terça-feira, abril 15, 2008

Deu no www.nacoco.com.br... (clique aqui pra ter acesso ao texto original)

O absurdo nosso de cada dia
Por Beth Ponte

Esquetes e textos incoerentes, desprezo à narrativa e à linearidade. Situações surreais encaradas de forma doméstica, enquanto o trivial e o cotidiano representam a total falta de sentido. O teatro do absurdo se destacou por romper a delicada fronteira entre o mais natural fascínio pelo incompreensível e a mais inevitável aversão ao ininteligível, que existe em cada um dos homens comuns.
Ao ver "Os Javalis", peça de Gil Vicente Tavares em cartaz na Sala do Coro durante o mês de abril, a primeira pergunta que me ocorreu foi: terá o teatro do absurdo envelhecido, saído de moda? Estará o absurdo démodé? Em absoluto. O absurdo é atual, é presente, é a pauta do dia no mundo em que vivemos. Como imaginar um teatro do absurdo que não tenha lugar nele?
A própria linha temporal seguida pela montagem de Gil Vicente confirma a eterna atualidade do tema. Há 50 anos atrás, o romeno Eugene Ionesco, escrevia a peça "O Rinoceronte", referência do teatro do absurdo. Há 10 anos, o jovem dramaturgo Gil Vicente escrevia "Os Javalis", texto inspirado direta e livremente na obra de Ionesco. E hoje, uma década depois a peça, terceiro projeto do Teatro NU, núcleo formado por Gil Vicente e pela atriz Jussilene Santana, estréia em Salvador em sua primeira montagem.
O primeiro destaque da montagem está na escolha precisa do elenco, formado por Carlos Betão (de “Josefina, a cantora dos ratos”, “Volpone”, “Hamlet”) e Marcelo Prado (de “Hamlet” e do monólogo “Eu”). Expressivos e seguros, a dupla dá vida ao humor seco e à critica presentes no texto. A equipe envolvida no projeto também merece destque e mostra as possibilidades transversais das linguagens artísticas, contando com nomes como os artistas plásticos Gaio, que criou imagem de divulgação da peça, e Euro Pires, que assina o figurino e o cenário sóbrio e escuro que confere uma atmosfera essencial ao espetáculo, além da participação do músico Luciano Bahia, responsável pela trilha e efeitos sonoros.
O enredo inicia-se com a invasão de um vendedor de produtos de limpeza à casa de um senhor pacato em pleno domingo. A razão da invasão é bastante simples: os javalis estão chegando. Traíram as forças armadas, tomaram o poder e comeram todos e tudo. Inclusive a mãe do pacato senhor. No peça de Ionesco, que serviu de franca inspiração ao autor, são rinocerontes que começam a correr pelas tranqüilas ruas parisienses, sem nenhum espanto dos transeuntes e moradores.
O texto, tanto em Gil quanto em Ionesco, é muito mais metafórico que propriamente absurdo, se comparado ao teatro radical de Beckett, por exemplo. Os javalis ou os rinocerontes podem representar a invasão do mercado e do consumo desenfreado, em uma visão mais ortodoxa e até obvia, ou então a ascensão descontrolada de novas e perigosas instâncias de poder na sociedade. Os javalis podem ser o próprio poder da violência e suas múltiplas raízes e representações sociais. Os javalis podem ser outra coisa, podem ser mais. Aí reside a licença do absurdo, para o qual a metáfora pode ser um simples veículo.
O enredo cíclico da peça mostra, por sua vez, a característica mais assustadora do absurdo: sua capacidade de se repetir e de conseqüentemente se banalizar, se cristalizar. Este sempre será o maior motivo para crer que o teatro do absurdo não deixará de exercer ainda forte influência nas nossas representações do mundo, no palco ou fora dele. Além disso, a encenação de "Os Javalis" em plena Bahia, em pleno ano de 2008 ainda torna o termo “teatro do absurdo” quase redundante. Pois afinal, em termos práticos absurdo é fazer e viver de teatro. E em termos reais, o verdadeiro absurdo seria viver sem ele.


*Foto do espetáculo por Jonathas Araújo

segunda-feira, abril 14, 2008

A equipe artística d´Os Javalis, no dia da estréia

Da esquerda para a direita: Euro Pires (cenógrafo), Eduardo Tudella (iluminador), Gil Vicente Tavares (autor e diretor), Carlos Betão e Marcelo Praddo (atores), José Jackson (assistente e sonoplasta) Anderson Alan (sonoplasta) e Luciano Bahia (trilha). Ao fundo ainda vemos uma de nossas produtoras, Mônica...

