domingo, outubro 31, 2010

Meu pai subiu no telhado


Meu pai subiu no telhado. Sim, isso é uma paródia da famosa piada de português, povo que ele amava e que publicou seu último livro em vida. E parodio a piada porque a coisa que meu pai mais gostava no mundo era fazer piada e sei que ele riria muito (deve estar rindo, talvez) de um artigo sobre seu falecimento iniciado assim.

Meu pai subiu num telhado, mas num telhado bem alto de um palácio, de um zigurate, de uma sinagoga, de um barracão. Ele subiu em todos esses telhados e tantos outros da vasta cultura de um homem especial, talvez o único próximo a mim cujo título de gênio coubesse como a nenhum outro.

Ildásio Tavares nunca esteve nos holofotes como alguns de sua geração. Mas iluminou a cultura brasileira. Se eu fosse desfilar o currículo de meu pai, precisaria escrever uns dez artigos. Livros, jornais, revistas, TV e google dão conta do recado. Entrementes, falar um pouco do quanto meu pai iluminou minha vida talvez seja uma metonímia do homem que ele tentou ser e em muitos momentos foi pro mundo.

Desde pequeno, bastava eu aparecer entusiasmado com alguma música, algum escritor, que ele logo me mostrava os defeitos. Foi um crítico feroz de todas as obras, a começar pela minha e, principalmente, pela dele. Como todo grande intelectual, via os defeitos e rachaduras, as falhas e fraquezas que o senso comum aplaudia e ignorava. E sofreu muito por isso. A grandeza oprime e a verdade dói. E era um grande que defendia verdades. Nem sempre as verdades, mas as suas verdades, e era muito íntegro com elas.

Dificilmente temos o que merecemos. Muitos são louvados em demasia, outros sofrem pela escassez de reconhecimento. Mas meu pai foi um lutador e um vencedor porque, a despeito da mediocridade opressora que tentava lhe anular, ele conseguiu galgar degraus que, se não o levaram ao merecido altar de gênio que era, ao menos lhe trouxeram momentos de alegria, como ao desfilar homenageado pela Nenê da Vila Matilde, em São Paulo, ou na comemoração de seus 70 anos, com momentos lindos como o de Gerônimo e Vevé cantando É d’Oxum em francês, na versão dele, ou o belo discurso de Jorge Portugal na entrega da Medalha Zumbi dos Palmares, etc, etc...

Tive o prazer de cochilar a manhã inteira no colégio depois de virar a noite vendo meu pai compor com Baden Powell. Tive a honra de, já exaurido, ter um poema em redondilha todo refeito ao lado dele quando eu tinha 7 anos de idade. Aprendi a fazer poesia, a reconhecer a beleza de muita coisa no mundo graças a meu pai. E o que levamos da vida é a beleza das coisas, a poesia dos momentos, das palavras, das cores e melodias.

Meu pai subiu num telhado, mas diferentemente da piada, ele não morreu. Ele está ali, em cima do telhado, olhando pra mim e pro mundo com olhos críticos. Eu sei que ele está lá olhando e pensando o quanto o mundo perdeu ao não reconhecer sua poesia e seu pensamento, e, nós poucos, de cá, pensando o quanto parte do mundo e eu ganhamos ao reconhecer sua poesia e seu pensamento.

Alguns poucos olharão pro telhado, em busca de meu pai. Ele vai estar lá, como todo mestre. Pois um mestre só se torna mestre mesmo quando o que ele pode oferecer deixa de ser ele e passa a ser a gente. E meu pai está mais em mim do que em qualquer outro momento esteve.

Agora é o momento de começar a aprender quem eu sou. Aos poucos, por toda vida. Tentando buscar em mim a poesia e sabedoria do pai e do mestre. A tristeza aparece no momento em que não olhamos as coisas belas.

E não tem nada mais lindo, agora, do que ver meu pai de cima do telhado, olhando pra mim e torcendo pra eu seja um grande homem. Para que eu não deixe que a pobreza do mundo invada nossa alma.

Foi isso que ele me ensinou. E será isso que eu tentarei fazer minha vida inteira, porque agora a responsabilidade aumentou; meu pai subiu no telhado e estará de lá, olhando pra mim, e dizendo; “agora é com você. Já fiz minha parte e fiz muito bem”.

29 comentários:

Gerana Damulakis disse...

