sexta-feira, novembro 20, 2009

Salvador tem salvação?



Tenho andado muito triste com minha cidade. Quanto mais eu viajo ou ouço depoimentos de outras pessoas, sobre outras cidades do país, mais fico entristecido com o descaso do poder público e com burrice de nosso povo.

Salvador é uma cidade de múltiplas possibilidades. Possui criadores gabaritados e capacitados em todas as áreas, da arquitetura às artes. No entanto, uma desunião, uma desconexão, e um sentimento atávico de puxar as coisas pra baixo faz com que nunca consigamos crescer e melhorar, mesmo com todo potencial que temos.

Passando pelo Comércio, mais uma vez, a angústia de ver belíssimos casarões – que poderiam ser restaurados e transformados em um lugar de turismo, lazer e cultura – me deu um desespero em perceber que nada será feito até que eles caiam e a especulação imobiliária tome conta. Assim eu soube que estava sendo feito em Cachoeira, cidade patrimônio cultural, onde casarões antigos eram propositalmente descuidados pra tombar e serem substituídos; pois tombado, um casarão deixa de ser patrimônio, e o terreno pode ser reutilizado.

Soube que em Belo Horizonte haverá uma praça com cinco centros culturais; Caixa, Banco do Brasil, etc. E me pergunto se Salvador é tão desinteressante estrategicamente assim, pois o SESC investe pouquíssimo na cidade, primeira capital do país e terceira maior em termos populacionais (a despeito das atividades constantes que o SESC-Pelourinho faz na cidade), os centros culturais praticamente não existem, e a prefeitura de Salvador não demonstra nenhum interesse em restaurar, dinamizar espaços, nem em efetivamente fazer uma ação cultural abrangente e definida, com abertura de teatros, editais, apoios diretos através de um Fundo Municipal de Cultura, enfim, nem Secretaria de Cultura nós temos. Parece que agora será obrigatória a criação de uma, depois do Plano Nacional de Cultura e das conferências recentes que entendem a cultura como centro de modificação de um povo.

Se eu for falar das artes, então, a coisa fica mais complicada. Vamos ao teatro, por exemplo, área em que insisto em ser um profissional atuante (talvez provando a mim mesmo que não sou dos mais inteligentes). Otávio Mangabeira, político e aforista de primeira, dizia que na Bahia se paga 50 pra você não ganhar 20 (não lembro se eram estes os números, mas é esta a filosofia da coisa). E é uma verdade absoluta. Ao invés dos artistas tentarem um empurrar o outro pra todos subirem juntos, fica um puxando o pé do outro, tentando evitar que o outro cresça, boicotando carreiras, idéias, enfim, é desesperador ver como várias pessoas que tentam fazer algo bom nessa terra são imediatamente anuladas, derrubadas, boicotadas e ignoradas.

Lembro que, na minha época de estudante de teatro, havia uma avidez pelas notícias de novas montagens. O bochicho que rolava pelos corredores da Escola de Teatro de que um Guerreiro ia montar um Camus, um Hackler ia montar um Nelson, um Deolindo ia montar um Brecht, e por aí vai, tudo isso despertava nossa curiosidade. Saber os atores que estavam no elenco e correr atrás de grandes interpretações ou equívocos, mas dentro de uma referência de qualidade, de respeito e admiração, era um frisson que aguçava nossa visão e aprendizado de teatro.

Até isso se perdeu. Um dos maiores acontecimentos teatrais dos últimos tempos foi o trabalho do ator Carlos Betão no espetáculo “Combate de negros e cães”, de Koltés. E a carreira de Carlos Betão pode bem definir a estupidez soteropolitana. Ator de primeira grandeza dos nossos palcos, é a prova cabal de que a classe teatral de Salvador faz de tudo pra derrubar o outro, paga 50 pro outro não ganhar 20. Betão jamais ganhou um prêmio de teatro, mesmo que isso não signifique muito, eu sei, mas simbolicamente, em anos de carreira, ele ser ignorado assim é cruel e estúpido.

