sábado, dezembro 18, 2010

Bárbara Barbará e a dança que restará

Sempre tive vontade de escrever sobre Bárbara Barbará, desde o dia que a vi dançando a coreografia Ulisses, do Viladança. Depois disso, trabalhamos juntos num processo e o que de melhor podia acontecer acabou sendo o pior para minhas intenções críticas. Namoramos durante um bom tempo, depois de conquistá-la através de uma canção minha que – não por acaso – é uma das mais belas que eu considero ter feito.

Como eu mesmo digo na canção, de uma forma ou de outra “a única coisa certa é que tudo acaba”. Ou se transforma. E o fato de não mais estarmos juntos acabou ampliando minha admiração pela artista – pois a visão tendenciosa se esgotou – e foi aberta a possibilidade de, através desta sensacional bailarina, pensar a dança e sua relação com ela.

Assisti, ontem, Bárbara dançar um trecho de Desejo fatiado, de João Perene. A presença de Bárbara foi marcante porque, a despeito da qualidade inegável de boa parte dos bailarinos que passaram por Perene, era neste que eu via a verdade de sua arte; quando ele entrava em cena sua movimentação finalmente ficava prenhe de sentido e força. E assim o foi com Bárbara dançando, também. Sua técnica, expressão e força ressignificaram a dança de João Perene e me deixaram extasiado diante daquela movimentação impactante e bela.

Usei as palavras “técnica, expressão e força”, pois foi assim que Mestre King, decano da dança de Salvador, se referiu elogiosamente ao trabalho de João Perene, numa apresentação no Xisto Bahia. A apresentação contou ainda com uma trabalho capitaneado por Armando Pekeno e Augusto Omolu, bailarinos com história em seus corpos, história essa que esses trabalhos recentes de Salvador não trarão aos corpos da cena nem da plateia; e foi justamente esse o discurso de Mestre King, criticando a péssima fase da dança em Salvador, sem técnica, expressão e força, mas cheia de conceitos pra explicar essas ausências.

Ora, amparar-se em conceitos, teorias e se valer de outras áreas para justificar ideias é algo que a academia – em boa parte de sua masturbação teórica inútil – se vale para que um acúmulo de verborragia desnecessária se acumule em prateleiras, apenas saindo delas para retroalimentar teorias que, endogenamente, apenas reforçam uma confraria de acadêmicos que ficam no círculo vicioso de elogios, aprovações em bancas, editais e prêmios.

Com um mínimo de perspicácia, posso em seis meses me valer de uma vasta bibliografia para comprovar que o som advindo de uma flatulência é música. E nem por isso uma sinfonia de peidos será agradável de ser ouvida. Muitas conceituações em dança se valem de princípios parecidos, e com esse processo árido e danoso à dança, a academia, o conceito, a teoria é que vai ao palco; quando deveria ser o processo inverso. Raramente os conceitos acadêmicos influenciaram a criação artística – e sempre quando houve alguma tendência nesse sentido tivemos experiências ruins, como o povo de teatro que quer pegar um livro superestimado que fala sobre um tal “teatro pós-dramático” e, a partir de suas conceituações, criar peças teatrais.

Bárbara Barbará, com sua exuberância de bailarina, participou de praticamente todos os trabalhos que, nestes últimos anos de destruição da dança em Salvador, se salvaram; no meu ponto de vista. Não à toa, os coreógrafos, que eram mais produtivos e que apresentavam obras de maior destaque, trabalhavam ou passaram a trabalhar com ela. E são justamente estes que não têm produzido por conta de um domínio de uma mentalidade acadêmica que tolheu a criatividade da dança soteropolitana.

Para completar, justamente quando um governo de esquerda assume o poder na Bahia, a principal política pública desenvolvida (e que não é política cultural) foi a política de editais. Distribuir mais dinheiro para a dança através de edital. Um pensamento neoliberal de que basta dar o dinheiro, aumentar as possibilidades de acesso ao dinheiro e pronto, estamos fazendo o bem da dança. E a prefeitura (o artigo sobre ela está sendo gestado) é vergonhosamente nula.

