Jussi,
Ontem, à noite, vinha dirigindo meu carro ouvindo Rachmaninov. Compositor russo que aprendi a admirar profundamente. Ouvia seus “Momentos musicais”, op. 16, quando, mais uma vez - ao ouvir a terceira peça - imagens, desejos e emoções me vieram à mente.
Não posso ouvir essa peça musical que me vêm, à cabeça, não só sentimentos, mas a recorrente vontade de montar “Tio Vânia”, de Anton Tchékhov.
Essa obra teatral é de uma beleza profunda. Trata da frustração dos sentimentos, da castração dos desejos, da impossibilidade da paixão. Temas eternamente atuais e poeticamente escritos por um dos maiores de todos.
Se alguém me perguntasse qual seria minha concepção para essa peça, eu mandaria ouvir o terceiro momento musical de Rachmaninov, contemporâneo de Tchékhov, tão russo e tão inspirado quanto. E mandaria ouvir as quatro versões que tenho das tantas que ainda pretendo conseguir. Nas interpretações dos seguidos pianistas está a dinâmica da peça, a alma da cada personagem, a poética da cena.
Seria insuficiente para um edital? Bem, montar Tchékhov em Salvador será, por um bom tempo, insuficiente e impossível. Eu jamais teria um projeto de montagem de “Tio Vânia” aprovado em Salvador. Nos editais, minha razoável experiência me mostrou que é quase impossível eu ser aprovado com os meus projetos pessoais, a partir da minha dramaturgia, ou a partir de João Ubaldo Ribeiro, que seja, com o melhor elenco possível que seja. Quanto mais um autor russo, morto, esquecido. Aliás, esquecido não! Pra ser esquecido é primeiro preciso ser lembrado, e Anton Tchékhov não faz parte da realidade nem dos estudantes de teatro, nem da população em geral.
“Por que não tenta a Lei Rouanet ou o Fazcultura?”, me perguntariam alguns. E temos, na minha resposta, a resposta ao insucesso atual das leis de incentivo em Salvador; o Fazcultura depende de decisão local, e não há interessados em outra coisa que não seja festa e camarote nas gerências de márquetim das empresas. Rouanet? As decisões são nacionais. E que representante nacional aprovaria verba pra Salvador, pra uma peça de um autor russo, com atores desconhecidos dele, numa perspectiva de naufrágio quase garantida?
Naufrágio, sim. Tchékhov escreve para a alma das pessoas. E, atualmente, as almas estão inacessíveis. A carapaça de insensibilidade e estupidez blindou o soteropolitano médio de qualquer possibilidade de percepção artística. Ele só ouve o que espera ouvir, só lhe interessa o texto que ele não precisa “traduzir”, não precisa se esforçar por adentrar um universo que fuja do lugar comum, do cotidiano, do medíocre e vulgar.
Não acho que o teatro deva ser museu. O Teatro NU, por exemplo, vem tentando dialogar com as atuais expressões dramáticas por aí afora. E me interessa deveras a produção contemporânea, as novas linguagens, as possibilidades do drama e da cena. Mas, parodiando um ditado antigo; “às vezes, pra se ir em frente, antes é preciso olhar pra trás”. Atrás está a grande estrada da vida, que fez o passado caminhar até a gente. E por ela eu adoraria voltar e me encontrar com essa obra belíssima de Tchékhov. E poder mostrá-la nos palcos da minha cidade. E poder tocar as pessoas com a poesia do mestre.
Acho que essa resposta dialoga, por linhas tortas, com sua carta. Não poder montar Tchékhov em Salvador diz muito de tudo o que você falou.
Enquanto isso, vou fazendo do momento musical de Rachmaninov um momento teatral; vou montando e remontando “Tio Vânia” na minha cabeça.
Isso, ao menos, Salvador não pode tirar de mim.
GVT.