quarta-feira, abril 28, 2010

Itabuna, Camacan, e a cidade que não mora mais em mim...

O desejo deveria sempre mover o homem.


Em nossa sociedade, o desejo foi substituído pelo interesse, pela ganância, pela usura, pelo consumismo. Os homens agem não pelos seus desejos, mas porque devem satisfação aos seus pares, porque devem seguir determinado padrão, casar com determinada pessoa, ver tal filme, vestir-se de tal jeito, comportar-se de tal maneira.

Mesmo quem nega padrões, acaba por seguir outros, movido não pelo desejo, mas pela vontade de negar o sistema. Nossa sociedade não é, definitivamente, movida pelo desejo.

Viajei semana passada pro interior da Bahia, para as cidades de Itabuna e Camacan, onde o Teatro NU apresentou o espetáculo Os Javalis. E pude ver, na experiência toda cheia de desejos, o quanto estamos afastados da nossa essência e verdade.

Havia, ali, um desejo mútuo de Carlos Betão e de Itabuna, ele voltando à cidade, a cidade sem vê-lo há 20 anos; terra onde ele começou a fazer teatro. E era um desejo puro, simples, sem grandes holofotes, interesses, trocas de favores.

Havia, naquele povo que foi ao teatro, em Itabuna, uma vontade de ver arte. Sem estrelas, sem a grande mídia empurrando goela abaixo algum produto. Era um desejo advindo da carência da cidade em relação à arte. Um Centro de Cultura caindo aos pedaços, com teto desabando, um equipamento de som e luz que foi comprado há três anos e que até agora não foi instalado por nada mais do que incompetência pública. Equipamento que está se deteriorando, tecnologia ultrapassada, como tantas outras coisas nesse estado que sempre era pra ter sido e não foi (será algum dia?).

O riso simples, fácil, os aplausos calorosos, a pureza de espectadores que foram ali acompanhar uma história e se divertiram com um texto aparentemente cheio de filosofias e “discussões complexas”; pura bobagem, pois a verdadeira arte comunica e ali se estabeleceu uma comunicação verdadeira, sincera e efetiva; para além de afetiva.

Dois dias de casa lotada e a certeza cada dia maior de que Os Javalis ainda tem muito a dar, precisa correr este interior, o Brasil, (só) existe vida inteligente fora de Salvador.

Nunca subestimei ninguém. Em minha curta vida de professor, sempre procurei tratar todos como iguais e sempre acreditei na capacidade e inteligência de todos; esquecendo, claro, da preguiça de pensar que nos acomete hoje em dia. Mas, apesar de não subestimar ninguém, fiquei surpreso ao ver mais de 120 pessoas no Centro de Cultura de Camacan curtindo Os Javalis. Desde crianças até pessoas mais velhas, pude ver nos olhos e nos depoimentos ao vivo ou por escrito o quanto a peça havia mexido com as pessoas, levado a reflexões, a idéias “avançadas” sobre o homem e a sociedade.

Tudo isso aconteceu por causa do desejo daquelas pessoas. Muitas vezes ignoramos, menosprezamos e deixamos de lado coisas importantes pelo excesso que temos, pela arrogância, preguiça e comodidade. Mas numa cidade do interior do interior, onde as pessoas são totalmente carentes de arte e cultura diversificada – através do próprio depoimento delas notava-se isso – o desejo de ver algo diferente, que as tocasse de outra forma, por outro viés, fez com que, na pureza do desejo, a peça acontecesse e vibrasse dentro delas.

Desejo voltar com a peça. Circular pelo interior com a peça Os Javalis. Pude me sentir artista, pude comunicar, provocar, mexer com aquelas pessoas. As pessoas na minha cidade estão duras, perdidas, soltas num lugar que não deixou de ser interior, mas ainda não chegou a ser uma metrópole. Calça de veludo com rego de fora.

Enquanto Salvador ignora sua arte, o interior, carente e cheio de desejo abraça Os Javalis. Chego a pensar se aquele verso de Chico Buarque “a cidade não mora mais em mim” se aplica ao artista que sou.

Enquanto quase toda a equipe se dedicava a desmontar a estrutura que fizemos para a apresentação em Camacan, a sensação que eu tinha era de dever cumprido e de um vazio que começava a surgir.

Obrigado Itabuna e Camacan.


GVT.

domingo, abril 18, 2010

Dança contemporânea; o inferno pra fora dos bolsos...


Uma velha. Um careca barrigudo. Dois banquinhos surrados. Corpos que fogem à ditadura estética do bailarino clássico. Movimentos que fogem da pirueta, grand battement, tendus devant. Cenas mais conceituais do que dançadas, texto em cena, falado pelos dançantes. Música de Arvo Pärt misturada com salsa. Desconstrução do movimento.

Se eu lesse isso tudo, com certeza não teria ido assistir ao espetáculo El cielo en mi bolsillo, da Provisional Danza, de Madrid. Viria-me à cabeça as porcarias que tenho visto em cena, amparadas em modismos e conceitos, mas sem profundidade, verdade, propriedade e dança.