Gil Vicente: emocionantes suas palavras. Receba meus sentimentos.
É bem estranho pensar que, de repente, não receberei mais uma ligação de Ildásio para falar de um poema, ou apenas para conversar. Uma coisa não mudará: sua obra e o que ela representa para as letras baianas, para as letras em língua portuguesa. Ildásio foi grande, ele é grande.

Judith disse...

Gil! Nosotros no nos conocemos, pero el sentimiento en cualquier punto del mundo, es simplemente eso, un sentimiento, y es lo que trasmite cada una de las palabras del texto. No te conozco pero te imagino fuerte, percibo esa fortaleza que tu padre te habrá trasmitido, y sé que seguirás con paso firme descubriéndote, a través de tus obras, de tu arte,y de tu pensamiento. Es tan raro estar tan lejos y desear darte un apretón de manos. Vas a seguir construyendo el camino que tu padre ha dejado para ti. Bjs.-

ivan huol disse...

Fica a lembrança do carinho e amor com que seu pai sempre nos tratou... Belíssimo texto, parceiro!

Ivan Huol

Luciano Tosta disse...

Gil,

Deixo mais uma vez meus sentimentos e meus abracos 'a voce e sua familia. Se estivesse no Brasil certamente iria ve-los nesse momento. Seu pai foi um grande mestre para mim. Um exemplo para o qual sempre olhei com admiracao e respeito.
Lhe procurarei em dezembro ai na terrinha.
Um grande abraco,
Luciano Tosta

Unknown disse...

Gil,
não nos conhecenos. Vi vc apenas duas vezes em lançamentos de livros de seu pai aos quais fui acompanhando uma amiga em comum. Ainda assim, gostaria de comunicar-lhe o meu pesar. A imagem que fica para mim de Ildásio era a de um homem de inteligência privilegiada, um caldeirão fervilhante de emoções e, no fundo, um coração transbordante de bondade. Sentiremos sua falta, mas qdo a saudade bater poderemos olhar para dentro de nós, onde, de certo, o veremos acenando de cima de algum telhado.
Meu abraço,
Silvana.

Fabrício Brandão disse...

Gil,

Seu pai esteve comigo nos últimos tempos, participando ativamente da trajetória da Revista Diversos Afins, ajudando-nos a perceber melhor e mais lúcidos a poesia dos nossos dias. Era uma alegria ouvir os conselhos via facebook, e-mails e etc.

Agora fico aqui a olhar o telhado, certo de que o mestre nos observa.

Forte abraço, meu caro, a você e a todos que amavam nosso querido Ildásio!

Iza Calbo disse...

Oi,
Conheci seu pai na Tribuna da Bahia, quando ele levava a coluna para publicação e o editor dizia: "- Lá vem o porre!". Mas Ildásio não era um porre. Tinha o olhar pedinte de atenção para o que estava ali escrito e, durante anos, coube a mim a leitura seguida de um comentário (Para ele). Se seu pai subiu no telhado e deve estar lá, certamente irá amar este seu texto de homem-menino cheio de amor. Meus sentimentos sem tristeza, porque ele não gostaria.

Iza Calbo disse...

Oi,
Conheci seu pai na Tribuna da Bahia, quando ele levava a coluna para publicação e o editor dizia: "- Lá vem o porre!". Mas Ildásio não era um porre. Tinha o olhar pedinte de atenção para o que estava ali escrito e, durante anos, coube a mim a leitura seguida de um comentário (Para ele). Se seu pai subiu no telhado e deve estar lá, certamente irá amar este seu texto de homem-menino cheio de amor. Meus sentimentos sem tristeza, porque ele não gostaria.

Anônimo disse...

Gil, meu velho, o texto é muito, mas muito bonito e emocionante. Se Ildásio me emocionava facilmente - com seu amor, em forma de sonetos, e com seu humor, em forma de epigramas e histórias que ele contava - agora, dentro de um texto tão bem escrito, e escrito pelo filho do homem... Estou profundamente comovido.
Abraço forte.

Henrique Wagner

Ludmila Soares disse...

Gil Tavares, condolências!
Texto magnifico, que representa muito bem o que seu pai é enquanto materia nesse mundo hipocrita.
Conheci Ildasio por uma conhecidencia do destino... Pelas poucas vezes que estivemos juntos e pelos emails trocados, percebi o quanto é explendida a sua genialidade, e é assim que ele deve continuar a ser reconhecido para o mundo e principalmente pelos amantes da literatura.

