quinta-feira, dezembro 30, 2010

O som VIVO da Bahia; conexões e desconexões


Mariella Santiago
Praticamente uma semana depois da empresa OI deixar milhões de nordestinos desconectados da internet e da comunicação através de aparelhos móveis e fixos, sai o resultado do Primeiro Edital de Projetos Conexão VIVO.

Quase um trocadilho. Mas é muito mais que isso. Vivemos num estado que é considerado estrategicamente importante para o país em termos políticos e de consumo. Salvador é a terceira capital do Brasil em termos populacionais, e com a ascensão das classes mais pobres nestes 8 anos de governo Lula, o poder de compra aumentou sensivelmente, dando um estouro no mercado de televisores, celulares, computadores, etc.

No entanto, quase nenhuma empresa investe seu imenso lucro num retorno qualitativo para a Bahia, tampouco para Salvador. É uma vergonha não termos casas de espetáculos e centros culturais como outras capitais do país, vinculados a empresas como Credicard, Banco do Brasil e a própria OI.

A VIVO acaba de contemplar 34 projetos para a Bahia – desses, uns dez são pra gravação de CD, sem contar turnês, festivais, blogs. O projeto foi dividido, sabiamente (alô Funceb e Funarte!) em selecionados por uma curadoria e seleção direta pela empresa; e curiosamente percebemos o ecletismo e bom gosto das duas seleções se combinando e completando (com raras excessões e injustiças que possam ter havido e eu nem soube ainda).

Manuela e Sandra, junto com Cláudia Cunha
Dentre os selecionados, encontram-se a maioria dos artistas que vem realizando um trabalho de qualidade em Salvador. É um resultado assustador, até, para os padrões que estamos acostumados em seleções ao redor do país. Que tenham ficado de fora por não serem escolhidos ou por não terem concorrido, a ausência de alguns dos mais importantes artistas da música soteropolitana não invalidam um projeto que contemplou nomes importantes e ecléticos – e que vêm remexendo com nosso cenário musical. Artistas como Manuela Rodrigues, Rebeca Matta, Ana Paula Albuquerque, Sandra Simões, Mariella Santiago, Baiana System, Juliana Ribeiro e mais de vinte e tantos outros projetos e artistas que colorem nossa cidade com uma diversidade interessante e atuante, a despeito das dificuldades.

E eu não podia deixar de chegar a elas; as dificuldades. Com todo esforço, essas dezenas de artistas contempladas, apesar de aprovadas pela Conexão VIVO, estão desconectadas da cidade. Cada um à sua maneira, uns mais, uns menos, alguns com certo destaque por conta de mídias e gostos tendenciosos, mas a verdade é que se sairmos pelas ruas lendo os nomes dos aprovados, alguns conhecerão um, poucos conhecerão alguns, pouquíssimos mais de três.

E o que falta? Vergonha na cara da mídia, que só vende e só dá espaço ao fácil, aos trabalhos de consumo imediato. Falta que as rádios deixem de aceitar jabá e – por serem concessões públicas – cumpram seu papel minimamente de dar espaço a outras caras que não as mesmas do pagode, do pop, do axé e do sertanejo que os doentes mentais de Salvador estão começando a consumir nessa lobotomia de seguirem a tendência midiática que, pra meu espanto (mentira, sempre espero o pior), está recheando o xou da virada, da Rede Globo, de duplas sertanejas da pior espécie e qualidade. Falta que haja políticas públicas que pensem a música da cidade e do estado para além de lançamentos de editais e de valorização de folclorismos e modismos dos que comandam o “baba”.
Robertinho Barreto (Baiana system)

Enfim, falta muito para que haja uma real conexão dessa música que pulsa na cidade, mas não entra nas veias entupidas de porcarias que enfartam os neurônios de nossos petrosilvícolas.

É preciso uma real política pública das várias esferas que contemple nossa força musical, sufocada pelas manifestações que tem mais penetração, mais dinheiro pra comprar espaço na mídia e nas rádios, mais facilidade de entrar nas mentes oprimidas intelectualmente de uma boa parte da população de Salvador. É preciso uma pressão das instâncias públicas e da sociedade para que haja um investimento real e efetivo de capital e estrutura para que um projeto como esse da VIVO não fique a meio.

