segunda-feira, julho 12, 2010

Árvores abatidas, aves abafadas...

Salvador voltou a um status desagradável. Ao menos, pra mim. Hoje, é uma cidade onde pulo de alegria ao saber da vinda de espetáculos do fora, na esperança de assistir bom teatro com bom texto, boa direção, bons atores. Essa mistura essencial se tornou raridade aqui. Esse tripé ator/texto/diretor tem sido sempre manco.

Soa estranho às novas gerações – estou falando como um idoso, é engraçado isso – quando digo que houve época em que o público dizia que nosso teatro era bem melhor que os “enlatados”, os “caça-níqueis”, e até mesmo os clássicos e contemporâneos que vinham pra cá.

Isso, não necessariamente, era verdade. Aliás, Jorge Luis Borges dizia que a dúvida é um dos nomes da inteligência. Mas dava alegria e estímulo saber do prestígio que conseguíamos atingir.

Pois estamos num momento onde ansiamos por boas coisas vindas de fora. Ou, ao menos, coisas vindas de fora. Voltamos a ter um referencial equivocado de que não somos capazes de fazer algo como os espetáculos que vêm pra cá, o que é uma inverdade extrema, terra que somos de talentos e técnicos de alto gabarito, desempregados, fora do palco, desestimulados e sem perspectivas.

Nunca freqüentei tanto o Teatro SESC-Pelourinho quanto agora. Tem sido um alívio ver certos espetáculos que vêm pra cá pelos projetos de circulação. Pude assistir um Peer Gynt muito interessante da companhia PeQuod, do Rio de Janeiro, numa ousada mistura de bonecos com atores interpretando o clássico de Ibsen. E pude ver, agora, o espetáculo Árvores abatidas, ou para Luís Melo, da Marcos Damaceno Companhia de Teatro.

O espetáculo se baseia, ou se inspira, na obra de Thomas Bernhard, romancista e dramaturgo austríaco que teve apenas uma montagem profissional em Salvador (e provavelmente não terá mais nenhuma durante um bom tempo), mas que é montado e remontado na Europa, sendo, talvez o autor mais montado pelo Berliner Ensemble; muito por conta de seu atual diretor artístico, Claus Peymann, vienense como Bernhard.

Assim como na maioria da obra de Bernhard, o texto trata de uma Viena decadente. Num jantar oferecido a um grande ator – e os jantares estão presentes sempre na obra do autor austríaco – uma mulher, amargurada e oprimida pela mentalidade da província, espera a hora da refeição, enquanto destila numa sala contigua as mazelas dos personagens desse jantar.

A atriz Rosana Stavis interpreta a personagem na medida certa, acompanhada pelo violinista Roger Vaz, num dueto preciso e afinado. Direção econômica, cenário funcional, mais do que mirabolante – como gostam os deslumbrados – e, o mais importante; teatro.

Ao entrar na sala de espetáculos do SESC-Pelourinho, a primeira frase que disse foi; “ih, os alunos da Escola de Teatro não vão gostar porque é realista”. Na ignorância e despreparo técnico e intelectual que nos assola, a percepção em relação a um espetáculo como esse se torna estrábica e frágil. E seja talvez essa leitura desqualificada do fenômeno teatral que esteja, também, arrasando nossa criação artística em Salvador.

Ao sabor de modismos ultrapassados, sofremos uma decadência muito próxima à relatada pela personagem da peça, que é também a decadência e pensamento provinciano de Curitiba, que é talvez a decadência do pensamento que no século XXI se tornou tão violento e apavorante.

Um clássico montado numa encenação experimental, ousada e cheia de malabarismos, bonecos, efeitos. Um texto contemporâneo encenado de forma clássica. Ao teatro se abrem várias possibilidades. Todas as possíveis. Mas é preciso técnica. Aprender pra esquecer. O Peer Gynt e Árvores abatidas são duas experiências gratificantes de teatro, a despeito de escolas, preconceitos, linhas estéticas. Mostram o homem em suas fragilidades, defeitos e fraquezas. E também sua beleza e dignidade.

Esse é o princípio esquecido muitas vezes pelos aventureiros que não sabem o que estão dizendo, escrevem conceitos e mais conceitos pra serem aprovados em editais, mas possuem a fragilidade de quem não aprendeu pra esquecer. Ou não aprendeu. Ou esqueceu que a técnica só é válida quando some na espiral da cena.

Somos árvores abatidas. Aves abafadas. Produção decadente, poucas perspectivas de um mercado profissional. Abro os roteiros de espetáculos na cidade e fico torcendo pra que mais peças de fora venham, já que os artistas daqui não têm saída; ou melhor, citando Tom Jobim, têm como única saída o aeroporto.


GVT.

3 comentários:

Daniele França disse...

Para mim como aprendiz da escola de teatro é muito triste concordar com muito do que foi dito, e me sentir perdida, buscando entender o momento que nossa cidade está vivendo. É fato que assistir a esses espetáculos é uma alegria muito grande, e a algum tempo não ia ao teatro com medo de ficar muito triste com a qualidade dos espetáculos. A realidade presente na faculdade de teatro da UFBA é um reflexo disso, nós alunos somos pouco estimulados a ler, ver, fazer e pensar na arte cênica. Os professores estão sem força, nós precisamos de estímulos, exemplos a seguir, precisamos de referência.
Eu acredito que é possível reverter essa situação, não quero ir embora da minha cidade achando que as coisas só são possíveis em outros lugares. Buscando entender um pouco as coisas e após as provocações do encontro sobre manutenção de grupos e um bate-papo sobre dramaturgia do SESC, criei um blog:artescomestiveis.blogspot.com. Buscar entender esse momento é uma forma de iniciar um processo de mudança.

Gil Vicente Tavares disse...

Daniele,

Este espaço aqui não pretende demolir, e sim provocar, multiplicar, refletir. Quanto mais espaços tivermos pra pensar, melhor. Costumo dizer que sou o pessimista mais otimista que existe. esculhambo tudo, mas lutando pra que as coisas melhorem.
Bom saber que tem gente como você, que não se acomoda, que não se cala. É isso aí.

grande abraço,

GVT.

Daniele França disse...

Obrigada Gil. Desculpa se em algum momento no que disse a cima eu acabei por passar algo que não queria. Gosto muito da escola de Teatro sou defensora dela e dos professores que são artistas, o que é maravilhoso. Foi muito mais um desabafo. Não acho que os professores são culpados pelo sistema, eles são tão vítimas quanto nós alunos, nem acho que tudo é uma “bosta”, tem produções belíssimas festas na escola, o que queria dizer é que ela é um reflexo da realidade que vivemos; tem coisas boas e coisas que precisam ser mudadas ontem. Despertai-vos, levantai-vos, se quisermos uma mudança real, é preciso sair mesmo do comodismo e do comodismo acadêmico também. Forte abraço Gil, continue provocando reflexões, sendo o agitador que você é, me alegra muito ler e multiplicar pensamentos construídos no blog.