quinta-feira, outubro 28, 2010

Dilma, Serra, e a traição de Beethoven


Assisti ao debate entre Dilma Rousseff e José Serra na Record, no mesmo dia em que resolvi reouvir a sétima sinfonia de Beethoven, em lá maior, opus 92, que há tempos não ouvia.

A sétima sinfonia de Beethoven é considerada, por muitos, a melhor sinfonia do compositor alemão. Para alguns, como Otto Maria Carpeaux, a melhor sinfonia já escrita.

Pouco conhecida do público comum, acostumado à grandiosidade da nona, o tchan tchan tchan tchan da quinta e, para os mais chegados, a terceira, Eróica – com sua marcha fúnebre – e a sexta, Pastoral, precursora da música programática, a sinfonia em lá maior, opus 92, tem particularidades provocantes que me levam sempre a refletir sobre arte, criação e recepção (não falo aqui de Teoria da Recepção, sobra a qual sei quase nada).

No primeiro movimento, Beethoven trai o ouvinte. Ele começa com uma ideia de melodia, com uma construção harmônica e rítmica que vai nos conduzindo a uma atmosfera. De repente, ele pisa no freio e muda a direção da sinfonia. Há uma sensação, contudo, não de estranheza, mas de surpresa, deleite com a rasteira que levamos. Beethoven é tão vagabundo que abre a possibilidade de compor uma grande sinfonia, mas deixa pra trás e compõe outra coisa.

O segundo movimento trás outra rasteira. Mas essa é para os músicos, regente e quem se interesse em saber o andamento escolhido por Beethoven. A estrutura das sinfonias, até aquele momento, era um movimento rápido, um lento, uma dança (pra acordar o povo) e um final rápido, grandioso. Quando lemos o programa da sinfonia percebemos que o compositor alemão abdicou do movimento lento, compondo um alegretto.

Ora, o próprio nome em si nos traz uma ideia de algo leve, singelo, mas por trás desse alegretto se encontra um dos movimentos sinfônicos mais pesados, tristes, fúnebres e melancólicos da música ocidental. Outra traição, outra rasteira e mais um encanto.

No presto, que vem logo em seguida, uma cadência ritmada é interrompida, na versão de Karajan, ao menos, por um momento de suspensão, como se a orquestra respirasse numa dança lenta, uma valsa de fim de noite. Mas o ritmo é retomado e esse jogo lento rápido dá um volume a esse movimento que, noutras versões que conheço, não é tão evidente. Os regentes parecem obedecer à indicação de que seja presto, rápido, e ignoram o que Karajan, controverso e nem sempre elogiado pelos críticos em suas versões, parece ter percebido. Há certos elementos na obra de arte que estão além da compreensão do criador, ou além da leitura simples e objetiva.

O allegro con brio surge como quarto movimento e é inevitável, pra mim, perceber o quanto de frevo há nesse movimento final. Sim, frevo. A dança frenética do movimento final – sim, ele deixou a dança pro final – poderia muito bem ser acompanhada por uma caixa ritmando um frevo, ou um galope.

Já achei um alujá pra Xangô num quarteto. A última sonata do compositor alemão, a opus 111, tem um movimento que é jazz puro. Se não for tocado assim, soa estranho aos nossos ouvidos. Nas Variações Diabelli, uma das variações chega a uma complexidade harmônica, desconstruindo a boba valsa do editor, que soa contemporânea e eterna. Podemos citar a melodia infinita do quarteto n.14, dele, e tantas outras revoluções, traições, rasteiras e ideias precursoras na obra de Beethoven. E tudo surpreende. Encanta. Eleva. E se renova. Traídos pelo desejo, pelo intelecto e/ou pelo óbvio, Beethoven nos mostra o quanto uma obra pode ter a grandeza do mundo todo nela.

Assisti ao debate da TV Record entre os presidenciáveis Dilma Rousseff e José Serra. Não consegui suportar ver até o final a sucessão de ofensas, acusações e despreparos. Pude ver ali a traição, a rasteira, a surpresa.

E saí de lá com uma imensa vontade, às vésperas da eleição, de falar da traição, rasteira e surpresa na sétima sinfonia de Beethoven.

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