O Primeiro Edital de Projetos Conexão VIVO é uma ilha, um oásis na árida realidade de nosso estado e capital. Louvável. E necessário que seja imitado, copiado, reinventado, reestruturado, é fundamental que ele inspire outras empresas, que haja investimento em outras áreas com o mesmo porte. A dança – dança, mesmo, que eu falo –, o teatro, as artes plásticas, o cinema, muita gente anda sufocada tentando realizar seus projetos, suas ideias, suas invenções que esbarram nas poucas oportunidades e poucas comissões que atravancam vários processos.

Cadê a OI? Cadê a TIM? Cadê a CLARO? Essas empresas lucram tanto ou até mais que a VIVO por aqui, e fazem o que? Que investimentos vêm sendo feitos? Isso só pra ficar nas operadoras de telefonia móvel e fixa, pois se entrarmos pela lista de empresas – como a Nestlé, que tem uma fábrica que alimenta todo o nordeste em Feira de Santana e não põe um tostão na cultura baiana – vou passar dias listando, aqui.

Ana Paula Albuquerque
É uma vergonha essa ausência. Desilusões seguidas com o governo estadual, a nulidade imbecil e mentecapta da prefeitura, e a confusão e trocas-trocas da Funarte fazem sempre boa parte dos artistas sobrarem. E a possibilidade de diálogo com a iniciativa privada é nenhuma. Ninguém toma uma atitude, bate na mesa e pressiona? Ninguém, em nenhuma instância, parece se interessar em fazer essa conexão.

E nós, artistas? Já que é o capital que move os interesses das empresas, por que não, aproveitando a pane da OI, os artistas migrarem em massa, pela portabilidade, que seja, pra VIVO? Que tal os artistas em protesto às outras e como uma deferência à VIVO virarem clientes dessa empresa? Talvez uma migração em massa possa ser uma ação de terrorismo cultural que incomode. Temos que jogar com as peças do sistema, meus caros.

Fica a dica, aqui. E parabéns aos artistas que, eu espero, consigam com o Conexão VIVO se conectar à inteligência moribunda dessa cidade de ninguém; jogada às traças e na mão de interesses de empreiteiras, políticos estúpidos e corruptos, empresários ignorantes e limitados culturalmente.

sábado, dezembro 18, 2010

Bárbara Barbará e a dança que restará

Sempre tive vontade de escrever sobre Bárbara Barbará, desde o dia que a vi dançando a coreografia Ulisses, do Viladança. Depois disso, trabalhamos juntos num processo e o que de melhor podia acontecer acabou sendo o pior para minhas intenções críticas. Namoramos durante um bom tempo, depois de conquistá-la através de uma canção minha que – não por acaso – é uma das mais belas que eu considero ter feito.

Como eu mesmo digo na canção, de uma forma ou de outra “a única coisa certa é que tudo acaba”. Ou se transforma. E o fato de não mais estarmos juntos acabou ampliando minha admiração pela artista – pois a visão tendenciosa se esgotou – e foi aberta a possibilidade de, através desta sensacional bailarina, pensar a dança e sua relação com ela.

Assisti, ontem, Bárbara dançar um trecho de Desejo fatiado, de João Perene. A presença de Bárbara foi marcante porque, a despeito da qualidade inegável de boa parte dos bailarinos que passaram por Perene, era neste que eu via a verdade de sua arte; quando ele entrava em cena sua movimentação finalmente ficava prenhe de sentido e força. E assim o foi com Bárbara dançando, também. Sua técnica, expressão e força ressignificaram a dança de João Perene e me deixaram extasiado diante daquela movimentação impactante e bela.

Usei as palavras “técnica, expressão e força”, pois foi assim que Mestre King, decano da dança de Salvador, se referiu elogiosamente ao trabalho de João Perene, numa apresentação no Xisto Bahia. A apresentação contou ainda com uma trabalho capitaneado por Armando Pekeno e Augusto Omolu, bailarinos com história em seus corpos, história essa que esses trabalhos recentes de Salvador não trarão aos corpos da cena nem da plateia; e foi justamente esse o discurso de Mestre King, criticando a péssima fase da dança em Salvador, sem técnica, expressão e força, mas cheia de conceitos pra explicar essas ausências.

