segunda-feira, dezembro 22, 2008

Apontamentos sobre realismos, delitos, animais...


Delito na ilha das cabras é mais uma peça realista. Não. Delito na ilha das cabras não é mais uma peça realista. O Realismo, no teatro, enquanto movimento – que nunca foi – teve seu apogeu em Ibsen e seu declínio e Tchekhov. Com todas as controvérsias e falhas possíveis.

Os que se dizem estudantes e estudiosos do teatro têm por obrigação ler O naturalismo no teatro, de Zola. Faz parte da formação sensível dessas pessoas entender – junto à formação do espírito burguês e da ascensão feroz do capitalismo e dos novos impérios que se reconfigurariam após a I Guerra Mundial, e se estabeleceriam após a II – como os questionamentos de Zola, assim como de Jarry, de Wagner e tantos outros se organizavam para rechaçar, exaltar, transformar e questionar o homem do final do século XIX.

Para se entender o Realismo, tem-se que estudar Zola e, principalmente ler Ibsen. Mas ler Ibsen com a destreza de um leitor que percebe tudo de novo, diferente e revolucionário que esse norueguês trouxe para o teatro. Se formos ler Ibsen com a mente tacanha dos preconceitos iletrados dos que, seis meses após o primeiro contato com o teatro, já se dizem grotowskianos, artaudianos, pós-dramáticos e vanguarda, teremos a estreiteza de perceber apenas a historinha bem contada, e passaremos ao largo do que realmente importa numa obra de arte: como o que ela pretende dizer dialoga com seus detalhes, sua forma, sua estrutura e sua particularidade. E nesse ponto, mesmo uma história banal pode se tornar uma grande obra. Pois, caros leitores, não é com a história que se sente o prazer da obra, mas com a genialidade que ela é contada, dita, esmiuçada, dissecada pra gente.

E nesse ponto percebe-se que Ugo Betti, com sua peça, comete delitos na ilha do Realismo. Basta perceber que a construção das personagens tem muito mais de simbólico que aquela profundidade tão exigida numa peça onde cada um tem suas contradições, uma história de vida, um passado que vêm à tona. Betti joga com isso, pois o forasteiro que aparece traz uma história que apenas justifica sua entrada naquela casa, mas o que prende ele àquelas três mulheres é o desejo. Dele e delas.

Pra quem não conhece a peça, trata-se de três mulheres, uma viúva com sua filha e sua cunhada, que moram numa ilha onde só há cabras. Um forasteiro chega dizendo ter servido ao exército junto ao marido de Ágata, a viúva, e que veio com a missão de cuidar dela(s). Ele acaba num jogo de sedução com as três, gerando conflitos e a situação vai ficando insuportável até que... Bem, não vou contar o final da peça, por mais que eu defenda que a história não importa, e sim como a leremos, veremos, ouviremos.

Os cortes dos atos são abruptos. Não há mudança interna alguma nas personagens. Pelo menos não como imaginamos ser uma peça realista bem-feita. A vida daqueles personagens quase não existe socialmente, é uma peça que se passa ao longo de dias, ou semanas, e não há nada no passado ou no futuro que vá fazer diferença, ali. O jogo se estabelece à revelia das “regras realistas”, e todo o antes e o depois da ação são mandados às favas.

Na recente montagem de formatura realizada na Escola de Teatro da UFBA, em Salvador, com direção de Harildo Deda, alguns elementos corroboram a idéia do não-realismo. A luz do espetáculo, assinada por Eduardo Tudella, traz uma carga de simbolismo que chega a brincar com matizes que representam desejos, friezas, cruezas e solidões. Seu cenário também é recheado de símbolos. Paredes frias de uma casa sem desejo, abaixo do nível da rua, sufocada, móveis duros e quartos que se escondem pra cima e para baixo, como os desejos das três mulheres, enredadas nesse obscuro objeto que é Ângelo, o forasteiro que traz no nome o anúncio no milagre que se anunciará em delito, em crime, em pecado. É o anti-anjo da salvação.

Não é o tipo de texto que eu montaria. Nem o tipo de montagem que me mobilizaria o espírito a ver. Mas dá prazer curtir um teatro de idéias sólidas. Citando o cinema, referência mais fácil, Glauber Rocha amava Visconti, e Bergman, Fellini, só pra exemplificar antagonistas que se encontravam no infinito da arte.

A aí me vem a preocupação. O problema que vejo em muitos palcos da cidade e por aí afora não é excesso ou falta de realismo, excesso ou falta de transgressão, excesso ou falta de drama, texto, história, enredo, trama, personagens, ação.

Qualquer texto funciona se por trás dele existe uma idéia do teatro, posta em cena através de uma filosofia da forma, de uma estética do pensamento.

E isso não é pra qualquer aventureiro que lance mão de criatividade rasa e referências frouxas.

É preciso ler pra que não cometamos delitos na ilha dos burros.


GVT.

6 comentários:

Vida Oliveira disse...

Todo esse texto me lembra tantas milhoes de conversas que tivemos esse semestre. haveria varias coisas a serem ditas. Mas seriam prolixas. Me contento em dizer: assino em baixo do que vc disse!

Anônimo disse...

O olho do artista não é o olho da arte. O olho do homem não é o olho da arte.

A ARTE É CEGA

Nós somos a bengala da arte.

Anônimo disse...

Antes que este ano se termine gostaria de registrar que A PRODUÇÃO EM ARTES CENICAS DA BAHIA DIMINUIU e vai se afunilando gradativamente. Não me venham com relatórios, documentos e folders que fazem volume quando estão empinlhados mas que não refletem a realidade. O FIA(S)C (O) custou mais de 1.000.000 para mostar no palco as antigas produções da administração passada. Senm falar na comédia dos editais. Alguns nem tem candidado, nem vencedor. Triste final de ano para o teatro da Bahia (mesmo assim há um que se salva) em geral nunca irei me esquecer de como se organiza o deserto em torno de sí. E a responsabilidade não é da classe teatral. Mas não é o que "eles" pensam e relatam nas suas reuniões. Pelo visto novo ano de tempos duros virão pela frente. Espero que este blog continue como uma tribuna livre para debates e denúncias.
Anônimo Sr.

Anônimo disse...

MARCELO FLORES : Gil Vansant meu bróder, cada vez seu blog se embrenha em questões de interesse geral, artísticas e políticas. É pena que o tão falado provincianismo soteropolitano ainda não nos permita debater e desfutar livremente de pontos vista contrários e por isso necessários à democracia, à liberdade e á criatividade. Aqui, não se prestigia o trabalho daquele que não é da minha panela, e se você pensa diferente de mim é meu inimigo em potencial. A ideologia Carlista se entranhou em nós como um chip e achamos que um novo governo apontaria novas esperanças. Infelizmente não, pelo que tenho acompanhado. Mas, na ausência de faróis, continue acendendo esses fósforos mantendo viva a certeza de que não desertaremos de nosso posto, conforme disse Érico Veríssimo. Tacar fogo pode ajudar a clarear. Feliz 2009.

Anônimo disse...

Minha gente, como diria Melão, vamos falar de jangada que é pau que boia!

Carlos Betão

Jorge disse...

gvt, achei belo o trecho em que você fala dos antagonistas a se encontrar no infinito da arte. essa imagem vale mil pontos.

abraço.