segunda-feira, junho 07, 2010

"Resposta a Jussilene" ou "quero montar Tchékhov, mas não posso"


Jussi,

Ontem, à noite, vinha dirigindo meu carro ouvindo Rachmaninov. Compositor russo que aprendi a admirar profundamente. Ouvia seus “Momentos musicais”, op. 16, quando, mais uma vez - ao ouvir a terceira peça - imagens, desejos e emoções me vieram à mente.

Não posso ouvir essa peça musical que me vêm, à cabeça, não só sentimentos, mas a recorrente vontade de montar “Tio Vânia”, de Anton Tchékhov.

Essa obra teatral é de uma beleza profunda. Trata da frustração dos sentimentos, da castração dos desejos, da impossibilidade da paixão. Temas eternamente atuais e poeticamente escritos por um dos maiores de todos.

Se alguém me perguntasse qual seria minha concepção para essa peça, eu mandaria ouvir o terceiro momento musical de Rachmaninov, contemporâneo de Tchékhov, tão russo e tão inspirado quanto. E mandaria ouvir as quatro versões que tenho das tantas que ainda pretendo conseguir. Nas interpretações dos seguidos pianistas está a dinâmica da peça, a alma da cada personagem, a poética da cena.

Seria insuficiente para um edital? Bem, montar Tchékhov em Salvador será, por um bom tempo, insuficiente e impossível.  Eu jamais teria um projeto de montagem de “Tio Vânia” aprovado em Salvador. Nos editais, minha razoável experiência me mostrou que é quase impossível eu ser aprovado com os meus projetos pessoais, a partir da minha dramaturgia, ou a partir de João Ubaldo Ribeiro, que seja, com o melhor elenco possível que seja. Quanto mais um autor russo, morto, esquecido. Aliás, esquecido não! Pra ser esquecido é primeiro preciso ser lembrado, e Anton Tchékhov não faz parte da realidade nem dos estudantes de teatro, nem da população em geral.

“Por que não tenta a Lei Rouanet ou o Fazcultura?”, me perguntariam alguns. E temos, na minha resposta, a resposta ao insucesso atual das leis de incentivo em Salvador; o Fazcultura depende de decisão local, e não há interessados em outra coisa que não seja festa e camarote nas gerências de márquetim das empresas. Rouanet? As decisões são nacionais. E que representante nacional aprovaria verba pra Salvador, pra uma peça de um autor russo, com atores desconhecidos dele, numa perspectiva de naufrágio quase garantida?

Naufrágio, sim. Tchékhov escreve para a alma das pessoas. E, atualmente, as almas estão inacessíveis. A carapaça de insensibilidade e estupidez blindou o soteropolitano médio de qualquer possibilidade de percepção artística. Ele só ouve o que espera ouvir, só lhe interessa o texto que ele não precisa “traduzir”, não precisa se esforçar por adentrar um universo que fuja do lugar comum, do cotidiano, do medíocre e vulgar.

Não acho que o teatro deva ser museu. O Teatro NU, por exemplo, vem tentando dialogar com as atuais expressões dramáticas por aí afora. E me interessa deveras a produção contemporânea, as novas linguagens, as possibilidades do drama e da cena. Mas, parodiando um ditado antigo; “às vezes, pra se ir em frente, antes é preciso olhar pra trás”. Atrás está a grande estrada da vida, que fez o passado caminhar até a gente. E por ela eu adoraria voltar e me encontrar com essa obra belíssima de Tchékhov. E poder mostrá-la nos palcos da minha cidade. E poder tocar as pessoas com a poesia do mestre.

Acho que essa resposta dialoga, por linhas tortas, com sua carta. Não poder montar Tchékhov em Salvador diz muito de tudo o que você falou.

Enquanto isso, vou fazendo do momento musical de Rachmaninov um momento teatral; vou montando e remontando “Tio Vânia” na minha cabeça.

Isso, ao menos, Salvador não pode tirar de mim. 



GVT.

5 comentários:

Tássio Ferreira disse...

Só para afirmar também: Tchékhov NÃO MORREU!

bahiaflaneur disse...

Belo texto.
Infelizmente, pura verdade dita aqui. Anton T., mestre, seria desprezado aqui.
O Louis Malle fisse um film baseado em Anton T. Obra prima.
Triste Bahia da SECULT....
BF

Jussilene Santana disse...

só para constar, o debate continuou no facebook....

Leda Sacramento disse:
Mas Gil , vc está muito ressentido com Salvador...é difícil, mas nada é impossível...fiquei curiosa de ver essa montagem ... ouvi falar muito bem de "Os javalis"...estar à frente tem seu preço...seu trabalho é muito bom...um abraço!

Plug de Cultura da Secult:
Como se trata de um debate, gostar... Ver maisíamos de registrar apenas que Gil paticipou da comissão de seleção do edital Jurema Pena (circulação de espetáculos de teatro) 2009 e sabe que não é o Estado quem decide e sim uma comissão formada pela própria classe. O projeto de montagem de "Os Javalis" foi aprovado em edital (Manoel Lopes Pontes 2007), pelo edital (Jurema Penna, 2008, de circulação) e de projetos como "Teatro NU cinema", aprovado pela demanda espontânea do FCBA ou "Sade", aprovado pelo Fazcultura. Não há "quase impossibilidade". É preciso conhecer as regras do edital, preparar bem o seu projeto e aguardar o julgamento da comissão. Todas as pessoas podem inclusive indicar membros das comissões de seleção através de fóruns e colegiados da sociedade civil. Os questionamentos fazem parte da democracia, os pareceres e pontuações a cada critério são públicos e disponíveis.