Texto de Eduardo Tudella, iluminador da peça Os Javalis, sobre seu processo de criação


Conceitos para a Luz
Eduardo Tudella



Ouvi, certa vez, comentário proferido por um, assim chamado, iluminador, que soou inquietante; acentuava ele como é importante considerar que a luz (no teatro), é feita do nada. Ainda que não tenham sido essas, exatamente, as palavras, tal foi a impressão que restou da curiosa assertiva. Para aqueles familiarizados com a questão parece óbvio que o “iluminador” pretendia dizer muito mais do que pode parecer, quando se isola tal afirmação do contexto. O profissional considerava o fato de não ter à sua disposição a fisicalidade das texturas e cores dos diversos materiais aplicados por cenógrafos, figurinistas, maquiadores, entre outros artistas, no estabelecimento do diálogo criativo em direção ao evento cênico. Ele procurava acentuar a impalpabilidade do seu elemento, a luz.
Ora, isso pode parecer sem importância, num certo sentido, mas torna-se curioso quando se avalia que, nesses tempos nos quais nos deparamos, ainda, com o “antigo” drama em muitas bibliotecas, e contamos com teimosos encenadores a levá-los ao interior dos seus espetáculos, o que menos se espera do público é uma relação táctil com a cena. E, mesmo alentado o desejo obsessivo de muitos artistas no caminho de promover status de fruidor para o seu espectador, quando sentimos pela última vez a textura da alva face do jovem Hamlet[1]? Ou, quem testemunhou a frieza da lamina da espada de Don Giovanni a espetar o Commendatore[2]? Exerce, sim, o espectador, um papel de devorador visual, também. O que pode sugerir ao responsável pela contribuição da luz ao espetáculo alguma investigação acerca do “nada” mencionado acima.
Onde se poderia buscar algo capaz de atuar como elemento deflagrador do processo que promova a interação da luz, na cena? Pareceu-me pertinente a referência presente já na denominação da obra: o que teria levado o jovem Gil Vicente Tavares a intitular o seu texto Os Javalis? Sublinhando-se uma livre inspiração em Ionesco essa já representaria uma importante ramificação proposta pelo texto dramático.[3] Pode, portanto, ficar latente a intenção deliberada de dialogar com o texto francês, discutindo aspectos de uma inquietante transmutação, de semelhante violência. Tal decisão já pode configurar provocação para a luz: em primeiro lugar pelas imagens reservadas na memória do leitor, desde os primeiros anos da educação formal quando se deram os contatos iniciais com a figura do javali. Acrescente-se a isso visitas a museus de história natural, filmes e experiências diversas a alimentar o seu imaginário.
A dramaturgia de Gil Vicente, no entanto, confere estranhas características, acentuado e particular poder à espécime “javalinesca” que ali transita. Muito além daquele descrito pelos compêndios, assim como observado nas demais experiências mencionadas no parágrafo precedente. Tais poderes surpreenderiam até mesmo os habitantes da Província de Zhejiang, no leste da China, que tiveram uma das suas universidades invadidas por enormes javalis, de aproximadamente 200 kg, que se puseram a devorar toda a comida que encontravam[4]. Ao que parece, a invasão de javalis a instituições de ensino, já não representa tão somente momentos da ficção.
E, se isso não basta para implodir o “nada” tratado no primeiro parágrafo, observe o leitor, com acuidade, a poesia de Gil Vicente para se surpreender na familiaridade das habilidades dos seus vorazes espécimes. A réplica número 08 define: o javali é um porco feroz. Mais adiante, toma-se conhecimento que as feras “comeram a cabeça de todo mundo” e que essa voracidade se revela sedutora, de modo contundente, através de propostas de alianças no intuito de destruir aqueles considerados inimigos.
A ameaça alcança requintes de brutalidade quando o Homem B revela:
Pareciam homens, de longe. Só de perto é que se via o quanto eram repugnantes.
Esses “homens”, portanto, não passam de hospedeiros tendo como sua verdadeira identidade uma fera cruel. Que homens serão, ainda, por sorte, meramente homens? Tal universo exige olhar atento. O que poderia ser mais assustador?
E, que sítio é esse no qual javalis escondidos dentro dos homens comem cabeças, escravizam, incorporam à sua natureza armas destruidoras? Como revelar, na cena, esse ambiente? Tarefa desafiadora. Sem a decisiva e particular contribuição da luz, impossível. Que “luz”, então, seria essa, capaz de efetivar a revelação de tal ambiente? Que atmosfera é exigida pela ação dramática no jogo com as diversificadas poéticas a dialogar na cena? Tanto do diretor, quanto do cenógrafo e do figurinista. Do ponto de vista da relação visual fruidor-evento cênico a luz é o traço de união definitivo entre tais aspectos. Uma espécie de elo intra-poéticas. Esse contexto parece promover um elenco consistente de provocações para o responsável por criar a luz que incidirá sobre o objeto, construindo a cena.
Como responderia o artista a tais provocações? Esse universo sugere um tratamento que afirme crível e consistente o ambiente da ação e, simultaneamente, revele certo grau de estranheza. Ou seja, o nível de verossimilhança deve construir desconfiança, questionamento do fruidor acerca de onde esse embate ocorre. Afinal, que lugar seria capaz de abrigar uma organização social cujos membros devem fitar atentamente seus pares no intuito de se certificarem que dentro do outro, não se esgueira um javali? Se, na dramaturgia, o espaço do Homem A é uma espécie de refúgio dividido com sua principal companhia, a solidão, escondendo compartimentos proibidos para as indesejáveis visitas, a ceno-grafia de Euro Pires introduz certo grau de “impessoalidade”, “quasi-industrial”, que abre inúmeras possibilidades para a atuação luz.
Na presente montagem, elegeu-se, então, um enfoque que investe na frieza dos matizes, em movimentos com nível de realidade muito reduzido e contundência nos ângulos – gerando, através da narrativa das sombras, contribuição substancial para a estranheza proposta, já na dramaturgia e construída, artificialmente, na encenação.