Muito se fala, por agora, do Prêmio Braskem de Teatro. Críticas e críticas ao prêmio, dizendo que o Braskem é isso e aquilo outro, como se Braskem fosse um orixá. As pessoas se esquecem que a porcentagem de equívocos anuais da premiação é proporcional à porcentagem de artistas de teatro nas comissões. Algo como se 80% dos equívocos anuais estivessem em consonância com os 80% de pessoas de teatro presentes nas comissões do prêmio. Digo isso para provar que o problema não está no Braskem, muito menos na Braskem, que proporciona uma festa imensa prestigiando e premiando nossas produções. O problema está justamente na classe teatral que, compondo a comissão, comete crimes, equívocos e desrespeitos ao bom-senso, fazendo com que aumente cada vez mais a minha lista de decepções na classe teatral baiana. Basta que se faça uma provocação; uma sondagem de por onde anda e o que fazem os premiados desconhecidos que subiram no palco do Teatro Castro Alves.

Voltando ao excepcional trabalho de ator de Carlos Betão na peça de Koltés, que talvez encerre definitivamente suas apresentações domingo próximo, dia 22/11/2009, tomo como exemplo a forma silenciosamente burra com que a cidade acolheu esse trabalho pra mostrar como Salvador é uma péssima madrasta, daquelas de contos-de-fada.

Estive em São Paulo duas vezes, nos últimos dois meses, e vi o quanto a imprensa local levanta seus artistas. Os jornais e revistas abrem espaços imensos pra elogiar e fazer reportagens sobre trabalhos de artistas da cidade. Criam velhos e novos gênios, dão várias estrelinhas nos roteiros para espetáculos que muitas vezes não consigo entender o porquê, mas eles sabiamente vão levantando a bola dos grupos de teatro, dos dramaturgos, e toda hora é prêmio, é reportagem, matéria em jornal, publicações, teses e dissertações sobre grupos e artistas da cena paulista e, assim, esses artistas vão legitimando seu trabalho, colecionando críticas, matérias e fazendo um portfólio invejável, e assim vão chegando pra nós – pobres nordestinos -  referências de revistas e jornais que nos fazem avidamente querer ver, reverenciar e tratar esses artistas como seres superiores que conseguem fazer algo inatingível para nós, reles provincianos.

O que não é verdade. Proporcionalmente, com os poucos recursos que temos, conseguimos produzir coisas de qualidade. Mas com a grande diferença de que, enquanto em São Paulo as coisas boas – e muitas ruins, é verdade – são exaltadas e premiadas, aqui há uma difusa conspiração pra que nada dê certo. Possivelmente Carlos Betão passará mais um ano sem indicação, e se indicado, sem um prêmio por um trabalho que, este ano, se destacou sobremaneira nos palcos da cidade. Assim como vários outros artistas foram ignorados, injustiçados, sufocados pela mediocridade que, como cal num jardim, não impede que nada cresça e floresça.

Muita gente me pergunta, diariamente, acreditem, por que eu não vou embora daqui. Muitos por estarem de saco cheio de me ouvir reclamar, poucos por acharem que meu trabalho poderia conquistar um espaço de mais respeito em outras plagas, outros porque não acreditam em Salvador e não têm esperança nenhuma de que saiamos dessa mediocridade sufocante que só faz crescer cada dia mais.

Eu também me pergunto. Sou frouxo. Muito covarde. E preguiçoso. E, lá no fundo, um pouco romântico e esperançoso (talvez o romantismo e a esperança sirvam apenas de desculpa). Mas acho que não sou dos mais covardes porque brigo. Critico. Tento gritar neste deserto surdo devastado pela estupidez. Tento ampliar minhas ações, fazer interações, criar projetos que dialoguem com a cidade.

Talvez um dia eu canse. E vá-me embora, deixando mais um minúsculo buraco nesse imenso abismo deixado por grandes artistas que cansaram daqui, e precisaram sair pra sobreviver e serem reconhecidos. Artistas que nunca tiveram espaço na mídia local, mas que, estando fora, quando vêm são recebidos pela província como gênios. É muito triste, tudo isso. Eu estou triste com minha cidade. Com minha carreira. Talvez, ficando aqui, um dia eu canse, e sem ir embora, me enfie numa carreira acadêmica e cultive plantas, escreva pra gaveta, componha pros pássaros na janela. Darei as costas à cidade que tantas vezes deu as costas a mim.

Salvador tem salvação?


GVT

quarta-feira, novembro 18, 2009

Assim falou Emanuel Araújo... (ou: tem mais gente pensando assim...)