Aninha Franco disse:
A única coisa não democrática é a escolha da comissão, diria Stalin, pensando em como sacanear Gorki, Maiacovski, Ana Akmatóva, etc...

Gil Vicente:
Caros PCSB, faltou voc... Ver maisês lembrarem que o Teatro NU foi contemplado também, através do Fundo de Cultura, com o projeto "Diálogos sobre dramaturgia contemporânea". Ao contrário do que muitos tentam dizer pra enfraquecer meu discurso, não critico porque perco tudo, mas porque vejo erros.
É engraçado o PCSB se manifestar, vestindo a carapuça. Contra fatos não há argumentos. Relutei muito em revelar algo que me foi dito pelo Secretário de Cultura, mas ele indicou um nome para compor a comissão de um edital porque achava que precisava de um negro. Independente da competência - que não tinha para estar ali - do cidadão escolhido.
A partir do momento em que uma comissão de teatro é composta por credos, etnias, posições políticas, ou seja lá o que for, a coisa complica, e muito. Acho um equívoco, mas é o caminho da Secult. São escolhas. Que pressupõem perdas pra alguém. E que indiretamente pesam contrariamente à possibilidade de se montar um Tchékhov em Salvador.
Todo o pensamento da nossa "cultura" vai contra isso, e a favor de "identidades" que nada tem a ver com "arte". Pois a arte é o espaço da transgressão, da anarquia, da fantasia e da liberdade. E não o espaço para proselitismos, dirigismos e antropologismos.
A cidade toda caminha numa direção que, para mim, é equivocada. De um lado "azelite", estúpida, preguiçosa, ignorante e vazia. De outro, os que se valem de credos, cores, ideologias, partidarismos e folclores. E espremidos no meio se encontram os que relutam em ser artistas, fazendo arte, simplesmente arte, algo que, dissociadado do discurso pregado e defendido, não interessa mais por aqui.
Cara Leda, estou profundamente magoado, não ressentido. Estou "de mal" com minha cidade. Mas o simples fato de escrever, criticar, revela minha vontade de mudança. Ou, segundo alguns, é apenas o reforço do folclórico "Gil só sabe reclamar". Porque aqui existem os que brigam porque perderam, os que não brigam pra tentar ganhar e os que defendem porque estão ganhando. Poucos discutem idéias.
E chega, senão vira artigo.

Jussilene Santana disse...

E mais:

Aninha Franco disse:
Gil, querido, é engra... Ver maisçado mas verdadeiro, ACM gostava de arte isoladamente. A projeção da arte baiana nos anos 1990 deve-se a isso e portanto é uma questão carlista de foro íntimo e defunto. Os políticos, pós.carlistas, inclusive, estão nem aí pra essa merda toda. Wagner deve nos achar um saco antes, durante e depois do seu whisky. João Henrique não consegue nos achar. O débil mental do Marcio Meirelles de dentro do paletó ridículo que não lhe cabe deve estar achando que alguém está achando alguma coisa porque ele, coitado, se leva a sério (gargalhadas)... A cultura, Gil, não significa nada para o Brasil, ainda. E nesta gestão, toda a pouca coisa que nós construimos foi por terra. É ponto.

Vitor Barreto disse:
Essa coluna do meio formada pelos que relutam em ser artistas, simplesmente arte, algo que, dissociado do discurso pregado e defendido, anda escaaassa por aqui. Não sei se precisaria dos dedos de uma mão pra contar.

Gil Vicente:
E a coluna fica espremida... oprimida... reprimida... comprimida...

Aninha Franco:
O bom é que o que está preso vai sair. A dialética, a dialética, a dialética...(...)O Plug Cultura Sepult - Secretaria de Sepultamentos Culturais - Bahia saiu da área? Por que será? (...)Outra dúvida: será que a comissão sabe o que é Anton Tchékhov? Tenho minhas dúvidas...

Leda Sacramento:
Estou torcendo que conhe... Ver maisçam Tchekhov... realmente há muitos equívocos , mas não vou chegar ao ABSURDO POLÍTICO de comparar essa gestão com a de ACM e CIA...pelo amor de Deus!!!!
Eu me lembro bem da grande MERDA que era a Secretaria de Cultura outrora....pelo menos pra mim....é claro que tiveram "artistas" bem contemplados...poucos , numa terra onde não se nasce , estréia.... Hoje ,a democratização da verba da cultura é o que há de mais positivo nessa gestão...
Ah, e artista sem posicionamento político não existe...tem mais que falar o que acha, e botar à prova a democracia tão pregada.

Quanto a ACM gostar de arte, Hitler também adorava, não foi à toa que poupou Paris...mas aqui não se poupou ninguém....abraços democráticos!

Carlos Nascimento disse...

Gil, meu amigo, a Bahia É Invencível.