[1] Refiro-me ao Hamlet, de William Shakespeare.
[2] Trato aqui do momento na qual o pai de Donna Anna é ferido mortalmente por Don Giovanni, na ópera homônima, de Mozart, cujo libretto tem como autor Lorenzo da Ponte.
[3] Eugene Ionesco, Os Rinocerontes, escrita em 1960.
[4] http://noticias.terra.com.br/mundo/interna/0,,OI2054665-EI10495,00.html

terça-feira, abril 01, 2008

Os Javalis, nossa terceira produção

Os Javalis é a terceira produção do Teatro NU. Em menos de dois anos, apresentamos ao público de Salvador o espetáculo Os Amantes II, com texto e direção de Gil Vicente Tavares, comigo, Jussilene Santana, e os atores Carlos Betão e Carlos Nascimento no elenco, e organizamos o Ciclo de Entrevistas Memória do Teatro na Bahia, evento que reuniu parte dos primeiros atores profissionais do estado, no Instituto Cervantes, em outubro passado. Em paralelo, muitos textos, fotos e debates movimentaram a nossa sede virtual, o blog http://teatronu.blogspot.com que inicia o mês de abril com cerca de 11 mil acessos!! Em 2008, temos ainda projetos de peças, leituras e muita discussão. Com a montagem d'Os Javalis, esperamos dar continuidade ao projeto de investigação da dramaturgia contemporânea, trazendo à cena um texto instigante, atual e que dialoga com diversas tradições teatrais que abalaram o século XX.
Jussilene Santana

Na foto de Marcelo Gadelha: Gil Vicente Tavares e Jussilene Santana

Sobre o texto...


Escrevi Os Javalis em 1998, exatamente há dez anos atrás. Eu era um menino (era?) preocupado com o mundo que se agigantava à minha frente, e tentava compreender e problematizar a realidade através da arte.

Meu pai sempre me dizia que o artista deveria perceber a tragédia de sua época, de sua geração. E dez anos depois as coisas se modificaram pra ficar exatamente do jeito que estavam. O gigante mundo se transformou num ciclope tonto e faminto, qual na Odisséia, e eu fico de cá, ainda, tentando ser persuadido pela letárgica sociedade rendida de que tudo não passa de moinhos de vento.

Demorei para ouvir a recomendação de Ewald Hackler, de que eu deveria montar meus próprios textos. E, infelizmente, dez anos depois, ainda sinto necessidade de montar Os Javalis.

Espero que vocês compreendam o porquê.

GVT.