terça-feira, abril 12, 2011

Aí, é com Tadashi, Luis Arrieta e as baleias...

Luis Arrieta, por João Meirelles
A orca e o tubarão-branco são os dois maiores predadores dos mares. Num combate entre ambos, ganha a orca. Esse imenso mamífero desenvolveu uma técnica de atacar o tubarão e virá-lo de ponta-cabeça. Assim, o tubarão-branco entra num estado de imobilidade que o leva, acreditem, ao afogamento.

Esse conhecimento é passado através de gerações. Uma orca nova, mesmo sem ter visto uma mais experiente em combate, sabe o que fazer nessa hora. É algo que faz parte de sua cultura, que vem como memória corporal.

Não, este texto não se propõe a sugerir que o governo crie um edital desses sobre diversidade e cultura que contemple as orcas. Este é um texto sobre dança. Sobre a cultura e a memória do corpo. Sobre a história do movimento.

Assisti, final de semana passado, no âmbito do Festival Viva Dança, a dois mestres da dança. Tadashi Endo, japonês nascido na china, e Luis Arrieta, argentino residente há tanto tempo no Brasil que se tornou uma referência para a dança no país.

Do primeiro sei pouco. Assim como, lamentavelmente, sei pouco de sua cultura. Minhas referências são todas através da arte – muito mais que pela história –, mas são referências que me fazem respeitar, contemplar e traduzir, traindo como toda tradução, o que aquele corpo me disse em cena.

O título do trabalho, One-Nine-Four-Seven, refere-se à sua data de nascimento, e, na mais banal e eficiente maneira, o artista nos mostra através do movimento sua vida, paixão e morte; e vida. O ciclo não termina, pois “é necessário morte para que haja vida, num ciclo infinito”, ele nos diz no programa. E acabei sendo conduzido por sua movimentação tão verdadeira, sólida, coesa. Nada fora do lugar. Tudo em seu tempo e com legitimidade. Vemos a história de um corpo, em cena, e o quanto seus movimentos revelam sua essência. E fazemos um passeio pelo Japão, pelo mundo e pelo seu mundo.

Movimentos revelando sua essência, assim eu poderia resumir o trabalho de Arrieta. Deste eu posso falar mais. Ainda adolescente, pegava meu buzu lá na Barra pra ir assistir ao Balé Teatro Castro Alves, sozinho, apaixonado que sempre fui pela dança. E não era por acaso que a maioria das coreografias que me interessavam era de Arrieta. O coreógrafo argentino explorou, com o BTCA, a essência do candomblé, em Orixás, numa arrojada coreografia que desconstruía os códigos da dança brasileira, até a escolha da trilha, na qual Egberto Gismonti abusada e inteligentemente fugia do óbvio escrevendo para uma orquestra de cordas. Também insistiu no minimalismo e na circularidade do Bolero de Ravel para a criação de Mandala, com ecos da coreografia de Maurice Béjart para o filme Retratos da vida. E eu poderia desfilar ainda Berimbau (a que eu mais gosto, numa irresponsável lembrança), Trindade, diversas criações que deixaram sua assinatura nos tablados do TCA.

Mas a surpresa me veio, mesmo, ao ver Luis Arrieta fazendo um solo dentro do estupidamente extinto Ateliê de Coreógrafos Brasileiros (imaginem o Ateliê e o VIVADANÇA acontecendo na cidade, duas grandes ações, a dança só ganharia). Um projeto abortado a fórceps – coisas da Bahia, onde se paga 50 pro outro não ganhar 20 – e que continha, dentro de sua programação, a mostra Solos > 40, na qual bailarinos mais experientes mostravam curtos trabalhos que, na maioria das vezes, eram mais interessantes que as atrações principais do projeto. A partir do segundo movimento da Sinfonia n.3, opus 36, de Henryk Górecki – um marco da música recente –, pude ver aquele coreógrafo que tanto explorava o movimento, que tanto criava para corpos novos, ágeis, belos e flexíveis, algo muito mais próximo do butoh de Tadashi; menos é mais, como diria outro mestre, Harildo Déda.