Como foi a vinda do Museu Rodin para Salvador? Porque a Bahia não estava na relação das cidades candidatas. Pois é, as cidades eram Recife, Fortaleza e São Paulo. Aí convidei o Jacques Villain para conhecer a Bahia e ele se encantou. Era verão, almoçamos no Trapiche Adelaide e saímos andando pela cidade. O Jacques parou uma hora e disse assim: ‘Esse é um lugar para ter um Museu Rodin na América Latina’. Fingi que não dei importância, mas tratei logo de ir cantando ele aos pouquinhos. Quando falei com ACM, ele achou maravilhoso, e começamos a trabalhar. Mas o que foi decisivo foi a visita do ministro de Cultura da França à exposição A Porta do Inferno (obra de Rodin) na Pinacoteca.
A vinda das obras foi tumultuada. Foi, mas não era para ser. Teve uma burocracia que culminou nessa confusão toda. Houve também a incompreensão de muitos baianos. Mexeu com o ego deles porque a Bahia tinha um certo caráter internacional.
E não tem mais? Não. Perdeu ao longo dos anos. Acho que há um enfoque errado no turismo baiano. A Bahia foi folclorizada e a Bahia não precisa dessa folclorização que estereotipa tudo, da baiana de acarajé aos capoeiristas.
O que fazer para recuperar o prestígio? Acho difícil. Até porque exigiria muitos recursos. O que sei é que houve um movimento de teatro muito intenso, que gerou nomes como Lázaro Ramos, e parece que acabou. Acabou a arte aqui. Onde está a memória de Genaro de Carvalho, de Jenner Augusto, de Mario Cravo?
A Bahia trata mal seus artistas? Trata. A Bahia tem um lado que é maior que qualquer coisa, ele impera sobre todas as coisas, tem seu próprio sistema, seus próprios meios. Às vezes, pode ser mãe, em outras pode ser madrasta.
Foi mãe ou madrasta com o senhor? Acho que sempre tive medo de saber. Por isso fui para São Paulo, porque lá estava protegido. A Bahia tem uma coisa: por mais que você queira dela, ela te nega. Fico pensando na condessa Luana de Noailles, em Carlos Bastos, em Genaro de Carvalho… Vejo que a Bahia foi tão madrasta com eles. A Bahia é madrasta.

(publicado na Revista Muito de 17/11/2009)

segunda-feira, novembro 16, 2009

Site Dramaturgia Contemporânea entrevista Gil Vicente Tavares

O absurdo do Teatro na realidade de GVT

O Brasil é um país surrealista com obras realistas. Talvez por conta dessas diversidades, de tantos universos paralelos, quase não se produz obras absurdas ou peças inspiradas em Ionesco ou Beckett em nosso país. Mas na contramão dessa “realidade” surge o texto de Gil Vicente Tavares, que no seu doutorado trata da questão com a dissertação "A herança do absurdo, vestígios no drama contemporâneo”. O autor baiano, de 32 anos, traz os javalis para dentro da nossa sala e mostra o desconforto das pessoas diante das alegrias do amor, da nossa simpatia e da nossa gente calorosa. Fina ironia.


A descoberta da obra de Gil Vicente Tavares e do grupo Teatro NU, se deu via internet. A entrevista aconteceu em dois momentos, via e-mail e depois presencialmente, aproveitando o congresso de artes cênicas da ABRACE, na USP, para o qual GVT tinha vindo. Na mesa de um dos bares da Pça. Roosevelt, numa tarde quente paulistana, Gil Vicente completou a entrevista virtual falando das possibilidades do teatro brasileiro e uma vontade incrível de entender porque o teatro baiano não consegue ter a mesma visibilidade que tem a música baiana. Pelos textos e pelo site (www.teatronu.com ), ficou uma vontade grande de ver a obra de GVT nos palcos sulistas.