Ora, amparar-se em conceitos, teorias e se valer de outras áreas para justificar ideias é algo que a academia – em boa parte de sua masturbação teórica inútil – se vale para que um acúmulo de verborragia desnecessária se acumule em prateleiras, apenas saindo delas para retroalimentar teorias que, endogenamente, apenas reforçam uma confraria de acadêmicos que ficam no círculo vicioso de elogios, aprovações em bancas, editais e prêmios.

Com um mínimo de perspicácia, posso em seis meses me valer de uma vasta bibliografia para comprovar que o som advindo de uma flatulência é música. E nem por isso uma sinfonia de peidos será agradável de ser ouvida. Muitas conceituações em dança se valem de princípios parecidos, e com esse processo árido e danoso à dança, a academia, o conceito, a teoria é que vai ao palco; quando deveria ser o processo inverso. Raramente os conceitos acadêmicos influenciaram a criação artística – e sempre quando houve alguma tendência nesse sentido tivemos experiências ruins, como o povo de teatro que quer pegar um livro superestimado que fala sobre um tal “teatro pós-dramático” e, a partir de suas conceituações, criar peças teatrais.

Bárbara Barbará, com sua exuberância de bailarina, participou de praticamente todos os trabalhos que, nestes últimos anos de destruição da dança em Salvador, se salvaram; no meu ponto de vista. Não à toa, os coreógrafos, que eram mais produtivos e que apresentavam obras de maior destaque, trabalhavam ou passaram a trabalhar com ela. E são justamente estes que não têm produzido por conta de um domínio de uma mentalidade acadêmica que tolheu a criatividade da dança soteropolitana.

Para completar, justamente quando um governo de esquerda assume o poder na Bahia, a principal política pública desenvolvida (e que não é política cultural) foi a política de editais. Distribuir mais dinheiro para a dança através de edital. Um pensamento neoliberal de que basta dar o dinheiro, aumentar as possibilidades de acesso ao dinheiro e pronto, estamos fazendo o bem da dança. E a prefeitura (o artigo sobre ela está sendo gestado) é vergonhosamente nula.

Nestes quatro anos de aumento de verbas em editais, muito mais gente fez arte na exata proporção em que nenhum trabalho significativo ficou dessa temporada invernal. Vamos olhar pra trás, com toda a grana disponibilizada, e lembrar de qual grande trabalho de dança ou teatro marcante? Talvez, em música, lembremos das diversas ações com música eletrônica; esta que pareceu, por vezes, ser o foco da política pública do estado. Isso a despeito do governo, no apagar das luzes, ressuscitar o “Pelourinho dia & noite” da gestão passada com novo nome fazendo o óbvio que, nos mais de três anos de abandono, o Pelourinho precisava.

Bem, não falei quem são os três coreógrafos. Um deles, João Perene, já foi citado. Cristina Castro, a outra, conseguiu com o Viladança uma ideia de profissionalismo ligado à criação artística que fazia suas coreografias ficarem um mês em cartaz com casa cheia, criando espetáculos que ficaram no imaginário da cidade. Em Aroeira e Habitat, últimas criações do Viladança, Cristina finalmente deu um solo a Bárbara, coroando o trabalho dessa dançarina que foi, junto a Simone Bonfim, a dançarina que mais simbolizou o trabalho do terceiro coreógrafo a ser citado aqui; Jorge Silva. Esse, pra mim, vinha produzindo um trabalho que, mais do que um nível internacional, está entre as melhores coisas que sei da dança no mundo. Mas está colecionando perdas em editais e vendo seu trabalho tolhido pela falta de políticas públicas que possam potencializar o talento desse artista.

Numa homenagem feita a Saul Barbosa, compositor e violonista baiano falecido recentemente, fui correndo assistir um duo de Bárbara com Leandro de Oliveira; um alívio aos meus olhos, mas também um choque. Vi bailarinos talentosíssimos noutras coreografias da homenagem, todos praticamente oriundos da Escola de Dança da Fundação, que poderiam formar companhias de dança fenomenais; e todos obscuramente perdidos e sem espaço para efetivamente mostrar seu trabalho (assim como tantos outros talentos parados por aí). O alívio que senti naquela homenagem Mestre King sentiu ontem, na apresentação de João Perene, junto comigo.

