quarta-feira, setembro 29, 2010

Trânsito e cidade I


Às vésperas da eleição, uma enorme vontade de falar sobre a pobreza política que nos assola me veio à mente. Mas o nível de ridículo a que se chegou a política, e a forma vulgar como o assunto passou a ser tratado desmereceram, pra mim, um espaço de discussão.

Enquanto pensava nisso, andava pela cidade de carro com uma reflexão que há tempos venho amadurecendo sobre um comparativo entre a relação do homem com o trânsito e com a cidade. Mais animado ainda fiquei quando soube de um novo livro do antropólogo Roberto DaMatta tratando sobre o tema.

Gentileza gera gentileza. E esse é um dos fundamentos do trânsito que são mais desrespeitados. O soteropolitano dificilmente desacelera o carro pra alguém sair da garagem ou pra que alguém passe em sua frente por necessidade de entrar numa rua ou retorno. Parece que fere a masculinidade (tanto do homem quanto da mulher, no sentido figurado do termo) de quem dirige. Ser ultrapassado, dar passagem é humilhante. Você pode não estar com pressa, pode até andar a 60km/h, mas ao ver a possibilidade de ser ultrapassado, a chance de dar passagem, a situação de alguém saindo da garagem, acelera-se a 80km/h sem piedade.

O descompromisso com o outro também é evidenciado ao não se ligar o pisca alerta para se mudar de pista, entrar nalguma rua ou estacionar. Esse aviso serve a quem vem atrás, ao pedestre que aguarda algum sinal pra saber se pode atravessar, e é comumente ignorado porque o soteropolitano é esperto, ágil e o outro que se dane; faço minha manobra a hora que eu quiser e quem bate no fundo perde a razão e quem morre atropelado é o outro.

Não existe coisa mais irritante, também, do que ver o motorista que, numa pista de 70km/h, anda a 50km/h na pista da esquerda; que é a de velocidade. As pessoas além de descumprirem uma regra, ainda se colocam na postura de “olha como esse irresponsável quer correr, enquanto eu estou correto em dirigir lentamente”. Ora, a pista da esquerda é para ultrapassagem e para a mais alta velocidade permitida pela placa do local. E para completar, diversos são os motoristas que só resolvem passar pra pista correta – a que ele vai precisar estar para entrar numa rua, pra fazer um desvio, pra estacionar – na última hora. Com isso, o trânsito é amarrado. São seguidos os engarrafamentos aparentemente inexplicáveis oriundos de maus e/ou irresponsáveis condutores.

Abrir a janela do carro pra jogar papel fora nem se fala. Parece que o sujeito se sente em seu mundo, dentro do veículo, e o exterior é um limbo abjeto e que não lhe pertence. Se começarmos a somar a isso tudo o excesso de buzinadas inúteis, o não parar na faixa de pedestre, os gestos obscenos dos machões que fazem irresponsabilidades no trânsito e se sentem mais machões ainda quando ofendem além de ser irresponsáveis, a lista começa a aumentar. O desrespeito aos semáforos, às faixas de pedestre e a esperteza daqueles que decoram onde ficam os radares pra poder andar noutros trechos acima da velocidade permitida são coisas tão graves e óbvias que nem preciso discorrer sobre elas. E aí pensamos no ouvir som alto em locais públicos, estacionar em qualquer canto obstruindo calçadas e desrespeitando placas, e soma-se a isso tudo a irresponsabilidade do pedestre.

Trânsito e cidade II


Em Salvador, as pessoas atravessam em qualquer lugar, correm risco de morte, mas estampam o sorriso esculhambado e faceiro que tanto encanta turistas e folcloristas irresponsáveis, sorriso que devia continuar estampado no rosto mesmo depois de um atropelo. Mas, a partir do momento de um “tá lá um corpo estendido no chão”, o motorista passa a ser o criminoso e o pedestre a vítima. Começam fábulas sobre as irregularidades de velocidade, etc, sobre o motorista; nos casos onde este sequer tem culpa. As culpas dos condutores são discorridas acima.

