realização de palestras, leituras e a visita de um dramaturgo português convidado, haverá uma nova oportunidade para se conhecer melhor o universo do novo teatro lusitano. O encerramento do ciclo será às vésperas do aniversário do evento que mudou a história do Brasil, no dia 21 de janeiro, com a palestra da professora Ângela Reis (Escola de Teatro da UFBA) sob o tema Brasil e Portugal: intercâmbios no campo da atuação nos séculos XIX e XX.
A respeito da realização da escolha da nova dramaturgia portuguesa como tema, o cônsul de Portugal em Salvador, João Sabido Costa, escreveu: "Foi com muito agrado que tive notícia da realização, pela Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia, de um ciclo de leituras dramáticas dedicado à nova dramaturgia portuguesa, iniciativa que vem retomar e prosseguir uma tradição de intercâmbio e influência mútua mantida pela expressões dramatúrgicas e teatrais da Bahia e de Portugal ao longo dos séculos”.
Há diferenças muito particulares na nova dramaturgia portuguesa que devem despertar o interesse não só no público, mas em estudantes e teóricos de teatro. “Apesar do tema da marginalidade adolescente ser muito comum, o modo como Jorge Louraço enfoca em sua peça difere muito de como a cultura brasileira aborda essa problemática. Ele não faz um discurso direto, investe numa relação poética entre uma professora e dois adolescentes marginais para tratar do assunto”, diz Gideon Rosa, coordenador do Ciclo."
O diretor Gil Vicente Tavares diz que “o que mais me chamou a atenção no texto Xmas qd quiseres foi o caráter ingênuo do texto e dos personagens, e minha experiência em Portugal me ajudou a compreender uma realidade bem distante da brasileira”. O autor, Jorge Louraço, explica a escolha dessa abordagem dizendo que “era o drama humano das personagens que me interessava e, sobretudo, o retrato e a inocência dos marginais”.
A PEÇA
É Natal. Xmas é a história da aposta entre uma ex-professora e dois ex-alunos, numa situação extrema, num bairro de excluídos. Segundo o diretor e estudioso de teatro Antônio Mercado, a temática do universo adolescente marginal já tinha sido vista em outra peça de Louraço (O Espantalho Teso). Mercado diz que o autor tem sido atraído pelo universo dos perdedores, dos rejeitados, dos marginalizados pela ordem social, uma das principais vertentes do drama moderno, inaugurada pelo Woyzeck, de Büchner. Interessante observar que em Xmas Qd Kiseres os marginais apontam têm um sonho e isso revela a possibilidade de uma saída. Na opinião de Mercado é a luta para superar situações de injustiça, confinamento e impotência num mundo hostil e aparentemente inexpugnável; a necessidade de inverter as regras para fazer das fraquezas força; a capacidade de vencer um jogo sujo com os próprios meios, por mais frágeis e precários que sejam, e através deles criar um espaço de vida no lugar onde as nossas raízes estão fincadas.
FICHA TÉCNICA
O quê: Leitura Dramática – Xmas Qd Kiseres
Autor: Jorge Louraço
Diretor: Gil Vicente Tavares
Elenco: Jussilene Santana, Igor Epifânio, Ricardo Fagundes e Mariana Moreno (rubricas)
Quando: Dia 10, às 18h30min
Onde: Teatro Martim Gonçalves – Escola de Teatro
Ingresso: Entrada franca
(Texto de divulgação escrito por Gideon Rosa)
Postado por Jussilene Santana