Uma bailarina como Bárbara, que devia ter a agenda cheia de trabalhos, vive das migalhas de apresentações aqui e acolá. Aonde esse equívoco todo vai dar, eu não sei. Só sei que aqui vou eu, quixotescamente, conquistando a inimizade de muitos, por ser o único a expor o sentimento de tantos que, covardemente, se calam e permitem que a dança se paralise no conceito e a arte morra na cidade. Salvador é a cidade do silêncio intelectual que corrobora sua mediocridade.

Dulcinéias como Bárbara ficam distantes dos palcos. E eu combaterei moinhos atrás da dança que restará.

segunda-feira, dezembro 06, 2010

Egberto Gismonti e a Orquestra de Sopros Pró Arte

Quando você não souber como ir em frente, olhe pra trás.

Assim ouvi certa vez esse ditado que dizem ser africano. Mas aqui não é a África. Aqui não é um continente, apesar do tamanho continental do nosso Brasil. País de uma riqueza musical ímpar, música brasileira, sem prefixos, sem “afro”, ou “luso”, ou “anglo” ou “nipo”. E algo de interessante surge disso. Esse prefixo “afro” parece ignorar, desprezar ou diminuir a pluralidade de um vasto continente de culturas distintas. Quando usamos prefixos, geralmente nos referimos a países, e mesmo assim com o grave risco de ser reducionista.

Assisti hoje, pelo X Mercado Cultural, Egberto Gismonti com a participação da Orquestra de Sopros Pró Arte e posso categoricamente falar que Gismonti faz música brasileira. Sem prefixo. E sem reducionismo.

Gismonti foi meu ídolo de adolescência. Até hoje, quando falo que tenho 20 CDs dele em casa os músicos se admiram. Acompanhei todos seus lançamentos, a entrevista em que ele dizia ter um projeto de gravar um CD com Gilberto Gil (meu outro ídolo de adolescência, o que criou em mim um frisson)  e a declaração dele de que ele ia parar de compor para cuidar da sua obra. Ele havia chegado, na minha opinião, a um grau de sofisticação na composição e arranjos que talvez tivesse se esgotado; no sentido mais positivo que possa ter.

Daí, Egberto partiu para orquestrar suas ideais com grupos sinfônicos. No entanto, “olhando pra trás”, a música de Gismonti ficava amarrada a um convencionalismo e pouca criatividade que ele não soube romper; Stravinsky, Béla Bartok, Villa-Lobos, grandes compositores do passado recente haviam esticado ao máximo esse diálogo entre erudito e popular, explorando novas sonoridades, ritmos e melodias. Seus discos com orquestras soavam mais antigos, menos estimulantes que seus trabalhos pregressos.

Gismonti sozinho é suficiente e geralmente melhor. Com algumas exceções, como um excepcional disco que ele gravou com Charlie Haden, ao vivo, em Montreal. Disco esse que ponho sempre entre meus preferidos, ao lado do “Duas vozes”, dele com Naná Vasconcelos. Por sinal, foi pra Naná que Gismonti fez sua melhor orquestração, ao meu ver; umas cordas que entram em “Berimbau”, gravação que foi utilizada por Luis Arrieta para coreografar os homens do Balé do Teatro Castro Alves. Balé para o qual ele compôs uma trilha; “Sonhos de Castro Alves”, também (é, os tempos mudam...).

Egberto Gismonti abriu o concerto tocando violão, aquele violão de dez cordas onde ele supervaloriza o instrumento dando-lhe riqueza harmônica, melódica e rítmica. Depois disso, pude ver o balé de Gismonti. Convidando ao palco a Orquestra de Sopros Pró Arte, o compositor e multi instrumentista passou a ser um regente. Mas um regente que mais dançava e se divertia que propriamente regia. Ou, talvez por estar dançando e feliz, estivesse regente melhor do que ninguém. Lembro-me de uma vez que vi em vídeo Leonard Bernstein regendo a 9ª de Beethoven, e na hora do canto coral ele simplesmente ergueu os braços no ar e dançou, dançou junto com a música; melhor regência não poderia haver.