Outro problema sério decorrente disso é que a cidade se enche de semáforos, que tornam o trânsito lento, devido aos protestos de seguidos atropelos em locais com passarelas. O soteropolitano quer ser esperto, tem preguiça de atravessar uma passarela numa pista de alta velocidade, e ainda protesta se ocorre atropelo. Aí, queimam pneu, põem faixa, gritam, e vencem numa subversão da lógica que é simples; seguir a ordem pra não sofrer com a infração. Mas a irregularidade baiana vence.

Vivemos numa cidade cada dia mais feia. Numa cidade onde as opções de voto são ridículas, políticos desinformados, ignorantes, com discursos prontos sobre segurança, saúde e educação, mas sem propostas efetivas e inteligentes; pra não falar da cultura. Entrevistei três prefeituráveis, há dois anos, e foi uma lástima. Eles não sabiam absolutamente nada sobre cultura e arte em Salvador, nem tampouco sabiam o que fazer com o potencial incrível que essa cidade tem através de seus músicos, atores, artistas plásticos, cineastas, etc.

Mas temos sempre que lembrar que políticos não brotam do chão (se brotassem, seria do esgoto). Eles são cidadãos que têm a mesma atitude que nós todos, soteropolitanos, temos no trânsito. E que refletem, exatamente, a falta de cidadania, de gentileza, de preocupação com o espaço público, com a boa convivência, com o respeito, o desenvolvimento, a civilidade.

Nosso comportamento no trânsito reflete metonimicamente nossa pobreza cidadã. E assim vamos atropelando a possibilidade de uma civilização menos injusta, menos individualista, menos irresponsável. E assim vamos sendo atropelados por políticos que não dão sinal, atravessam fora da faixa, não respeitam o outro, andam lentos na pista de velocidade, e Salvador vai sendo a selva, a Selvador que tanto falo.

domingo, setembro 19, 2010

A.R.T.E e iniciativa privada


A relação entre iniciativa privada e o teatro feito em Selvador se esboroou. Em alguns setores, regrediu, em outros, não avançou.

A idéia de fortalecer um Fundo de Cultura do Estado da Bahia veio estimulada pela idéia nacional em torno da cultura. Seguidas reuniões abominavam a Lei Rouanet por ser esta uma lei que, a partir da isenção de 100% em impostos, fazia com que empresas não precisassem tirar do próprio bolso pra realizar eventos que promovessem a marca da empresa. Peças com globais, árvores de natal, apresentações musicais de artistas consagrados, tudo isso promovia as empresas sem que elas precisassem tirar um centavo real do bolso, economizando nas verbas de márquetim e afins.

No âmbito estadual, o Fazcultura, através da isenção de ICMS, foi uma lei criada para que a empresa entrasse com 20% de capital próprio. Algo mais “justo”, visto que uma parte da verba seria da iniciativa privada. Pensando que num projeto de 100 mil reais a empresa entraria com 20 mil reais, com isso ela teria sua marca vinculada a um projeto de longa duração, entre ensaios e apresentações, com divulgação espontânea através de outdoors, banner, chamadas em rádio e TV. Além disso, promoções no local da apresentação, com áudio e mídia divulgando a marca e os atores agradecendo ao final do espetáculo. Um retorno considerável levando-se em conta a circulação média de 150, 200 pessoas por dia no local de apresentação.

Mesmo assim, muitas empresas passaram a patrocinar através do Fazcultura com a exigência de devolução dos 20% que entrariam de seu próprio bolso. Os artistas, mendigos de verba, passaram a aceitar, e as empresas passaram a burlar a lei e se locupletar da isenção de impostos sem investir no produto artístico. As poucas que ainda faziam e fazem; com exceção, é claro, das que sensibilizadas investem integralmente e de forma louvável, diga-se de passagem.

Essa falcatrua estimulou mais ainda esse fortalecimento do Fundo de Cultura. Só que entramos num retrocesso, com isso. Empresas mistas, principalmente (estaduais e privadas), tais como Bahiagás e Coelba, que tinham editais próprios e financiavam através do Fazcultura, aplicaram seu capital no fundo. Com isso, Selvador perdeu de ter alternativas de subvenção, um calendário mais rico de atividades e oportunidades para os artistas.

