Michael Haneke faz parte de uma trindade de cineastas que me instigam, estimulam e me convencem na estranha tarefa de fazer a “outra arte”. Juntamente com Emir Kusturica e Alexander Sokurov, Haneke não busca dar respostas, pelo contrário, o mundo pra ele é tão complexo e instável, tão maravilhoso e terrível, que ele parece não ter o domínio sobre a natureza das coisas. Assim é a violência gratuita de seu Funny games, a perversão de La pianiste e a paranóia de Cache. Não necessariamente nessa ordem e nessa divisão exata pra cada filme.
A arte que eu acredito, e que não é nem a única, nem a melhor, nem a verdadeira, mas é uma forma de arte, não encontra muitos ecos hoje em dia. Tanto no cinema, quanto no teatro ou nas formas de arte que possuam alguma dramaturgia, percebe-se uma clara preferência por roteiros mirabolantes, assuntos da moda, defesa das minorias, cores fortes e melodramas; além do riso fácil, é claro.
Haneke trata de uma pequena vila alemã à beira da Primeira Guerra Mundial. O diretor expõe o preconceito, a violência, a maldade, a perda da inocência e a perversão humana de forma fria, crua, na medida certa entre o incômodo e o distanciamento.
Talvez seja esta a pedra de toque do seu trabalho. Ele incomoda, machuca, mas nos afasta, de uma perspectiva propositalmente histórica, para percebermos o germe da maldade numa simples vila do interior da Alemanha.
O filme A fita branca é um filme alemão que é cruel com os alemães, mas sem poupar ninguém. Ao invés de colocar soldados nazistas com cara de mau torturando judeus, a opção de mostrar pessoas comuns, crianças e adultos perversos agride todo e qualquer alemão; todo e qualquer ser humano.
O que falta ao homem é a oportunidade de fazer o mal. Existindo essa possibilidade, são poucos os que se afastam dela. Abuso de poder, abuso sexual, abuso religioso, todos nós estamos propensos a atravessar essa fronteira obscura que nos leva ao encontro de nossos piores monstros. E talvez seja o que menos queremos ver.
Assistir aos americanos derrotando os malvados nazistas, assistir Kevin Costner defendendo os pobres índios, assistir aos smurfs gigantes de Avatar lutando contra a ganância de empresas que querem acabar com a natureza nos é reconfortante. O inferno são os outros, condenamos as brutalidades como se os alemães nazistas não fossem tão humanos quanto nossos pais; como se os estadunidenses que dizimaram os índios não fossem tão humanos quanto os africanos que vieram em navios negreiros. A maldade não é inerente apenas a um capacete, a um forte apache, a uma indústria poluidora; ela é inerente a boa parte – ou a toda a humanidade.
A primeira coisa que uma criança pequena faz ao ver uma planta ou o rabo de um cachorro é tentar arrancá-lo. Se isso é uma maldade inerente, eu não sei. Mas tanto seu filho quando os do seu vizinho fazem isso. Assim como as crianças do filme de Haneke.
Há esperança? O Título Das weisse band (A fita branca), se refere a uma fita que um pai, pastor protestante no filme, amarra em seus filhos para que eles não esqueçam a inocência, a pureza, a ingenuidade. Características que vemos de forma agressivamente sensível em seu filho mais novo; um menino apaixonado por animais, com olhos puros e um sorriso inocente. Como não conspurcar, imacular essa bondade? Essas respostas têm que acontecer depois que a tela se apaga. Em cada um de nós.
Bergman. Tarkovski. Vemos um pouco de vários cineastas que redimensionaram o cinema na película A fita branca. Cineastas que fizeram uma outra arte, uma arte que já não interessa muito porque o mundo já não se interessa pela arte. Ao menos não se interessa mais por essa manifestação sensível, delicada, que necessita leitura, apreensão e percepção; e nosso mundo de hoje não lê mais.
Como aprendiz desses feiticeiros, escolhi tentar fazer esse outro tipo de arte. A arte que eu acredito. E já não interessa. E aí?
Alguém me arranja um emprego na TV?
GVT.