Por Thereza Dantas

O grupo Teatro NU tem um intenso intercâmbio com artistas de outros países. Porque essa opção de diálogo globalizado?
Gil Vicente Tavares: Logo após me formar pela Escola de Teatro da UFBA, fui convidado a morar seis meses em Portugal, através da Cena Lusófona. Lá, tive contato com muitos artistas, pude ministrar um ateliê sobre minha dramaturgia com a Companhia Escola da Noite, de Coimbra, e ter meus textos lidos pela Companhia de Teatro de Braga, onde deixei uma grande amizade; Rui Madeira; assim como Fernando Mora Ramos, Antonio Augusto Barros e tantos outros, Portugal afora. Tempos depois, por conta da dramaturgia, Jorge Silva Melo, encenador de Lisboa, me botou em contato com Letizia Russo, que estava fazendo residência com seu grupo. Tal não foi meu espanto quando ela me respondeu um email que eu havia timidamente enviado, dizendo que conhecia Os Javalis, que havia gostado da obra, etc, e desse contato acabei indo a Roma ver a leitura encenada do texto acima e de Os Amantes II, outra peça minha, com direção de Pietro Bontempo, ambas traduzidas por ela.

A Bahia tem passado por um sério problema de histeria com questões de negritude, regionalismo, cultura popular, e tem fechado seu teatro para o diálogo com outros cantos do mundo. Não é possível que a terceira capital do país ainda se atenha a questões do século passado, em busca de raízes, identidades, quando a verdadeira busca seria de uma Salvador conectada com esse novo mundo, numa nova ordem mundial.
Neste ponto, é curioso que eu consiga dialogar mais com pessoas de fora.
Acho importante que possamos conhecer o que vem sendo feito ao redor do mundo. Mesmo que seja pra percebemos que fazemos muita coisa boa, que podemos daqui do terceiro mundo dar indicativos de uma possível arte universal em processo.

A classe artística em Salvador é uma das mais despolitizadas, desunidas e desarticuladas do país, mesmo com uma pós-graduação em artes cênicas muito bem conceituada, grandes artistas, grandes referências no cenário nacional, etc. Com isso, grandes ações, boas posturas críticas e uma maior consciência de classe atrapalham uma efetiva solidificação do teatro na cidade.
A verdade é que estou sempre buscando aprender. Formei o Teatro NU com atores experientes para aprender a fazer teatro. Quando busco um diálogo com outros países, quero colher dessas pessoas o máximo de conhecimento, de idéias, mesmo que seja para negá-las. Para negar as coisas, precisamos conhecê-las a fundo, e essa lição muito gente ignora.

Teatro é bom independente de nação, de cultura, de credo ou estética. Gosto de Dias Gomes e de Heiner Müller. Gosto de Anton Tchekhov e de Samuel Beckett. Essa pluralidade que nos legou o século XX é fundamental para que façamos um teatro sem pretensões equivocadas, mas também sem o ranço do academicismo e do pastiche. Um autor se inventa como uma invenção de estilos, como uma mistura de estéticas que é só ele. Assim deveria ser, pelo menos.

Essas experiências com artistas de outros países tem demonstrado diferenças ou igualdades das culturas neste século 21?
GVT: Isso vai parecer frase de efeito, mas o mundo está cada vez mais igual e cada vez mais diferente. No recente evento que o Teatro NU realizou, Diálogos sobre dramaturgia contemporânea”, pudemos ver isso bem de perto. As peças de Ramón Griffero e Darío Facal tocavam em assuntos próximos. Questões ligadas ao sexo, à cultura de massas, à televisão, em muita coisa os textos se pareciam na discussão. Mas as abordagens eram diferentes. Víamos um dramaturgo europeu, Facal, representando o cansaço da acumulação de cultura e história de seu país, enquanto Griffero trazia em seu texto a imensa ressaca do golpe contra Allende no Chile, seu país. Aí entramos na grande questão: Facal poderia ter produzido um texto que reverberasse a ditadura franquista, e Griffero poderia traduzir a fragmentária Santiago muito próximo da estética de Facal.
Eu escrevi uma peça sobre o Marquês de Sade. Dea Loher escreveu uma peça sobre Olga Benário dando ênfase ao seu período no Brasil. Cada um destes textos traduz angústias internas de nossos próprios países, mas que são as angústias do mundo todo.

