sábado, março 20, 2010

Elogio dos clássicos


Jorge Luis Borges, num dos ápices da poesia ocidental, escreveu um poema falando sobre sua velhice e sua perda da visão. O poema, chamado Elogio da sombra, se tornou um clássico justamente pela sua universalidade, atemporalidade e fuga aos modismos.

Borges chegou a ser condenado por seus pares por não estar fazendo arte panfletária, por não se posicionar politicamente de forma explícita, mal sabendo seus pares que a sua política era mais profunda, buscava, como queria Nietzsche, a superação mais íntima, do homem consigo mesmo. A antipolítica, pensando no sentido etimológico do termo, que o liga à polis = cidade. Bastemos lembrar que todas as tentativas sistemáticas e necessariamente pragmáticas de se mudar as massas gerou nazismos, fascismos, stalinismos. E basta lembrar também que ninguém se lembra dos pares de Borges, que tanto o criticaram. A lógica do panfleto – quem nunca os recebe durante o dia pelas ruas – é ser raso, descartável e de impacto imediato e vôo curto.

Num trecho do poema, pensando sua cegueira – e há nas suas poucas palavras muito mais força que na imensa obra de Saramago sobre o tema – ele diz:

não há letras nas páginas dos livros.
Tudo isso deveria atemorizar-me,
mas é um deleite, um retorno.
Das gerações dos textos que há na terra
só terei lido uns poucos,
os que continuo lendo na memória,
lendo e transformando.

Assisti, recentemente e por DVD, A sagração da primavera, de Pina Bausch. Perto do horário do almoço, em meio à confusão e barulho do meu bairro, e a obra teve sobre mim o mesmo impacto do momento em que pude ter uma das minhas maiores experiências artísticas. Pude assistir a companhia de Pina Bausch, em São Paulo, dançando esta coreografia e Café Muller, talvez suas principais e mais conhecidas obras.

 Pina Bausch trabalhou com uma obra já clássica de Stravinsky, e que já havia sido coreografada, mudando os rumos da música e da dança. Mas ela comprou o desafio, como tantos outros coreógrafos, e fez uma obra singular e genial.

O aperto no peito, os olhos mareados e a dificuldade de respiração que sinto nos momentos de êxtase pôde acontecer de novo. Quando eu nasci, terceiro na prole de meu pai, ele pegou um papel e escreveu: “de novo a emoção única”.

Assim são os clássicos. Toda vez que passo pela prateleira e olho Memórias póstumas de Brás Cubas tenho vontade de ler a obra de novo. Quando vejo meus filmes de Tarkovsky no quarto, ou os quartetos de Borodin, Shostakovich, bem como discos de Gilberto Gil, Keith Jarret, sempre fico pensando em quanto tempo perco na vida sem lê-los, ouvi-los e repetidamente transformá-los dentro de mim, o que em si é uma transformação minha, também.

Vivemos um período onde os clássicos são sinônimos de velhos, e a busca pelo novo é de uma ingenuidade e ignorância tão grande que me assusta. Pra se fazer o diferente (não existe nada de novo depois dos gregos) é preciso conhecer o que foi feito. A arte se tornou, ao longo dos séculos, autorreferencial e criada a partir de glosas, citações e respostas aos clássicos.

Poucos criadores, hoje em dia, parecem se interessar em um diálogo produtivo e inteligente com o passado. As pessoas perderem as referências com a história e com os clássicos, e vivemos perdidos num entulhamento de informações tendencioso, falsos ídolos e gênios de segundo caderno.

Do Sul, do Leste, do Oeste, do Norte
convergem os caminhos que me trouxeram
a meu secreto centro.

Borges sabia das coisas. Conheceu Joseph K., Xerazade, Raskólnikov, e assim se tornou Borges.

Vou tentar, de novo e sempre, ler Borges, ver Pina Bausch, escutar Pixinguinha. Sou um artista em formação – e quase desistindo de sua arte – que tenta se solidificar mesmo que puxem meus pés pra baixo a todo momento. Mas ninguém tirará de mim a liberdade de escolher os caminhos mais difíceis, contudo mais luminosos.

É um caminho longo. E, com certeza, não tão breve saberei quem sou


GVT.

2 comentários:

Luiz Marfuz disse...

Gil,

Bem oportuna sua lembrança e defesa dos clássicos. Eles nos renovam sempre. E é um consolo em qualquer tempo. Beckett, na voz da sábia, sofrida e (otimista?) Winnie, de Dias Felizes, diz: "É isso que eu acho maravilhoso: que uma parte dos clássicos fique para nos ajudar a chegar ao fim do dia". Ao que completaria: não só uma parte. Que o todo sempre nos conforte; todos os dias.

Rita de Carvalho disse...

Gil,
Há um tempo que digo todos temos que pagar um ônus e que cada um escolhe o ônus que terá que pagar... sei que a frase não é minha e uso para justificar opções não lógicas que faço na vida.
A poesia e o encanto do seu texto, me fizeram lembrar dessa análise que a primeira vista parece pragmática e que nada tem de pragmatismo. Nossas opções são movidas pelo desejo e desejo antecede a razão. Humberto Maturana biólogo chileno defende uma tese sobre isso. É o desejo que move o mundo.