A Orquestra de Sopros Pró Arte é uma orquestra composta por jovens de 16 a 25 anos, se não me engano. Mas é uma orquestra de músicos. Em momento algum precisamos relevar o fato de serem jovens para suportar desafinos, desarranjos, desatinos. Eles são músicos, com técnica, com suingue, com precisão. Claro que há sempre o que melhorar, são jovens, mas estão inteiros ali, sem aquela chatice de ser um trabalho social ou de inclusão ou de incentivo para retirar jovens das drogas, ou de qualquer coisa que seja. E, mesmo sendo isso tudo – o que também é válido – temos que ouvir música, e não fazer caridade com nossos ouvidos. A arte não tem preconceito, nem cor, nem credo. Tem beleza; e é esse o alvo que todos devem perseguir.

Após uns dois ou três arranjos de Gismonti pra suas próprias canções, misturando-as em inventividades e sonoridades delicadas e sofisticadas, ele ficou sozinho ao piano pra recarregar ainda mais minhas energias. Não consigo nivelar por baixo, nivelo por cima e sofro muito com isso. Mas assistir Gismonti tocando é algo que me reabastece por um bom tempo para aguentar minha própria mediocridade e a mediocridade que me circunda.

Quando comentei com minha mãe; tomara que ele toque “Sete anéis” e logo depois ele iniciou os acordes da canção, vi que tinha ganho a noite até na sinergia do repertório. Egberto é um dos poucos artistas que me tiram no chão. Ele me faz perceber o real valor da arte, experiência que tive em poucos momentos da minha vida.

Vê-lo se recriando naqueles jovens, com alegria e satisfação, traduziu muito bem o que o próprio disse ao entrar no palco. Ele dizia ter a sensação de que tocava com o futuro; e assim acreditando numa utopia de que as coisas possam melhorar.

Vendo Gismonti encantado, fazendo música de alta qualidade com aquela orquestra, dançando e sorrindo, vi o que realmente é a alegria brasileira. Vi o que realmente somos nós, sem prefixos. País onde reinventamos tudo, e subvertemos até mesmo ditados. Vendo aquele momento mágico de um músico consagrado tocando suas canções com o futuro da nossa música, reinventando-se e renovando-se musicalmente, me veio a inversão do ditado que abriu este artigo;

Quando não tiver como ir pra trás, olhe pra frente.

quarta-feira, dezembro 01, 2010

um acróstico para Mario Monicelli...













Mais um filme, e a sessão está encerrada.
A vida é uma comédia sem roteiro.
Refar-se-ia agora o mundo inteiro
Imaginando-se a melhor tomada
Onde o artista não envelhecesse;
Mofasse apenas nalgum quadro obscuro
O retrato escondido. No futuro
Não lembraremos mais do salto desse
Incomodado com nossa moral
Cristã; e castrada, cretina, em crise.
Exército de hipócritas; banal.
Lembrem de sífilis, hemoptise...
Luxúria acesa de brancaleões
Iluminando a cena dos bufões!

segunda-feira, novembro 29, 2010

Selvador; planejamento urbano e emburrecimento humano


Há um tempo, estava eu andando pelo bairro do Comércio, nas ruas mais de dentro, quando começou a chover. Como dificilmente andamos de guarda-chuva, pela imprevisibilidade do tempo, fui me abrigar num daqueles casarões antigos. Como observador contumaz que sou, acabei reparando na beleza de prédios abandonados, escondidos sob fachadas, espremidos entre arranha-céus feios e sem personalidade.

O crescimento imobiliário em Selvador é assustador. Novos prédios cheios de opções de lazer internas, caríssimos e seguindo um padrão arquitetônico do tipo; “estás em qualquer lugar”, num instante colocam em sua fachada um 100% vendido.

Selvador cresce errada, desordenada e desorganizada como uma capital do porte da nossa não poderia crescer. Pela capacidade intelectual e criativa de acadêmicos, profissionais e tantos outros, algo já devia ter sido feito pra frear essa destruição da nossa cidade.

Mas, somada à displicência dos que poderiam atuar em prol de Selvador, vemos uma burrice tomando conta da cidade, uma ignorância e estupidez que se reflete, como na cultura, em sua arquitetura e urbanismo, também.

Selvador é uma cidade histórica que dá as costas à sua história. Na Europa, vemos os centros urbanos, com seus prédios antigos, sendo tomados pela iniciativa privada e por moradores ávidos por morar no coração da cidade. Isso acarreta uma natural valorização, revitalização e cuidado com prédios históricos, sítios importantes.

