domingo, fevereiro 27, 2011

Selvador e a síndrome de Peter Pan


Vivemos na Terra do Nunca.

Todas as fases de transição de uma criança são complicadas porque está se passando de uma referência de mundo, e de uma responsabilidade com ele, para outra mais complexa; e onde se fica mais em evidência.

O ser humano, em seu envelhecimento, naturalmente vai passando por processos que o levam à sabedoria da velhice. Enquanto o corpo se deteriora, a mente se ilumina. Essa compensação leva ao equilíbrio de termos jovens cuidando de velhos e velhos ensinando a jovens.

É claro que aos 10 anos de idade, temos outro referencial de mundo, outra percepção dele. Assim o é aos 20. E deveria ser, daí por diante. Mas a humanidade parece caminhar para a estagnação. Os livros que foram lidos aos 30 anos são os mesmos, ou piores do que os lidos aos 20. As músicas ouvidas aos 40 são as mesmas dos 30. A busca pelo conhecimento, pelo crescimento, se torna intangível e desnecessária, pois o retardo geral acolhe a mediocridade na facilidade do dia-a-dia.

Selvador tem medo de crescer, é um reflexo disso em várias de suas atribuições. Tem receio de assumir responsabilidades e enfrentar desafios. Romper com as estruturas caducas, coronelistas, comiseradas e paternalistas.

Nas artes, isso é fácil de ser visto. Se esconder atrás de trabalhos marginais, esporádicos, ou até mesmo de um único trabalho de sorte que projetou o artista, é o que mais acontece, aqui. O meio-termo entre o amador e o profissional faz com que a criação, em Selvador, se valha das estruturas frágeis para esconder a estrutura frágil de seu próprio trabalho.

Se a cidade passa a ter uma demanda profissional, exigindo de seus artistas uma qualidade de trabalho com padrão internacional de aceitabilidade (já imagino alguém me perguntando “o que seria um padrão internacional de qualidade”, e, nessa dúvida, talvez esteja a resposta), tenho plena convicção que muitos artistas seriam expostos ao ridículo. Não demando aqui obras geniais, divisoras de águas – como a todo momento querem taxar alguma, por aqui –, mas de trabalhos que possam ser apresentados no Centro Cultural de Plataforma e no Centro Georges Pompidou, no Teatro Martim Gonçalves ou no Deutsches Theater.

É muito fácil você ser um artista e reclamar das oportunidades de Selvador. É muito fácil se esconder na falta de oportunidades reclamando das condições profissionais. Mas quantos músicos dividiriam a noite com um concerto de Egberto Gismonti ou Keith Jarret sem que fossem olhados como; “ah, é um pessoal lá da Bahia”, com aquela comiseração de subdesenvolvidos coitadinhos? Quantas coreografias poderiam participar de um programa do Grupo Corpo, ou da Quasar Cia de Dança, pra que fossem respeitadas e apreciadas em mesmo nível? Atualmente, se aparecesse um louco e resolvesse levas dez trabalhos de teatro, dez de dança, dez de música, para rodar o mundo, será que teríamos, prontos e ensaiados, espetáculos profissionais com padrão técnico, com pesquisa e consistência, pra não fazer feio em qualquer lugar do mundo? Incomoda-me muito quando vejo artistas locais apreciando trabalhos de fora com um olhar de inferiodidade, como se fossem estéticas inalcançáveis pra gente.

Selvador tem artistas fantásticos. Faço essa provocação porque sei que somos capazes de atingir um nível excepcional - e, a despeito das dificuldades, muitas vezes atingimos. Vejo músicos maravilhosos na Jam do MAM, por exemplo, vejo bailarinos de futuro promissor pululando pela cidade. E podemos listar diretores e atores de teatro, dramaturgos, artistas plásticos, enfim, há uma plêiade bem interessante. Mas a comodidade do semi-profissional ou semi-amador que nos rodeia ajuda a esconder muitos que reclamam das oportunidades, mas que se as tivessem não saberiam o que fazer. E faz com que os talentos daqui se acomodem na sombra, mesmo com água morna e areia movediça. Falta ambição? Arrojos de ousadia e perseverança? Comprometimento e vontade? Com certeza faltam políticas públicas, mecenas privados, visionários e desbravadores. E as exceções, de tão gritantes e evidentes, confirmam dolorosamente a regra.

Toda ação que alguém inicia, em Selvador, é prontamente criticada, acham milhões de motivos pra diminuir, ao invés de ajudar a que a ideia melhore e cresça. Quando Otávio Mangabeira dizia que aqui se paga 50 pra que o outro não ganhe 20, chegamos à mentalidade mesquinha de não fazer e criticar quem faz, tentar derrubar quem tenta. Basta surgir um festival, um projeto que amplie perspectivas, uma ação arrojada, e logo vêm os abutres estéreis da província para questionar, criticar.

Não quer ajudar? Não atrapalhe. Entra governo, sai governo, e iniciativas ficam ao sabor das empatias políticas, partidárias, questões pessoais, e a cultura daqui fica, qual Sísifo, tendo que levar a pedra até o topo da montanha sempre, pois ela rolará ladeira abaixo inevitavelmente; a terra do nunca. E confesso que estou cansado daqueles que procuram sempre um Capitão Gancho e não olham o próprio rabo. Nossa cultura paternalista e provinciana sempre quer achar um culpado ou um salvador fora da gente.

E assim, nossa síndrome de Peter Pan vai permanecendo. A cidade, seus artistas, seus governos, sua iniciativa privada não se estruturam culturalmente para sermos uma potência mundial, que não seria nada mais do que justo e merecido; se fizéssemos por onde. Mas parece que não queremos crescer, é menos doloroso, mais cômodo. Assumindo o papel de matéria prima, de berço, de celeiro de talentos, nos eximimos de obrigações e responsabilidades; e ainda sobra um espaçozinho para nos fazermos de vítimas.

Selvador precisa de um salto qualitativo violento, doloroso e urgente. Como nas crianças pequenas, o osso de muita gente vai doer. Seria um processo seletivo, radical, mas necessário para que pudéssemos tirar nossa cidade do Século XVII. Quando conseguirmos sair da cidade exposta por Gregório de Matos, talvez possamos voar, como Peter Pan, para o século XXI, mas voar crescendo, iluminando essa terra que tanto gosto e se desgosta o tempo todo.

Precisamos parar de correr atrás de nossas sombras e emergir atrás de luz.


GVT.

Um comentário:

ivan@camaracorrea.com disse...

Excelente, preciso, verdadeiro. Mas note que você pode trocar "Selvador" por Recife ou qualquer outra cidade provinciana que o texto funciona igual. É mais fácil esconder a própria mediocridade assim e bajular "apoios" do que ser profissional e sério.