Nestes quatro anos de aumento de verbas em editais, muito mais gente fez arte na exata proporção em que nenhum trabalho significativo ficou dessa temporada invernal. Vamos olhar pra trás, com toda a grana disponibilizada, e lembrar de qual grande trabalho de dança ou teatro marcante? Talvez, em música, lembremos das diversas ações com música eletrônica; esta que pareceu, por vezes, ser o foco da política pública do estado. Isso a despeito do governo, no apagar das luzes, ressuscitar o “Pelourinho dia & noite” da gestão passada com novo nome fazendo o óbvio que, nos mais de três anos de abandono, o Pelourinho precisava.

Bem, não falei quem são os três coreógrafos. Um deles, João Perene, já foi citado. Cristina Castro, a outra, conseguiu com o Viladança uma ideia de profissionalismo ligado à criação artística que fazia suas coreografias ficarem um mês em cartaz com casa cheia, criando espetáculos que ficaram no imaginário da cidade. Em Aroeira e Habitat, últimas criações do Viladança, Cristina finalmente deu um solo a Bárbara, coroando o trabalho dessa dançarina que foi, junto a Simone Bonfim, a dançarina que mais simbolizou o trabalho do terceiro coreógrafo a ser citado aqui; Jorge Silva. Esse, pra mim, vinha produzindo um trabalho que, mais do que um nível internacional, está entre as melhores coisas que sei da dança no mundo. Mas está colecionando perdas em editais e vendo seu trabalho tolhido pela falta de políticas públicas que possam potencializar o talento desse artista.

Numa homenagem feita a Saul Barbosa, compositor e violonista baiano falecido recentemente, fui correndo assistir um duo de Bárbara com Leandro de Oliveira; um alívio aos meus olhos, mas também um choque. Vi bailarinos talentosíssimos noutras coreografias da homenagem, todos praticamente oriundos da Escola de Dança da Fundação, que poderiam formar companhias de dança fenomenais; e todos obscuramente perdidos e sem espaço para efetivamente mostrar seu trabalho (assim como tantos outros talentos parados por aí). O alívio que senti naquela homenagem Mestre King sentiu ontem, na apresentação de João Perene, junto comigo.

Uma bailarina como Bárbara, que devia ter a agenda cheia de trabalhos, vive das migalhas de apresentações aqui e acolá. Aonde esse equívoco todo vai dar, eu não sei. Só sei que aqui vou eu, quixotescamente, conquistando a inimizade de muitos, por ser o único a expor o sentimento de tantos que, covardemente, se calam e permitem que a dança se paralise no conceito e a arte morra na cidade. Salvador é a cidade do silêncio intelectual que corrobora sua mediocridade.

Dulcinéias como Bárbara ficam distantes dos palcos. E eu combaterei moinhos atrás da dança que restará.

5 comentários:

Anônimo disse...

Gil Vicente,
Pena que eu não soube dessa apresentação, mas por tudo que eu tenho assistido, concordo (quase inteiramente) com você.
Fica aqui minhas homenagens à Barbara, e naturalmente extensivo aos seus coreógrafos "artistas, não acadêmicos".
Abçs. Lia Robatto

Anônimo disse...

Gil Vicente,
Pena que eu não soube dessa apresentação, mas por tudo que eu tenho assistido, concordo (quase inteiramente) com você.
Fica aqui minhas homenagens à Barbara, e naturalmente extensivo aos seus coreógrafos "artistas, não acadêmicos".
Abçs. Lia Robatto

Anderson Rodrigo disse...