Não há interesse por esse centro da cidade. A classe consumidora de Selvador quer fugir de sua identidade, se aglomerando em volta dos centros comerciais e escritórios em prédios de vidro fumê do Itaigara, Iguatemi, e vão invadindo a Avenida Paralela, derrubando nossa mata atlântica, e cada vez mais fugindo da Selvador real, palpável, sólida. Há um apartheid cultural que isola essas pessoas num mundo pasteurizado e retardado, pois vemos a mistura de gerações com seus 30, 40, 50 anos frequentando aquelas festas adolescentes em Sauípe, Praia do Forte, fazendo programas inacreditáveis para adultos de média capacidade intelectual, enfim, um soteropolitano estúpido tem o domínio da economia da cidade em suas mãos. E despeja muito dinheiro em seus programas fúteis e únicos (pois, afinal, todos nós precisamos e temos momentos de futilidade também).

Já passou da hora de resolvermos problemas de trânsito e de urbanismo em geral. Nossas avenidas de vale já mereciam, há mais tempo, vias expressas pra ônibus, menos semáforos e mais alternativas de cruzamento para o pedestre, como passarelas pelo alto ou subterrâneas. Precisamos, urgentemente, criar viadutos e pistas alternativas que desafoguem o trânsito. Precisamos, esteticamente, resolver a cara da cidade. E tenho certeza que a cara de Selvador não são aqueles postes azuis que empesteiam nossas avenidas.

Não há, também, ideia de se criar mais espaços pra estacionamentos, nem tampouco se pensam lugares para se respirar, em Selvador. Faço sempre a provocação que se fizéssemos com nossas praças o que Lisboa fez com suas estações de metrô, seria genial. Convidaríamos grandes escultores, artistas plásticos e arquitetos para assinar as praças da cidade. Teríamos praças mais criativas, empolgantes, e que virariam, também, cartões postais da cidade. Basta ver os orixás de Tati Moreno no Dique do Tororó pra vermos que intervenções de artistas e pensadores que dialoguem com a cidade são fundamentais para valorizar seu espaço urbano.

Bem que essa classe média, sedenta pelos novos empreendimentos imobiliários, e as construtoras poderiam investir no centro da cidade, reformando prédios antigos, embelezando nossos pontos e construções turísticos, dialogando com nossa história e cobrando maior atenção do poder público, sempre estúpido e burro, que prefere acimentar uma calçada a colocar dignamente as pedras portuguesas que a embelezavam.

Mas enquanto todos vão deixando a alma da cidade se esvair no descaso, burrice e falta de visão de seus gestores – por um lado – , por outro continuará havendo moradores da cidade doidos pra se afastar dela, criar uma realidade vazia, rasa, e expandir a cidade rumo à destruição de sua identidade e cultura.

Dizem que Selvador vive sob um plano urbanístico que remonta à década de 60. Como se não estivesse, por trás dos planos urbanísticos da cidade, catástrofes históricas em prol de interesses, como a derrubada da Igreja da Sé de Selvador – sim, um marco histórico que foi derrubado para a passagem de uma linha de bonde que, obviamente, nem existe mais; enquanto vemos castelos mediavais sendo cuidados e tombados, valorizados e respeitados.

Selvador tem um potencial turístico e um patrimônio histórico sensacional. Vemos cidades que se apegam a uma igreja, a um teatro, a uma praça, a um artista, pra se vender turística e culturalmente pro mundo. Aqui, pululam belezas e monumentos sufocados pela idiotice e falta de visão.  

Estamos a quatro anos da Copa. Muito dinheiro será investido em Selvador. Mas os poderes públicos, empreiteiras e empresários vão desviar, no mínimo, 70% dessa verba e construir metade ou um terço do que foi acordado. Basta ver o exemplo de nosso metrô; aquela palhaçada.

O que mais me desespera é que a impunidade dos ladrões, a falta de planejamento dos estúpidos, e a ignorância dos consumidores me deixa sem perspectivas de mudança, melhora, reviravolta. Algo precisa ser feito pela cidade. É preciso gente, bastante gente, que assuma essa responsabilidade de forma agressiva e decisiva. Onde a cidade encontrará isso?