Aconteceu algo bem interessante comigo, em particular. Nas leituras de Os Javalis e de Os Amantes II, em Roma, as pessoas no debate comentavam sobre uma realidade para-berlusconiana, sobre identificações políticas com o texto. Na Alemanha, houve um estranhamento, até, em relação a Os Javalis, como se eu estivesse tomando deles uma estética, e quando Rui Madeira assistiu a um ensaio da mesma peça, o primeiro comentário dele foi; vocês estão fazendo teatro europeu. Talvez tenha sido estranho pra ele – acostumado aos intercâmbios étnicos da Cena Lusófona – ver na Bahia alguém fazendo algo diferente daquela estética endógena e autofágica. Mas digo, o teatro em Salvador teve grandes momentos, com grandes encenações, grandes atores, e isso vem se rarefazendo cada vez mais. A estética plural daqui tem acabado e a possibilidade de fazer outros tipos de teatro tem sido cada vez mais difícil.

Dramaturgia brasileira: quais as dificuldades e as alegrias de se fazer texto no país?
GVT: Não há uma política efetiva para a dramaturgia e nem para o livro, no país. A dramaturgia é bem mais fácil de circular do que uma peça com atores, cenários, técnicos. Mesmo assim, pouco sabemos em Salvador de outras praças. Um incentivo à dramaturgia e uma maior circulação das peças seria ideal. O Governo da Bahia publicou, há alguns anos, a obra coligida de alguns autores baianos. Aonde estão esses livros? Em quais livrarias do país? A FUNARTE lançou, durante algum tempo, o prêmio de dramaturgia. A grana parece ter ido pro bolso dos dramaturgos. Mas as peças foram para as prateleiras das livrarias? Não adianta, também, somente publicar. É preciso fazer correr esses livros pelo país, pelas escolas de teatro, é importante que elas se conectem entre si, também. Hoje em dia, com a internet, acho que falta visão de alguns órgãos, algumas faculdades e alguns cursos de teatro, pois uma rede fantástica poderia estar sendo estabelecida pelo Brasil inteiro.

Eu, particularmente, ainda não tive muitas oportunidades de ter alegria com o que eu escrevo. Ao menos aqui no país. Mas tive uma experiência fantástica que foi a oportunidade de ter viajado pelo Festival de Teatro Brasileiro – cena baiana no Ceará. Viajamos com a montagem de Os Javalis e a resposta do público foi fantástica. Foi nossa primeira viagem com o grupo e pudemos constatar o quanto o texto comunica, provoca e diverte, ao mesmo tempo. Foi muito bom romper essa fronteira, num projeto importante como esse.

Como "virar" autor de teatro?
GVT: Eu jamais seria professor de matemática. A aptidão é algo fundamental. Claro que se pode estudar para ser um autor teatral, mas o simples fato de alguém querer estudar pra ser dramaturgo no Brasil, algo próximo de querer ser surfista no deserto do Saara, já demonstra nessa vontade uma predisposição.
Minha dramaturgia surgiu da minha prática da cena. Obviamente, assim como minha prática era pobre, eu também não faria a maior obra do século XX (comecei de fato a escrever em 1997). Mas sempre tentei ouvir a voz da cena. Imaginar os atores falando as réplicas. Imaginar a ação decorrente do que eu escrevia.

A dramaturgia tem partido pra algo confessional, narrativo e monologar, mas não quero polemizar sobre dramaturgia contemporânea, apenas dizer que ao longo dos séculos a dramaturgia mais interessante que ficou foi aquela onde a contracena, o que era dito internamente na cena, as metáforas e desejos disfarçados dos personagens é que motivavam as pessoas a sair de casa para ver teatro.
Eu jamais defenderia a dramaturgia fácil, vendável, “comercial”, como queiram chamar. Mas Ryngaert, pensador francês, apontava o problema do teatro contemporâneo que – cada vez menos “dramático” – acabava afastando o grande público. Lembro de uma entrevista de Ionesco onde ele criticava o Noveau Roman e identificava no teatro daquela época ecos de um estilo empolado, circunspecto, e podemos perceber por trás da crítica de Ionesco o que na obra dele se evidencia; todo seu antiteatro é totalmente teatral, prenhe de recursos cênicos, fórmulas dramáticas e toda uma herança que o teatro o legou ao longo dos séculos.

O autor nunca deve perder de vista o ator e o público. Isso já é um começo. E ler muito teatro. Ver muito teatro. Participar de montagens, mesmo como ouvinte, curioso, perceber como toda essa carpintaria funciona e vem funcionando há mais de 2.500 anos.

