quinta-feira, setembro 22, 2011

Areia, dança e deserto na Bahia


Certa feita, encontraram com um grande intelectual e disseram a ele que um aluno estava criticando suas aulas, ou seus livros, algo do tipo. Ao que o reconhecido escritor retrucou: “a juventude é o único mal que se cura com a idade”.

Fui assistir ao Balé Jovem de Salvador-BJS, iniciativa de Matias Santiago, grande bailarino baiano com passagens marcantes por companhias como a de Jorge Silva, o Grupo Corpo, de Minas Gerais, e o Balé do TCA.

Enveredando pela carreira de coreógrafo, e acumulando não só movimentações e ideias, mas também experiência em diversos funcionamentos de companhias, Matias, percebendo uma desaceleração no mercado da dança e a escassez de possibilidades para novos bailarinos mostrarem seu talento, teve uma ideia. Lembrando de seus tempos de bailarino, onde sua passagem por coreografias e grupos da cidade foi vitrine para seu talento, Matias resolveu montar um grupo que aproveitasse bailarinos egressos de escolas de dança, talentos e promessas da arte em Salvador.

Um belo dia, ouvindo uma canção minha em parceria com Ivan Bastos, gravada por Claudia Cunha em seu primeiro CD, Matias resolveu fazer um duo para o BJS. Entusiasmado, perguntei a Matias se ele já tinha ouvido outras canções minhas. Enviei algumas canções e, tempos depois ele me liga dizendo que o novo trabalho do BJS seria Areia, um balé a partir das minhas canções.

Fui pra ensaio, vi o que ele chamou de pré-estreia, vi a coreografia incompleta, e sempre, em algum momento, me batia aquele “hum...”. Os bailarinos sem vitalidade, coreografia suja, luz pobre, várias coisas inevitáveis para uma empreitada como a de Matias, com jovens sem experiência, eram compreensíveis. Bem, deveriam ser, pois para ele não era.

Depois de uma temporada de sucesso do projeto “Conexão Xisto”, a partir de uma ideia muito boa de conectar companhias de dança da cidade, fui ao último dia ver como estava Areia. O BJS, segunda companhia a se apresentar na noite, além de Areia apresentou mais dois trabalhos curtos criados por Matias para um grupo de dança estadunidense.

No primeiro duo, vi bailarinos mais seguros, com uma potência cênica e uma vitalidade que me fizerem me ajeitar na cadeira e ficar mais atento ao que se passava, ali. Depois, O sapo, um solo antigo de Matias, começava a confirmar pra mim que a empreitada de Matias não era e não podia ser em vão. Efusivos aplausos e, então, Areia.

Vi a coreografia como nunca tinha visto. Vi os bailarinos dançarem como nunca, alguns mais verdes, iniciantes, mas o grupo, como um todo, afinado e coeso. O som, melhor equalizado, só teve problemas numa gravação ao vivo que Matias escolheu, cujos problemas técnicos na origem já não ajudavam muito. E a luz, ainda 30% do que pode ser, veio com mais impacto, marcando e pontuando melhor algumas passagens.

Voltei, inevitavelmente, às minhas reflexões que faço há tempos sobre a desconexão da arte praticada aqui com seu possível público. Denis Guénoun, num livro intitulado O teatro é necessário, aponta para o fenômeno (na França, mas adaptável a muitos cantos) onde os jovens, cada vez mais, querem fazer teatro, e cada vez menos frequentam as salas de espetáculo.

Hoje, fazendo a agradabilíssima atividade de correr na esteira, vi uma reportagem no Globo Esporte – só vi, estava sem fone – de uma bailarina baiana novinha que teve algum grande êxito em Mônaco. As academias de balé pululam na cidade. A dança é uma das atividades mais estimuladas por pais para suas filhas (os talentosos meninos sofrem o estigma babaca de se tornarem gays, o que, em muitos casos, deveria ser até motivo de orgulho para que o menino fugisse de alguns padrões héteros completamente estúpidos de nossa sociedade).

