Um rei, ao descobrir que é traído, chega à conclusão, depois de saber da traição de sua cunhada, também, que todas as mulheres são traidoras. Por conta disso, ele resolve se casar toda noite com uma mulher e no dia seguinte matar a mesma. Assim, ele vai se casando e matando todas as mulheres do seu reino.
Xarazade, filha do vizir, resolve se casar com o rei, então. Seu pai tenta proibir, pelos motivos óbvios, mas ela consegue, com suas artimanhas, chegar ao leito nupcial. Pede, no entanto, que sua jovem irmã se deite com ela. Previamente combinado, antes de dormir sua irmãzinha pede que Xarazade conte uma história. Ela começa a história, só que o dia raia. O rei, curioso pelo final, decide deixá-la viva por mais um dia para que termine a história.
Só que as histórias de Xarazade nunca terminam. Sempre, ao amanhecer, a história está no meio, e uma vai se emendando na outra. O rei vai protelando a morte dela, para ouvir as histórias, por mil e uma noites.
Assim é a obra de arte, o teatro, o cinema, a dramaturgia. É a arte de contar uma história que prenda a atenção do espectador, com momentos de tensão que o levem à curiosidade do outro dia; até que se complete o ciclo. A pena por não prender a atenção; a morte. A palavra morre. A arte morre.
Assisti ao filme Testemunha de acusação, de Billy Wilder, ontem à noite. Esse austro-polonês, fugido da guerra, migrou para os EUA, deixando pra trás o nazismo e a morte de sua família em campos de concentração. E se tornou um de seus maiores cineastas. Um gênio das pequenas obras.
É público e notório meu descontentamento com o cinema americano. Bem como com Molière, com as comédias de costume. As fórmulas. Tudo isso aí se baseia em fórmulas e artifícios, me irritam e me dão um desprazer profundo. Mas tudo bem-feito tem efeito. Tudo bem-dito é bendito.
Assim são os filmes de Wilder. Se meu apartamento falasse e Quanto mais quente melhor já haviam sido suficientes pra eu me tornar um fã desse diretor que deixava pendurado em seu escritório "How would Lubitsch do it?", numa referência ao diretor alemão, seu mestre.
No entanto, ao ver Testemunha de acusação, pude perceber mais claramente a maestria com que Wilder conduz os atores e os diálogos. Ciente de que depois da tragédia não se pode escrever mais sem humor, vemos, num filme de tribunal, diálogos espirituosos e bem-feitos, com atores precisos, sacadas de roteiro, e a tão desejada leveza que Calvino nos dizia em suas seis (que são cinco) propostas para esse nosso milênio.
Geralmente, as pessoas querem imitar os grandes gênios, querem ter como referência direta algum ídolo que tem maneiras muito próprias de criar. Vai-se a referências radicais, de um Heiner Müller a um Tarkovsky, de um Samuel Beckett a um Greenaway. No entanto, temos que ter muito cuidado para, na tentativa de inspirarmo-nos em certos autores, não acabarmos sendo um mero pastiche, uma caricatura de uma linguagem muito pessoal e intransferível na criação artística.
Billy Wilder consegue estar aquém das grandes referências que tenho no cinema. Não entra, em hipótese alguma, nos meus “dez mais”. Mas sua importância para o aprendizado da arte talvez seja das maiores. Excelente carpinteiro, ele conseguiu fazer filmes perfeitos, dentro de seus propósitos. Deliciosos e inteligentes. Bem-humorados e críticos, sarcásticos e irônicos; corrosivos.
O diretor austro-polonês dizia que o bom diretor era aquele que não aparecia e pedia; “não aborreça as pessoas”. O que é bom nunca aborrece. Seja a poesia dos filmes de Tarkovsky, seja o silêncio dos filmes de Sokurov, seja o absurdo dos filmes de Greenaway, seja a crueza dos filmes de Haneke. Mas antes de buscar a poesia, o silêncio, o absurdo e a crueza, é preciso saber fazer uma boa obra de arte. Antes de tudo, temos que saber contar uma boa história, sob a pena de morte artística.
GVT.
Um comentário:
Billy Wilder leu Boileau e aprendeu com ele, pois o crítico fracês, 200 anos antes já havia dito: "não aborreça o leitor".
Postar um comentário