Com suas poucas palavras me mostrou que eu tambem posso fazer a diferença a partir do que escrevo, e todo o apoio e estimulo para que me aperfeiçoe dentro da literatura vai constra sem duvidas nos meus agradecimentos...
Tenho certeza que onde quer que esteja, estara conosco da forma mais explendida que alguem pode existir, dentro dos nossos corações.

Sabedoria e serenidade pra você e sua familia, para que o ajude a não cair do telhado em que os observa.

Ludmila Soares (ludy.soares@hotmail.com)

Unknown disse...

Gil,

não te conheci pessoalmente, mas conheci um pouco de você pelas palavras do seu pai.

Tenho certeza que sim, ele está no telhado iluminando e fotalecendo você, seus irmãos e todos que tiveram a oportunidade de conhecê-lo e sabem a grandiosidade do gênio Ildásio.

Quero te dizer que estarei orando por você e seus irmãos para que a compreensão de que ele está contigo seja um conforto. Tenho plena certeza de que ele cumpriu sua missão e com total êxito.

Fique com Deus!

Anônimo disse...

Jil Vicente: Soltanto adesso ho appreso la triste notizia del lutto che ci ha colpiti e mi permetto di esprimerti i miei sintimenti di sentita partecipazione al vostro dolore, com preghiera di estendere le piu sentite condolianze a tutti i imembri della famiglia. Vi sono vicino Damiano Masciave pontocom2004@hotmail.com

Filipe Cavalieri disse...

Caro Gil
Lamento profundamente.
Há alguns meses fiz um trabalho na Bahia e fiz questão de ir visitar seu pai e matar saudades de sua casa e da praia...
Tratamos de tocar novamente a Lídia de Oxum e copiei vários arquivos de música com suas obras; além de cópia do VHS em formato DVD da récita do Castro Alves que remasterizei o som, que agora é audível.
Depois disso ele foi ao Rio tratar de seu novo livro e degustamos um belo café da manhã no hotel que estava em Copacabana. Conversamos sobre produção, cultura e gravei um vídeo com Ildásio comentando sobre a ópera (vou te mandar um link) em inglês e português.
Em suma: só prazer
Estou triste mas feliz por ter tido sua companhia e ensinamentos em alguns bons momentos de minha vida.
alafyá
filipe cavalieri

Almirante Águia disse...

Vai poeta, insufla-nos de poesia, inspira-nos à boa arte, ao franco debate social. Do alto da grandeza eterna. Amém

Via twitter

Lisarda disse...

Gil Vicente: espero que o seu pai siga sempre olhando pra vocé. Bela e profunda lembrança.Meus respeitos,
Ignacio.

Liliana Matos disse...

Temia esse dia. Sinceramente não queria. Ildásio, uma das pessoas mais importantes da minha vida. Afeto... Afeto... Muito afeto! E a lembrança de suas piadas e seu carinho de poeta. Pela poesia de Catro Alves nos enontramos e através de sua boca, eu ainda adolescente, ouvi um dos versos que ele mais gostava "Que a Brisa do Brasil Beija e Balança"
E que ela te guie, poeta, pelo infinito!!!

Liliana Matos

Amadeu Alves disse...

Caro Gil Vicente, seu pai me chamava de Teófilo. Fui agora ao dicionário e ví: Amigo de Deus.
No dia 27 de agosto deste ano, ele fez aqui na Casa da Música, o que parece-me ter sido sua despedida dos palcos nesta era, com o VOCÊ JÁ FOI A CAYMMI?
Os poucos momentos que tivemos juntos, foi de grande consideração.
Saudações Saudosas!!!
Grato por partilhar essas suas palavras.
Amadeu Teófilo Alves

Tito Bahiense disse...

Gil, meus sentimentos.

Durante os ensaios para estréia de "Lídia de Oxum" que tive o prazer de fazer parte, conheci pelos bastidores do TCA seu Pai.
Raro senso se humor que demorei um tempo para compreender. Um sábio!
Hoje, abrir o jornal e lí a homenagem feita pro poeta, escritor, compositor, intelectual Ildásio Tavares.
Chego em casa abro o Teatro Nú e leio seus escritos, sentimentos e me comovo.
Parabéns pelo pai que lhe deu a orientação de vida que lhe faz ser o cara talentoso que és.
Abrs, Tito Bahiense

Tito Bahiense disse...

Gil, meus sentimentos.

