terça-feira, março 30, 2010

Arquitetura da destruição

Um governo assume o poder. Como meta principal, motivar as massas através da cultura. Recriminando a arte que vinha sendo feita, taxando-a de degenerada, esse governo busca em culturas passadas, nas raízes da raça preponderante no país, a força e o incentivo para fortalecer seu povo. Uma aparente uniformização retira os méritos individuais e a massa passa a ser privilegiada, e aqueles que se adequam ao novo padrão, unidos no resgate das raízes culturais e tradições, são parte fundamental da estratégia política vigente.

Não. Não estou falando de nenhum governo recente da América Latina, Brasil ou Bahia. Estou falando do Nazismo, que chegou ao poder através da condução de Hitler ao cargo de chanceler da Alemanha em 1933.

Assisti, recentemente, ao filme Arquitetura da destruição, de Peter Cohen, narrado pelo grande ator Bruno Ganz; que mais tarde faria o papel de Hitler no filme A queda, que teve relativo êxito no cenário mundial recente.

O filme Arquitetura da destruição tem um mérito especial na “construção” de Hitler enquanto arquiteto de uma idéia louca e maligna, uma das maiores chagas da história da humanidade.

Vemos, no documentário, como a ópera Rienzi, de Wagner, mexeu com seus brios nacionalistas e suas idéias de democracia e estado, e como depois as idéias antissemitas e a exaltação da cultura nórdica das obras do compositor de Tristão e Isolda formataram o pensamento de Hitler.

Percebemos como sua frustração como arquiteto e artista plástico fez ele se vingar dos grandes artistas do passado recente. Bem como nos faz entender melhor seu ódio aos judeus, sua fúria e loucura em dominar o mundo e, de forma sutil, como seu discurso nacionalista, totalitarista, foi usado de forma sedutora pra convencer uma população traumatizada pela derrota da Primeira Guerra Mundial e as sanções estrangeiras, a inflação galopante, etc.

Arquitetura da destruição deveria ser um filme obrigatório para entendermos o século XX e, principalmente, o século XXI. Estamos num momento onde a burrice impera e os preguiçosos intelectuais preferem se agarrar aos modismos e agrupamentos sociais do que dialogar com a tradição, o passado e a história. E isso é nefasto. Só olhando nosso passado podemos compreender nosso futuro.

A América Latina, o Brasil e a Bahia estão passando por um momento onde semelhanças preocupantes com os movimentos totalitaristas do início século passado deveriam nos deixar atentos. Nosso politicamente correto e nosso medo em falar das “minorias” nos obnubila o pensamento quanto ao fato de que o resgate que o Nazismo pretendia fazer da cultura nórdica como legítima e autêntica de seu povo pode se assemelhar ao histerismo dos resgates culturais ligados às raízes da América Latina, do Brasil e da Bahia.

Pode-se perceber conglomerados se locupletando de movimentos sociais e étnicos, grupos defendendo idéias quando no fundo querem se aproveitar do momento histórico, bandeiras que são desfraldadas para conquistar cargos públicos, ganhar dinheiro do estado e sensibilizar a opinião pública, vendida ao sistema, também.

O filme Arquitetura da destruição mostra como através da cultura se pode dominar, lobotomizar e conduzir um povo ao seu fracasso, a uma falsa auto-estima que no fundo disfarça uma estratégia de dominação e poder.

Nunca a cultura esteve tão em foco como agora, ao menos no Brasil e na Bahia. O que poderia ser bom pode ser perigoso e danoso para a sociedade. Assistam Arquitetura da destruição e tentem enxergar paralelos com a atualidade. E se não enxergarem, por favor, me digam. Será um peso do tamanho do mundo que vocês tirarão das minhas costas, Sísifo que sou de idéias marginais.




GVT.

segunda-feira, março 29, 2010

Pensamento do dia


Seguindo uma dica do meu querido amigo Gil, o pensamento do dia:

"Curioso como a disciplina tenha sido banida de grande parte das artes cênicas, mas não das artes marciais. Nestas, aliás, a disciplina é o coração do sucesso (Não, não do sucesso na carreira! Do sucesso do golpe...). A firmeza necessária advém de práticas diárias de técnicas básicas. E a disciplina não é apenas física, mas de controle da mente. E, com o treino rigoroso, a psique inteira muda. Quem faz esporte de alto rendimento sabe."

sábado, março 20, 2010

Elogio dos clássicos


Jorge Luis Borges, num dos ápices da poesia ocidental, escreveu um poema falando sobre sua velhice e sua perda da visão. O poema, chamado Elogio da sombra, se tornou um clássico justamente pela sua universalidade, atemporalidade e fuga aos modismos.

Borges chegou a ser condenado por seus pares por não estar fazendo arte panfletária, por não se posicionar politicamente de forma explícita, mal sabendo seus pares que a sua política era mais profunda, buscava, como queria Nietzsche, a superação mais íntima, do homem consigo mesmo. A antipolítica, pensando no sentido etimológico do termo, que o liga à polis = cidade. Bastemos lembrar que todas as tentativas sistemáticas e necessariamente pragmáticas de se mudar as massas gerou nazismos, fascismos, stalinismos. E basta lembrar também que ninguém se lembra dos pares de Borges, que tanto o criticaram. A lógica do panfleto – quem nunca os recebe durante o dia pelas ruas – é ser raso, descartável e de impacto imediato e vôo curto.

