Quando você não souber como ir em frente, olhe pra trás.
Assim ouvi certa vez esse ditado que dizem ser africano. Mas aqui não é a África. Aqui não é um continente, apesar do tamanho continental do nosso Brasil. País de uma riqueza musical ímpar, música brasileira, sem prefixos, sem “afro”, ou “luso”, ou “anglo” ou “nipo”. E algo de interessante surge disso. Esse prefixo “afro” parece ignorar, desprezar ou diminuir a pluralidade de um vasto continente de culturas distintas. Quando usamos prefixos, geralmente nos referimos a países, e mesmo assim com o grave risco de ser reducionista.
Assisti hoje, pelo X Mercado Cultural, Egberto Gismonti com a participação da Orquestra de Sopros Pró Arte e posso categoricamente falar que Gismonti faz música brasileira. Sem prefixo. E sem reducionismo.
Gismonti foi meu ídolo de adolescência. Até hoje, quando falo que tenho 20 CDs dele em casa os músicos se admiram. Acompanhei todos seus lançamentos, a entrevista em que ele dizia ter um projeto de gravar um CD com Gilberto Gil (meu outro ídolo de adolescência, o que criou em mim um frisson) e a declaração dele de que ele ia parar de compor para cuidar da sua obra. Ele havia chegado, na minha opinião, a um grau de sofisticação na composição e arranjos que talvez tivesse se esgotado; no sentido mais positivo que possa ter.
Daí, Egberto partiu para orquestrar suas ideais com grupos sinfônicos. No entanto, “olhando pra trás”, a música de Gismonti ficava amarrada a um convencionalismo e pouca criatividade que ele não soube romper; Stravinsky, Béla Bartok, Villa-Lobos, grandes compositores do passado recente haviam esticado ao máximo esse diálogo entre erudito e popular, explorando novas sonoridades, ritmos e melodias. Seus discos com orquestras soavam mais antigos, menos estimulantes que seus trabalhos pregressos.
Gismonti sozinho é suficiente e geralmente melhor. Com algumas exceções, como um excepcional disco que ele gravou com Charlie Haden, ao vivo, em Montreal. Disco esse que ponho sempre entre meus preferidos, ao lado do “Duas vozes”, dele com Naná Vasconcelos. Por sinal, foi pra Naná que Gismonti fez sua melhor orquestração, ao meu ver; umas cordas que entram em “Berimbau”, gravação que foi utilizada por Luis Arrieta para coreografar os homens do Balé do Teatro Castro Alves. Balé para o qual ele compôs uma trilha; “Sonhos de Castro Alves”, também (é, os tempos mudam...).
Egberto Gismonti abriu o concerto tocando violão, aquele violão de dez cordas onde ele supervaloriza o instrumento dando-lhe riqueza harmônica, melódica e rítmica. Depois disso, pude ver o balé de Gismonti. Convidando ao palco a Orquestra de Sopros Pró Arte, o compositor e multi instrumentista passou a ser um regente. Mas um regente que mais dançava e se divertia que propriamente regia. Ou, talvez por estar dançando e feliz, estivesse regente melhor do que ninguém. Lembro-me de uma vez que vi em vídeo Leonard Bernstein regendo a 9ª de Beethoven, e na hora do canto coral ele simplesmente ergueu os braços no ar e dançou, dançou junto com a música; melhor regência não poderia haver.
A Orquestra de Sopros Pró Arte é uma orquestra composta por jovens de 16 a 25 anos, se não me engano. Mas é uma orquestra de músicos. Em momento algum precisamos relevar o fato de serem jovens para suportar desafinos, desarranjos, desatinos. Eles são músicos, com técnica, com suingue, com precisão. Claro que há sempre o que melhorar, são jovens, mas estão inteiros ali, sem aquela chatice de ser um trabalho social ou de inclusão ou de incentivo para retirar jovens das drogas, ou de qualquer coisa que seja. E, mesmo sendo isso tudo – o que também é válido – temos que ouvir música, e não fazer caridade com nossos ouvidos. A arte não tem preconceito, nem cor, nem credo. Tem beleza; e é esse o alvo que todos devem perseguir.
Após uns dois ou três arranjos de Gismonti pra suas próprias canções, misturando-as em inventividades e sonoridades delicadas e sofisticadas, ele ficou sozinho ao piano pra recarregar ainda mais minhas energias. Não consigo nivelar por baixo, nivelo por cima e sofro muito com isso. Mas assistir Gismonti tocando é algo que me reabastece por um bom tempo para aguentar minha própria mediocridade e a mediocridade que me circunda.
Quando comentei com minha mãe; tomara que ele toque “Sete anéis” e logo depois ele iniciou os acordes da canção, vi que tinha ganho a noite até na sinergia do repertório. Egberto é um dos poucos artistas que me tiram no chão. Ele me faz perceber o real valor da arte, experiência que tive em poucos momentos da minha vida.
Vê-lo se recriando naqueles jovens, com alegria e satisfação, traduziu muito bem o que o próprio disse ao entrar no palco. Ele dizia ter a sensação de que tocava com o futuro; e assim acreditando numa utopia de que as coisas possam melhorar.
Vendo Gismonti encantado, fazendo música de alta qualidade com aquela orquestra, dançando e sorrindo, vi o que realmente é a alegria brasileira. Vi o que realmente somos nós, sem prefixos. País onde reinventamos tudo, e subvertemos até mesmo ditados. Vendo aquele momento mágico de um músico consagrado tocando suas canções com o futuro da nossa música, reinventando-se e renovando-se musicalmente, me veio a inversão do ditado que abriu este artigo;
Quando não tiver como ir pra trás, olhe pra frente.
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