Arrieta apresentava ali, para mim ao menos, o tempo moendo o homem, o homem driblando o tempo e a dor da partida, movimentando-se pela angústia da chegada. E num olhar, num gesto mínimo, o corpo de Arrieta nos contava uma história que era dele, mas que eram muitas.

A arte tem esse dom que nos passar a história do homem, os sentimentos do mundo, tudo aquilo que não vivemos, em forma de poesia. E assim pude ver Arrieta dançando seu solo Tango aDeus, semana passada, no Teatro Molière, da Aliança Francesa.

Ver um homem de 60 anos se mover – assim como Tadashi, aos 64 – ao som do tango se torna, ainda mais, um momento de respeito e admiração. Há muito que se provou que dança não é só virtuose e técnica pura, nem tampouco fôlego e elasticidade simplesmente (mas isso não significa negar esses atributos). Cada vez mais os velhos dançam, e cada vez mais só os velhos dançam. E Arrieta dançou seguidos tangos, cantou, ficou estático, extático e exato. Eu podia ver, num abrir de braço seu, toda uma história de vida se desenhando no ar em diálogo com uma luz que dançava com ele. Eu via a Argentina, via sua avó, que ele citou emocionado durante um bate-papo no Vila Velha, via a solidão num solo criado para uma dança a dois, que era a Deus? Um adeus? Um homem de 60 anos com suas dores, amores, silêncios e perdas. Tudo no movimento. Parecia, assim como no trabalho de Tadashi, que aqueles gestos carregavam o ancestral e abriam o caminho pro novo, rasgavam a história para inundar o palco com o mais íntimo que se podia sentir em cena.

Um corpo sem história não transmite verdade em cena. Uma cena sem história não transmite verdade num corpo. A história pode ser mínima, íntima, ínfima. O corpo tem que ser um corpo para a cena, mas não um objeto para a ação. É preciso contar algo através do gesto. É preciso ter conhecimento, respeito ao mais velho, ao antigo, à história, e a ousadia de reinventar tudo isso à sua maneira. O aprendizado na vida se dá na transmissão das gerações, no acúmulo de cultura e tradição.

O corpo tem que se reinventar. O movimento tem que seguir. Nem sempre podemos trazer em nós o tamanho da história que queremos. Então, como fazer? A arte tem a resposta. Senti boa parte da dor e alegria do mundo, ao longo dos séculos, através da arte. De forma muito simplista, talvez possamos dizer que a arte serve para isso. Pra nos recordar o afeto que não se encontra na geografia, nos livros técnicos, nas enciclopédias e teorias. Infelizmente, vê-se cada vez mais uma formação frouxa nos aspirantes a artistas, um conhecimento raso, uma falta de interesse por explorar outras linguagens e conhecer a sua minimamente.

O artista tem que ver e sentir e respirar e conhecer arte. Tem que conhecer a história da arte. Conhecer sua própria história para saber contá-la. Bobagem achar que construímos no nada. Nós somos a afirmação e negação de nosso passado. E só nos inventamos nele e a partir dele. Construímos nosso corpo através da arte e da história que ele traz, que ele viu, sentiu,viveu ou imaginou.

O tubarão-branco é o dono do pedaço. Está ali sozinho, tudo dominado. Mete medo em todo mundo, está sob os holofotes marinhos como o porreta. Mas então vem a orca, sua história, sua cultura, sua manada dentro de si, e liquida o tubarão. Não adianta mostrar os dentes, ser valente, achar que é o “rei da selva”. Porque o corpo com história, com cultura, em diálogo com a tradição e a técnica, vem e põe – e expõe ao ridículo – o peixe de barriga pra cima. E afoga esse valentão, cheio de dentes, mas cego. Burro. Limitado à ação de matar sem criar.

E a arte de criar através da história de um corpo?

Aí, é com Tadashi, Luis Arrieta e as baleias...



GVT.