Durante os ensaios para estréia de "Lídia de Oxum" que tive o prazer de fazer parte, conheci pelos bastidores do TCA seu Pai.
Raro senso se humor que demorei um tempo para compreender. Um sábio!
Hoje, abrir o jornal e lí a homenagem feita pro poeta, escritor, compositor, intelectual Ildásio Tavares.
Chego em casa abro o Teatro Nú e leio seus escritos, sentimentos e me comovo.
Parabéns pelo pai que lhe deu a orientação de vida que lhe faz ser o cara talentoso que és.
Abrs, Tito Bahiense

Soraia Drummond disse...

Quando conheci seu pai percebi que se tratava de alguem que não era deste mundo. Os olhos dele só viam poesia.
Seu senso crítico, que você bem assinalou, era a busca da perfeição já vista para além da beleza.
Ele dividiu comigo sua poesia e sua amizade. E em agradecimento a tamanha generosidade tenho musicados poemas dele e tive a horna de ser a primeira a gravar a musica que ele fez com Baden Powell.
Os limites do conhecimento humano são devastadores diate a face da morte que nos priva repentina e cruelmente da convivência com alguém. Mas ao mesmo tempo devemos lembrar que existem outros estágios aos quais chegamos apenas após cumprir nosso papel aqui onde estamos. Ele cumpriu o dele sim, muitíssimo bem.
Você consegue ouvir os aplausos?
São ensurdecedores meu rapaz! Todos para seu pai, e para você que continua a existencia dele.
Avante! Jah guia! One love!

Soraia Drummond disse...

Quando conheci seu pai percebi que se tratava de alguem que não era deste mundo. Os olhos dele só viam poesia.
Seu senso crítico, que você bem assinalou, era a busca da perfeição já vista para além da beleza.
Ele dividiu comigo sua poesia e sua amizade. E em agradecimento a tamanha generosidade tenho musicados poemas dele e tive a horna de ser a primeira a gravar a musica que ele fez com Baden Powell.
Os limites do conhecimento humano são devastadores diate a face da morte que nos priva repentina e cruelmente da convivência com alguém. Mas ao mesmo tempo devemos lembrar que existem outros estágios aos quais chegamos apenas após cumprir nosso papel aqui onde estamos. Ele cumpriu o dele sim, muitíssimo bem.
Você consegue ouvir os aplausos?
São ensurdecedores meu rapaz! Todos para seu pai, e para você que continua a existencia dele.
Avante! Jah guia! One love!

Moacir Eduão disse...

É uma bela reflexão. Lembrou-me o fato de que nosso tão ilustre Zeca de Magalhães acampou nas terças rimas do céu, depois de cair do telhado, talvez por contemplá-lo, também, como teu pai. Nós, poetas e telhados, sempre caímos uns nos outros. Sempre não sabemos se somos telhado ou chão. Que importa, para nós? Nem tanto como para quem nos contempla contemplando telhado e chão.
Grande eternidade!!!

Unknown disse...

Gil, lamentamos profundamente. Lembramos hoje a memória de Ildásio Tavares nas nossas redes sociais:

http://www.facebook.com/notes/casa-de-jorge-amado/homenagem-a-ildasio-tavares/487677550794

http://www.youtube.com/watch?v=a580PUxzjrE

Gil Vicente Tavares disse...

Elenilson,

Busquei seu nome e vi textos seus em vários lugares sobre meu pai. Não só pode como deve publicar o artigo, sim, adoraria que essa homenagem fosse disseminada.
Foram tantas as palavras de tantos, aqui, que devo apenas dizer que meu pai, inseguro e carente que era, deve ter ficado entre emocionado e sem-graça ao ver tantas demonstrações de afeto.

sintam-se abraçados carinhosamente e, mais uma vez, obrigado pelas palavras...

Achel Tinoco disse...

Sim, com certeza ele subiria mesmo num telhado, e se não fosse por outro motivo, para ralhar com a nossa cara. Além do poeta que era, era uma grande figura, e fazia da vida um bom motivo para sorrir, sempre. Grande abraço!!!

Márcia Tude disse...

Gil,

Que saibamos perpetuar as lições (duras, eu sei)que ele nos deixou: limar, polir e encontrar, por fim, algo de belo.

Beijos no coração!

Fátima Santiago disse...

Gil,

Se há outra existência, com certeza Ildásio agora está acompanhado de alguém que o faça rir, pois isso ele soube fazer muito bem aqui na terra com os seus comentários engraçados e inteligentes e sua grande humanidade.

Uendel disse...

Belíssimo texto, grande homenagem. Meus pêsames.

Anônimo disse...

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