Como você avalia a novíssima safra de "dramaturgos" que estão surgindo?
GVT: Juntamente com algumas outras poucas iniciativas, o projeto “Diálogos sobre dramaturgia contemporânea” e as montagens que pretendemos fazer com o Teatro NU tentam suprir essa lacuna de conhecimento do que vem sendo produzido. Se pouco conhecemos do que vem sendo feito pelos “estabelecidos”, quanto mais dos novíssimos. Queria conhecer esses novíssimos, trocar experiências, fazer, quem sabe, um encontro da novíssima dramaturgia brasileira. Por que não?

Atores X Autores ou Atores + Autores?
GVT: Talvez um dos grandes nós da dramaturgia seja que muitos autores escrevem pra seu umbigo, pra si mesmo, e esquecem que a dramaturgia está em função do ator. Serei sempre a favor do ator. Tento ser, quando escrevo. Meu maior prazer é ver o prazer de um ator ao ler um personagem que criei, ou ver a vontade e a disposição com que um ator faz uma cena que eu havia escrito.

Dramaturgia é um sequencia de ações que um ou alguns atores interpretarão para um publico. Esse caminho não pode ser esquecido. Pra roubar um jargão dos executivos, é uma cadeia produtiva. Um processo que se é interrompido, se o ruído faz daquela dramaturgia algo ininteligível, algo está fora do lugar. Costumo dizer que a opinião que mais interessa, muitas vezes, dentre meus pares, é a do ator. Outro dramaturgo geralmente vai fazer considerações de caráter técnico, estrutural, o diretor muitas vezes vai olhar como um encenador que quer se aproveitar do texto pra se satisfazer, enquanto o ator tem a “inocência” de gostar de um texto pela forma que ele funciona em sua boca. Sinto-me resolvido em questões filosóficas, políticas nos meus textos. O mais difícil é que aquela peça funcione como teatro. Muitos poetas escreveram pra teatro e quebraram a cara porque o funcionamento da cena é diferente de se saber fazer um decassílabo ou uma rima. Nem tampouco é saber criar um personagem, apenas. É saber dizer a voz da cena, é conseguir dar vida a uma história, a uma trama, a uma fábula ou à falta dela.

O eixo Rio-SP ajuda ou atrapalha um autor que mora em outro estado do país?
GVT: O Rio de Janeiro foi a capital do país até a década de sessenta. E como capital, teve em torno de si todo um status. Desde a vinda de Dom João VI que o investimento na capital do país se fez presente, e não podia deixar de ser diferente com a cultura e as artes. Aliado a isso, a Rede Globo trouxe um poder midiático para o Rio jogando os holofotes todos para seus artistas.

São Paulo é um dos grandes centros econômicos do mundo, o dinheiro circula muito e é natural que haja uma maior concentração de artistas, intelectuais, pensadores, imprensa, editoras, SESCs, etc.
A questão, portanto, não é atrapalhar ou ajudar. Eles se destacam por questões de poder, finanças, estrutura. Não será batendo ou implorando a eles que os outros estados conseguirão uma solidez de um trabalho artístico.
Vivemos num país onde a corrupção toma todo o dinheiro público, onde os interesses em oprimir a cultura com o disfarce populista faz com que nós mesmos aceitemos sermos a cultura regional, o pires na mão atrás de alguma grana pra sobreviver.

Faltam políticas públicas. Salvador tem uma prefeitura vergonhosamente ausente. O Estado está metendo os pés pelas mãos na pretensa reviravolta que pensa estar fazendo na cultura. Não há boa educação. As pessoas querem beber cerveja, dançar pagode e ir à praia porque é a isso que elas são resumidas.
O que atrapalha os artistas fora do eixo Rio-SP é justamente estarmos fora do eixo. Não há uma vontade de investimento para a melhora do povo. Temos uma população miserável tanto na renda quanto na cultura. O que atrapalha um autor é ele ver que sua obra não circula, que ele é montado pra ficar pouco tempo em cartaz, que não há interesse das pessoas em serem tocadas pela arte, para além do riso fácil e do melodrama barato.

É claro que poderíamos dialogar mais com o eixo Rio-SP, mas geralmente quando esse diálogo acontece, o interesse que eles têm em nós é regionalista, étnico. Se eu escrevesse sobre sertão, candomblé, movimentos negros, apartheid social, haveria um interesse quase antropológico na minha obra, pois é esta a parte que nos cabe neste latifúndio.