Num trecho do poema, pensando sua cegueira – e há nas suas poucas palavras muito mais força que na imensa obra de Saramago sobre o tema – ele diz:

não há letras nas páginas dos livros.
Tudo isso deveria atemorizar-me,
mas é um deleite, um retorno.
Das gerações dos textos que há na terra
só terei lido uns poucos,
os que continuo lendo na memória,
lendo e transformando.

Assisti, recentemente e por DVD, A sagração da primavera, de Pina Bausch. Perto do horário do almoço, em meio à confusão e barulho do meu bairro, e a obra teve sobre mim o mesmo impacto do momento em que pude ter uma das minhas maiores experiências artísticas. Pude assistir a companhia de Pina Bausch, em São Paulo, dançando esta coreografia e Café Muller, talvez suas principais e mais conhecidas obras.

 Pina Bausch trabalhou com uma obra já clássica de Stravinsky, e que já havia sido coreografada, mudando os rumos da música e da dança. Mas ela comprou o desafio, como tantos outros coreógrafos, e fez uma obra singular e genial.

O aperto no peito, os olhos mareados e a dificuldade de respiração que sinto nos momentos de êxtase pôde acontecer de novo. Quando eu nasci, terceiro na prole de meu pai, ele pegou um papel e escreveu: “de novo a emoção única”.

Assim são os clássicos. Toda vez que passo pela prateleira e olho Memórias póstumas de Brás Cubas tenho vontade de ler a obra de novo. Quando vejo meus filmes de Tarkovsky no quarto, ou os quartetos de Borodin, Shostakovich, bem como discos de Gilberto Gil, Keith Jarret, sempre fico pensando em quanto tempo perco na vida sem lê-los, ouvi-los e repetidamente transformá-los dentro de mim, o que em si é uma transformação minha, também.

Vivemos um período onde os clássicos são sinônimos de velhos, e a busca pelo novo é de uma ingenuidade e ignorância tão grande que me assusta. Pra se fazer o diferente (não existe nada de novo depois dos gregos) é preciso conhecer o que foi feito. A arte se tornou, ao longo dos séculos, autorreferencial e criada a partir de glosas, citações e respostas aos clássicos.

Poucos criadores, hoje em dia, parecem se interessar em um diálogo produtivo e inteligente com o passado. As pessoas perderem as referências com a história e com os clássicos, e vivemos perdidos num entulhamento de informações tendencioso, falsos ídolos e gênios de segundo caderno.

Do Sul, do Leste, do Oeste, do Norte
convergem os caminhos que me trouxeram
a meu secreto centro.

Borges sabia das coisas. Conheceu Joseph K., Xerazade, Raskólnikov, e assim se tornou Borges.

Vou tentar, de novo e sempre, ler Borges, ver Pina Bausch, escutar Pixinguinha. Sou um artista em formação – e quase desistindo de sua arte – que tenta se solidificar mesmo que puxem meus pés pra baixo a todo momento. Mas ninguém tirará de mim a liberdade de escolher os caminhos mais difíceis, contudo mais luminosos.

É um caminho longo. E, com certeza, não tão breve saberei quem sou


GVT.

sexta-feira, março 12, 2010

A arte sobreviverá


A arte sobreviverá.

Mesmo que as pessoas prefiram assistir a programas que mostrem pessoas bonitas, burras e numa vida rica, sem fazer nada de interessante; desejo recôndito de quem assiste a esses tipos de programa.

A arte sobreviverá.

Mesmo que as políticas culturais favoreçam a comiseração, o assistencialismo, e que o rudimentar e amador seja visto como o mais importante e interessante, ignorando a excelência artística, a busca pelo conhecimento e o apuro técnico.

A arte sobreviverá.

Mesmo que matem o cartunista Glauco, mesmo que Johnny Alf tenha morrido no anonimato, mesmo que o dramaturgo Mário Bortolotto tenha aparecido na grande mídia somente porque foi baleado e sobreviveu.

A arte sobreviverá.

Mesmo que grandes artistas sejam boicotados pela grande mídia, sejam negligenciados pelo grande público, sejam alijados de editais, patrocínios e festivais.

A arte sobreviverá.

Mesmo que a todo momento eu tenha vontade de largar tudo, parar de fazer teatro, ir embora da minha cidade, romper relações com minha classe artística, e mesmo porque o sentimento que me acomete é apenas uma repetição do que ao longo dos anos sempre aconteceu com determinados artistas; que sentem o mesmo, e se auto-exilam de sua cidade, de seu país, ou até mesmo de sua arte.

Mas a arte sobreviverá. E viverá nas canções de Johnny Alf, nas tirinhas de Glauco, e na criação daqueles que, marginais ao sistema, insistem em fazer arte onde os outros só vêem morte.

Só não sei se eu sobreviverei a isso tudo...