Bom,
A questão aqui não é tirar os créditos de profissionalismo de "A", "B", "C" e nem "D", citados nesse manifesto/critica ou desabafo muito intimo e muito raso para ser colocado ou referido a um âmbito profissional, que venha contribuir com a colocação da atual situação da dança soteropolitana - sem técnica, expressão e força.
Acredito que é preciso ter mais apropriação de todas as possibilidade e condições do mercado, assim como conhecer os trabalhos de inúmeras companhias de dança de salvador para fazer tal comentário pretensioso e determinante.
Sabemos que em alguns campos de nossa produção, os argumentos e as criações estão meio a realizações de fetiches e em apenas soluções bem eloquentes para sanar as crises financeiras momentaneidades, mas de toda forma isso não dar o direito de artistas de campos agregado criticarem e/ou determinar com palavras de profissionais da areá a situação da nossa produção em dança.
Acredito que precisamos antes de qualquer coisas, plantar para colhermos! e sobre tudo isso que nos incomoda em nosso gostos pessoais e profissionais, o que fazemos para mudar ou contribuir isso????????????????
Att,
Anderson Rodrigo

Gil Vicente Tavares disse...

Caro Anderson

Sistematicamente, os que gostam ou desgostam do que escrevo alçam meu texto a discussões que tergiversam o tema principal. Acho que a dança perdeu força em Salvador, a despeito dos novos talentos e novas ideias que têm surgido. Em parte pelas confusões das políticas públicas, em parte porque a criação sistemática, e que potencialize uma apreciação artística que suplante teorias e se traduza em movimento, tem sido abandonada.
Não tive, em momento algum, a pretensão de fazer um texto profundo. Esse é um espaço independente, lê quem quer e eu escrevo o que quero, da forma que quero. Não fiz um artigo para ser publicado em revistas especializadas, nem me esmerei por pesquisar e referendar a escrita. Como você mesmo disse, é um desabafo meu.
A Áttomos, Clara Trigo, Grupo His, Tranchan, tem muita gente aí. Mas aonde? Onde se pode ver dança sistematicamente feita, com público? A gente só aprende fazendo, e a falta de espaços, bem como recursos que somem em trabalhos que se apresentam e somem sem deixar vestígios, tudo isso, pra mim, no meu modo de ver, do ponto onde me encontro e penso, tem atrapalhado a dança.
É muito difícil tomar partido e se dizer o que pensa publicamente. As pessoas de dança que dividem mesas de bares comigo dizem atrocidades, concordam com muito do que eu digo, mas a hipocrisia tem sempre que reinar. Até porque é difícil na província se entender que eu posso gostar da pessoa e não gostar do trabalho dela, ou de um trabalho específico. E não gostar é bom, pois deixa o artista em alerta pra pensar sua criação. Elogios podem destruir uma carreira.
Enfim, o que eu faço pra mudar ou contribuir é escrever - provocando discussões -, é criar, é fazer parcerias, é assistir e criticar, e fazer e ouvir críticas. Eu dialogo. Pouca gente levanta discussões, mas o que tem de gente que pega carona na sua pra legitimar ou criticar ideias...
Resumidamente, critico a falta de um mercado e de trabalhos de dança consistentes e recorrentes para podermos sonhar com uma melhor inserção dessa arte que tanto admiro no dia-a-dia da cidade. E acho que certos embasamentos teóricos e acadêmicos têm legitimado trabalhos que, na prática, não funcionam, não atingem a mim e a alguns dos meus pares com os quais converso. Convido você a fazer um artigo, mais profundo e sem ser pretencioso, rebatendo o meu, caso discorde do que eu digo. Terei um prazer enorme em publicá-lo aqui. Seria muito bom para o debate e, quem sabe, eu até aprenda com você e mude minha opinião. Até porque se fechar em ideias é de uma burrice sem fim. E eu luto diariamente pra deixar de ser burro.

Abraços,

GVT.

Gil Vicente Tavares disse...

Anderson, já que somos amigos também do facebook, se quiser contribuir com o debate lá, acho bacana, pois com essa ferramenta nova os comentários de meus textos migraram quase todos pra lá...