Atualmente, um único edital de montagem acontece, tendo que contemplar capital e interior (416 municípios). O que significa que de uma única cartada, uma comissão de três pessoas vai escolher quem fará teatro com o mínimo de dignidade pelo restante do ano.

Apesar da qualidade do nosso teatro ter caído vertiginosamente (conferir os artigos Memórias de um teatro desandado I, II e III), Selvador ainda possui artistas de qualidade que se digladiam por um único edital onde, naturalmente, alguns bons projetos ficarão de fora em detrimento de outros bons que são aprovados (ou não). A multiplicidade de editais fazia com que fosse mais fácil viabilizar projetos, visto que um podia ganhar num edital, e outro projeto ganhar noutro edital, assim havendo uma real distribuição de verbas. A concentração no Fundo de Cultura acabou por limitar, ao invés de ampliar, a produção local.

É público e notório que o empresariado baiano não tem cultura, sensibilidade, nem visão a longo prazo para dialogar com a cidade e seu crescimento subjetivo, seu capital simbólico. Investe-se nas festas de bloco, nos camarotes de carnaval, e poucas empresas, como as de telefonia, ainda realizam eventos que sejam distintos da cultura de massa e do oportunismo capitalista.

Aliado a isso, grandes empresas que investem nos centros do país, como os centros culturais do Banco do Brasil, Correios, as salas de teatro e de espetáculos musicais da Credicard, da Oi, galerias, enfim, nada disso chega a Selvador. Todas essas alternativas de produção e realização inexistem e inviabilizam que as artes em Selvador possam ter mais alternativas do que a centralizadora e única opção de subvenção através do Fundo de Cultura; visto que a relação da prefeitura com a cultura é uma negação, uma palhaçada que deveria se tornar um escândalo nacional, mas na terra do deixa-disso as coisas vão passando e a vida passando por cima da gente...

Vale ressaltar que, a despeito do bom funcionamento do Teatro SESC-Pelourinho, o SESC não investe na cultura soteropolitana. Costumo fazer a piada (e é um óbvio exagero) que se os poderes públicos cortassem toda a verba pra cidade de São Paulo, mesmo assim eles teriam uma arte pujante com as realizações dos SESCs que pululam pelos quatro cantos da capital.

Só acredito num movimento de cima pra baixo. Achar que a sociedade civil vai se organizar, achar que a população de Selvador vai demandar mais arte na cidade pressionando os poderes públicos, tudo isso é balela. Gestores de visão, no âmbito privado e público, são fundamentais para alavancar as artes de Selvador e resolver os retrocessos em certas áreas e a falta de avanços em outras.

E a iniciativa privada é um motor essencial para impulsionar as artes aqui na selva.

quinta-feira, setembro 16, 2010

A opressão da província

O Teatro NU é um projeto fracassado.

Em 2006, voltando de Roma, onde duas peças minhas foram bem recebidas por artistas e crítico locais, resolvi fundar o Teatro NU, juntamente com Jussilene Santana, montando um dos textos lidos na Itália, e estreamos o grupo com Os Amantes II.

A viagem a Roma, como meus seis meses em Portugal, me fizeram perceber um reconhecimento do meu trabalho, um respeito pela minha estética. Algo que Selvador deu as costas.

Após um ano de jejum, único na minha carreira, em 2007 – primeiro ano do governo Wagner/PT – passei no primeiro e único edital de montagem da minha vida, no governo estadual. Assim, em abril de 2008, estreei Os javalis.

O espetáculo foi completamente ignorado. O Prêmio Braskem, num ano em que havia na comissão nomes como Hebe Alves, Paulo Cunha e Gilson Rodrigues, não só ignorou o espetáculo em todos os quesitos, como no quesito “melhor texto”, que seriam quatro indicações, indicaram apenas três peças. O que, notoriamente, se configurava como um recado; “você está fora do jogo, não faz parte do processo”.

Os javalis foi selecionado, em 2009, para encerrar o Festival do Teatro Brasileiro em Fortaleza. Dois dias de casa cheia e novamente um reconhecimento e um respeito pelo meu trabalho fora daqui. E volto ao ostracismo da província.