Em você, caro leitor?   

domingo, outubro 31, 2010

Meu pai subiu no telhado


Meu pai subiu no telhado. Sim, isso é uma paródia da famosa piada de português, povo que ele amava e que publicou seu último livro em vida. E parodio a piada porque a coisa que meu pai mais gostava no mundo era fazer piada e sei que ele riria muito (deve estar rindo, talvez) de um artigo sobre seu falecimento iniciado assim.

Meu pai subiu num telhado, mas num telhado bem alto de um palácio, de um zigurate, de uma sinagoga, de um barracão. Ele subiu em todos esses telhados e tantos outros da vasta cultura de um homem especial, talvez o único próximo a mim cujo título de gênio coubesse como a nenhum outro.

Ildásio Tavares nunca esteve nos holofotes como alguns de sua geração. Mas iluminou a cultura brasileira. Se eu fosse desfilar o currículo de meu pai, precisaria escrever uns dez artigos. Livros, jornais, revistas, TV e google dão conta do recado. Entrementes, falar um pouco do quanto meu pai iluminou minha vida talvez seja uma metonímia do homem que ele tentou ser e em muitos momentos foi pro mundo.

Desde pequeno, bastava eu aparecer entusiasmado com alguma música, algum escritor, que ele logo me mostrava os defeitos. Foi um crítico feroz de todas as obras, a começar pela minha e, principalmente, pela dele. Como todo grande intelectual, via os defeitos e rachaduras, as falhas e fraquezas que o senso comum aplaudia e ignorava. E sofreu muito por isso. A grandeza oprime e a verdade dói. E era um grande que defendia verdades. Nem sempre as verdades, mas as suas verdades, e era muito íntegro com elas.

Dificilmente temos o que merecemos. Muitos são louvados em demasia, outros sofrem pela escassez de reconhecimento. Mas meu pai foi um lutador e um vencedor porque, a despeito da mediocridade opressora que tentava lhe anular, ele conseguiu galgar degraus que, se não o levaram ao merecido altar de gênio que era, ao menos lhe trouxeram momentos de alegria, como ao desfilar homenageado pela Nenê da Vila Matilde, em São Paulo, ou na comemoração de seus 70 anos, com momentos lindos como o de Gerônimo e Vevé cantando É d’Oxum em francês, na versão dele, ou o belo discurso de Jorge Portugal na entrega da Medalha Zumbi dos Palmares, etc, etc...

Tive o prazer de cochilar a manhã inteira no colégio depois de virar a noite vendo meu pai compor com Baden Powell. Tive a honra de, já exaurido, ter um poema em redondilha todo refeito ao lado dele quando eu tinha 7 anos de idade. Aprendi a fazer poesia, a reconhecer a beleza de muita coisa no mundo graças a meu pai. E o que levamos da vida é a beleza das coisas, a poesia dos momentos, das palavras, das cores e melodias.

Meu pai subiu num telhado, mas diferentemente da piada, ele não morreu. Ele está ali, em cima do telhado, olhando pra mim e pro mundo com olhos críticos. Eu sei que ele está lá olhando e pensando o quanto o mundo perdeu ao não reconhecer sua poesia e seu pensamento, e, nós poucos, de cá, pensando o quanto parte do mundo e eu ganhamos ao reconhecer sua poesia e seu pensamento.

Alguns poucos olharão pro telhado, em busca de meu pai. Ele vai estar lá, como todo mestre. Pois um mestre só se torna mestre mesmo quando o que ele pode oferecer deixa de ser ele e passa a ser a gente. E meu pai está mais em mim do que em qualquer outro momento esteve.

Agora é o momento de começar a aprender quem eu sou. Aos poucos, por toda vida. Tentando buscar em mim a poesia e sabedoria do pai e do mestre. A tristeza aparece no momento em que não olhamos as coisas belas.

E não tem nada mais lindo, agora, do que ver meu pai de cima do telhado, olhando pra mim e torcendo pra eu seja um grande homem. Para que eu não deixe que a pobreza do mundo invada nossa alma.

Foi isso que ele me ensinou. E será isso que eu tentarei fazer minha vida inteira, porque agora a responsabilidade aumentou; meu pai subiu no telhado e estará de lá, olhando pra mim, e dizendo; “agora é com você. Já fiz minha parte e fiz muito bem”.