Os bailarinos Allejandro Morata, autor da coreografia, e Carmen Werner, diretora da companhia, fizeram um trabalho com sensibilidade e dignidade, sem qualquer preocupação em inovar e questionar, sem a preocupação de seguir linhas estéticas, muito menos em fazer performance, uma manifestação típica das décadas de 70 e 80 (já um pouco démodé), e que as pessoas por ignorância, burrice ou falta de capacidade artística insistem em empurrar nos palcos com a nomenclatura “dança contemporânea”.

Talvez o que mais eu sinta falta hoje em dia seja de uma poética da cena. Assim como tenho uma percepção de que as pessoas cada vez mais fogem da arte. Na dança, isso é claro. Só há duas explicações para as bobagens munidas de conceitos que vemos nos palcos de hoje em dia. Ou criou-se uma vergonha de se fazer arte, ou a falta de competência em criar um trabalho artístico, e sua decorrente execução, fez com que os trabalhos de dança ficassem na paródia, no conceitual, na desconstrução.

Todo grande artista desconstruiu a partir de uma base sólida. Hoje em dia, se desconstrói o que nem sequer tem capacidade de ser erguido. A arte confessional tirada de diários íntimos, com poesia de péssima qualidade, bem como criações que citam outras obras sem recriá-las, mas trazendo delas uma referência que se basta e não evolui em termos de criação, tudo isso tem sido a derrota da dança.  Pior é quando se parte pra gozação de arquétipos. Rebaixa-se a cena ao nível de um programa humorístico de terceira categoria. Gozar com os cânones é tão facilmente medíocre...

Allejandro Morata e Carmen Werner criam um trabalho dentro do limite de seus corpos. Mas corpos que têm história, que têm o que dizer, que têm dança. Talvez, o que aconteça hoje em dia é que não haja artistas que possam trazer uma técnica, uma história e uma poética para a cena. E por se saberem incapazes, criam – na ditadura da mediocridade – fórmulas performáticas que disfarçam a falta de uma poética no trabalho.

Confissões pessoais também podem ser matéria para a arte, mas a partir do momento em que essas confissões se transforma numa poética da cena. A arte é a transubstanciação da realidade. E é muita pretensão que alguns exponham sua vida no palco com uma música de fundo bonitinha, com objetos de cena delicados, com efeitos banais de luz e gestos, e digam que isso um trabalho artístico. Pior é trazer conceitos pra cena sem que isso se transforme em arte. Ou ficar a meio entre as linguagens para, na indefinição, disfarçar a falta de competência em assumir uma delas que seja pra se fazer bem-feito, dentro de uma criação sólida de uma obra artística.

El cielo en mi bolsillo não é uma obra-prima. Mas é arte num momento de desastre.

Ou desarte.



GVT.

sexta-feira, abril 09, 2010

Nosso Zé, um alguém

Acabo de saber do falecimento de "Seu Zé".

Seu Zé era uma pessoa estranha, diferente. Pesava sobre ele questões engraçadas e estranhas. Soube que ele era funcionário da Escola de Teatro da UFBA, foi realocado pra outro lugar, não quis ir e pediu demissão pra ficar na Escola.

Ele havia sido colega de Harildo Déda, mestre do teatro baiano, no colégio. Mas tomou um rumo na vida desconhecido, misterioso, mas no entanto bem simples. Resolveu viver o dia-a-dia de uma Escola de Teatro, onde ele conseguiu colegas que duravam três anos e meio, quatro anos, dez anos, e alguns que se foram antes dele, outros que ficaram pra contar história.

A figura do Zé-Ninguém aqui se torna paradoxal. Seu Zé poderia ter sido um Zé-Ninguém ou alguém mais que um Zé?

Ele assistia a todos os espetáculos da Escola de Teatro, emitia opiniões (às vezes comentava alto, durante, inconvenientemente), e era um quebra-galho pra tudo. Perguntava sempre pra gente sobre alguém, tecia comentários repentinos sobre assuntos dos mais diversos.

Não poderia ser oficializado como funcionário da Escola, pois não o era, mas soube recentemente que o câncer que o derrubou não foi suficiente, assim como o realocamento dele, pra que ele saísse de lá. Disse que queria morrer na ETUFBA, segundo eu soube; possivelmente não tinha muito pra onde ir.


Não sei se deixou filhos. Família. Não sei se deixou casa, não sei se deixou algum dinheiro - que não sei como conseguia - nem tampouco se deixou alguma história fora da Escola de Teatro.

Mas foi lá que ele deixou um vazio, inexplicável. Professores se aposentam, alunos de formam, funcionários são realocados, montagens são feitas e desmontadas a cada semestre. A Escola de Teatro, em tudo, representa o que de mais efêmero existe.

Seu Zé não. Sendo um Zé-Ninguém, sendo alguém, sendo todo mundo, personagem de uma farsa ou de uma tragicomédia, seu Zé conseguiu, por ser muito pouco, por querer muito pouco, mas estar sempre presente, ser uma figura que, não sei como, não sei porque, não sei aonde, fará uma imensa falta a todos que o conheceram. A partir de agora, ao entrarem naquela Escola de Teatro da UFBA, tenho certeza que será estranho a todos a falta daquele baixinho com cara de enfezado, mas que abria um imenso sorriso a qualquer sinal de carinho ou humor.

Estranhamente, Seu Zé, na Escola de Teatro, será uma das poucas coisas a que não poderemos chamar de efêmeras.


GVT.