Existe uma grande migração de grupos de teatro de outros estados para SP-RJ. Isso pode ser considerado um sintoma dessa concentração da renda?
GVT: Dizem que o PIB da cidade de São Paulo é maior que o resto do país. Essa circulação de dinheiro concentrada acaba proporcionando mais oportunidades para os grupos de teatro na cidade. Mesmo a cidade do Rio de Janeiro também está enfrentando problemas para manter seus grupos. Só o SESCSP é uma rede fenomenal de programação cultural. Os editais na Bahia geralmente oferecem um orçamento baixo e com isso você produz peças toscas... Isso desestimula a produção de teatro na sua cidade, no seu estado.

No caso de Salvador existe um agravante. Qualquer outra proposta mais contemporânea não é compreendida e aceita, como se o fato de tratar dessas questões nas minhas peças não estivesse falando da Bahia, de Salvador. Infelizmente isso acaba desestimulando a criação e a produção de peças de teatro em na cidade. Então, morar e trabalhar em São Paulo, ou no Rio, acaba sendo muito tentador...

O grupo de vocês disponibiliza os textos que já foram encenados no site oficial. Como encara a questão do direito autoral no país? Tem alguma sugestão para mudanças?
GVT: Pouca gente ganha dinheiro com venda de livro e CD. Apesar de eu ser um defensor ferrenho destes dois. O livro e o CD trazem uma legitimidade, é simbolicamente forte que alguém lance um livro ou CD. Mas essa deveria ser uma prática mais recorrente aliada à produção e diminuição de preço do produto; pensando não no lucro, mas no acesso das pessoas a esses bens. Eu mesmo recebo peças por email e tenho uma preguiça enorme de ler. O fetiche de pegar um livro cheirando a novo, riscar ele, voltar uma página, marcar um trecho, tudo isso é diferente de ficar em frente a uma tela lendo. Mesmo assim, acho que cada dia mais deveria se pensar num banco de textos virtual que açambarcasse toda (claro que sei que é impossível toda) a produção nacional.

O autor ganha dinheiro quando é pago pra escrever e quando os 10% da bilheteria lhe são repassados. Infelizmente, produtores e artistas não entendem o que é direito autoral, não entendem que aquela cena, aquele texto, aquele movimento, aquele cenário, tudo partiu de uma dramaturgia, que está sendo usada ali. Portanto, o autor precisa receber por aquilo. É como a execução de uma música na rádio. O compositor está tendo uma obra sua veiculada, algo que ele criou, que lhe pertence.

A grande revolução será uma grande publicação, difusão e divulgação de uma bibliografia de autores que pudesse circular pelas bibliotecas, ser vendida em livrarias, etc.
Uma política de tradução – através de intercâmbio entre países – seria maravilhoso. Termos acesso à nova dramaturgia turca traduzida pro português, enquanto na Turquia se lê dramas brasileiros, por exemplo, seria uma forma de troca de experiências, idéias, viagens, colaborações, tudo isso.

Gostaria de ressaltar que o espaço da rede tem revolucionado a comunicação e as artes. Vários sites e blogs aglutinam pessoas interessadas e podemos ter acesso ao que pensam pessoas de outros estados e de outros países. Parece pouco, mas é uma conquista termos conseguido mais de duzentos acessos num dia ao blog do nosso grupo. Temos, além de disponibilizado textos, fotos e futuramente trechos das peças, fomentado discussões que às vezes repercutem principalmente em Salvador.

Essa democracia da rede ainda vai nos levar a lugares interessantes. Espero, um dia, que os espaços legítimos e inteligentes da rede consigam abafar a imprensa oficial que elege muitas vezes o equívoco, o fácil e o comercial. Essa rede alternativa poderá colocar em foco assuntos, artistas e temas que a grande mídia não se interessa. Haverá uma seleção natural, a partir das escolhas dos internautas, e naturalmente também se fortalecerão e sumirão alguns espaços; num filtro espontâneo de valores e interesses.

Os textos Os Javalis e Os Amantes de Gil Vicente Tavares já estão à disposição no site Dramaturgia Contemporânea. Para download

Site oficial do Teatro NU e blog do Teatro NU