Quando vem algum grupo de fora, e podem colocar na conta os de dança contemporânea, moderna, até mesmo dança-teatro, nosso complexo de caipira entope o Teatro Castro Alves com dondocas e adolescentes que mal se equilibram no salto, com seus vestidos de gala, maquiagens e euforia.

Um trabalho como Areia, e retiro sem falsa modéstia o mérito das canções, poderia estar num programa junto com as outras duas coreografias de Matias, mais alguma carta na manga dele, ou outro grupo convidado a fazer um trabalho próprio, num teatro como o Jorge Amado, ou Sala do Coro. Numa temporada de quinta a domingo com casa cheia. O público em potencial para isso existe, mas se esconde, ignora.

Matias não tem dinheiro pra pagar seus bailarinos. Não tem dinheiro pra pagar uma pauta num teatro caro e, pior de tudo, não tem dinheiro nem pra uma assessoria de imprensa e nem para uma boa divulgação, com chamadas na TV, outdoor, mobiliário urbano, etc. O nó entre iniciativa privada, público e políticas culturais do estado e do município deixa uma arte com capacidade de profissionalismo e/ou profissionalização à míngua.

Há um paradoxo no discurso e na ação das esferas públicas, no que tange à cultura. O fato de se levar dança para a periferia, estimular seus talentos, disseminar e fomentar novos grupos pelo interior, tudo isso é válido, necessário e positivo. Mas num momento onde se fala em sustentabilidade, como fazer com que as artes consigam alguma independência do Estado? Mesmo que pontual, relativa e cíclica?

Há que se pensar o profissionalismo e a profissionalização. A conquista do público que pode querer consumir arte. Uma viabilização de recursos e meios para que grupos de dança tenham acesso aos espaços, meios e mídias que potencializem seu trabalho. Impossível se pensar nisso com apresentações esporádicas a R$5,00 no Espaço Xisto, espaço ótimo e acolhedor, mas não inserido de forma significativa no circuito comercial da cidade. Impossível se pensar em sustentabilidade com mutirões de dança onde vários grupos se juntam para se apresentar aos amigos e colegas no Centro Cultural de Plataforma e, ao final, catar algumas moedas para pagar o buzu de volta pra casa.

Essas ações são válidas, essenciais e Matias está fazendo bem a parte dele com iniciativas como a “Conexão Xisto”, o “Tabuleiro da dança”, em parceria com Jorge Silva e Anderson Rodrigo. Há o “Viva dança”, durante o mês de abril, festival do Núcleo Viladança que enche plateias – mas é pontual e, não por culpa própria, não é multiplicador –, e tantos outros têm se virado para que a dança não aposente as sapatilhas na cidade.

Mas o Balé Jovem de Salvador poderia estar lotando um grande teatro da cidade com uma temporada concorrida, com preços altos, filas na porta e apoio, cobertura e interesse da imprensa. Isso puxaria outras ações, estimularia outros grupos, abriria mercado pra dança. Essa projeção daria força a bailarinos e novos grupos poderiam se preocupar em conquistar seu espaço, ter mais atenção ao detalhes de produção e correr atrás de um esmero artístico. Sim, correr atrás, pois a qualidade do que Matias apresentou no domingo não é o que se vê em termos de técnica e inventividade coreográfica, costumeiramente: e o próprio admite que o BJS é uma tentative de instigar outros a um apuramento técnico e artístico. Entra-se a parcela de culpa dos próprios artistas ao não se ter o cuidado, esmero e técnica para apresentar ao grande público algo bem acabado, bem dançado e realizado. No final das contas, o público quer ver um trabalho bem realizado, acabado dançado e que toque ele (das várias formas que a arte pode tocar).

Numa terra onde se paga 50 pro outro não ganhar 20 e a competência é imperdoável aos olhos dos invejosos, talvez seja mais difícil ainda se conseguir ações como essa. Mas se não se tentar, se os governos não ficarem atentos, a desconexão entre arte e cidade continuará violenta, os profissionais e um projeto de profissionalização sem perspectivas e a Areia de Matias vai ser apenas deserto.