Fizemos o Teatro NU Cinema, projeto que funcionou de forma satisfatória montando peças curtas de Tchekhov antes de sessões de cinema numa sala de arte de Selvador. Fizemos também o "Diálogos sobre dramaturgia contemporânea", trazendo dramaturgos do Chile e Espanha para dialogar aqui na selva. Mas 2008 e 2009 foram dois anos de sucessivos editais perdidos, com projetos como: SADE, texto meu oriundo de uma dissertação de mestrado; Animais noturnos, de Juan Mayorga, autor espanhol que seria pela primeira vez montado no Brasil aqui, mas devido aos sucessivos fracassos da gente em editais acabou virando febre no eixo Rio/São Paulo e compraram os direitos da obra; e Sargento Getúlio, adaptação de João Ubaldo Ribeiro que venho há anos tentando montar e sendo reprovado.

2010 começou com a promessa de seca para o Teatro NU. Mas como havíamos passado num edital de circulação do governo estadual, viajamos com Os javalis por Itabuna, Camacan e Camaçari. Mais uma viagem e um alento. De novo casa cheia, um reconhecimento e respeito pelo meu trabalho, discussões ótimas após o espetáculo. E volto pra Selvador sem perspectiva de realizar qualquer coisa com o Teatro NU.

Em agosto desse ano, uma surpresa; sou convidado pela Universidade Federal de Goiás para passar uma semana em conferências sobre meu projeto de doutorado, sobre meus textos, acompanhando algumas aulas discutindo dramaturgia. Mais uma vez uma viagem me trazendo alento. A deferência e a forma como fui tratado em Goiânia foi marcante, e foram dias bastante proveitosos, onde, acho, plantei sementes. Volto pra Selvador e o presente que a cidade me dá é eu perder o sexto edital consecutivo de montagem do governo do estado, de novo com SADE. Sou hexacampeão antes da Seleção Brasileira.

Selvador me expulsa aos poucos daqui. Notadamente seus artistas, que à frente de premiações e comissões de editais, rejeitam sistematicamente meu trabalho. Coimbra, Itabuna, Braga, Camacan, Roma, Camaçari, Fortaleza, Évora, Goiânia, não. Cidades onde pude respirar e me sentir artista e pensador de teatro de verdade. Essa expulsão aos poucos é até boa, pois num rompante podemos nos arrepender, e a forma como a coisa está se construindo é pra que eu saia e, de repente, não volte nunca mais. É um processo sem volta, pelo visto. Além de tudo, o blog que mantenho, onde falo o que penso e me embaso para tal, incomoda muito a pasmaceira da província, o silêncio dos covardes e oportunistas.

E vou deixando pra trás o projeto Teatro NU, de dialogar com dramaturgia contemporânea e clássica, montar autores baianos, possibilitar espaços de discussão sobre teatro, formar platéia, sempre trabalhando com alguns dos melhores profissionais da cidade. Coisa que também é ignorada e rejeitada pela selva e pelos artistas que ficam aqui de galho em galho. Vou sendo impossibilitado de dar continuidade a um projeto de vida.

O projeto Teatro NU fracassou. Interessou apenas a alguns artistas, coincidentemente ou não, os poucos que ainda respeito nesta terra de gente pusilânime, interesseira e vingativa, adjetivos básicos da província. Sinto orgulho de ter trabalhado com os melhores atores daqui, de ser chamado por pessoas tão distintas quanto Fabio Vidal e Fernando Guerreiro pra eu trabalhar com dramaturgia. Sinto orgulho de ter construído uma carreira que ficou à sombra, alijada, mas que me trouxe muita felicidade pelo retorno que tive dos poucos que me respeitam.

E sinto uma imensa tristeza em ver que, cedo ou tarde, terei que inevitavelmente abandonar a selva e ir em busca de luz.

Ou como diria Gerald Thomas, em seu blog:

“Um excelente dramaturgo baiano, Gil Vicente Tavares, ignorado pela imprensa de Salvador, ganha elogios da imprensa européia. Mas em sua própria cidade não é notado. Eu lhe escrevo pra ignorar a ignorância...”