Lembro dos meus tempos de aluno da Escola de Teatro. Discutíamos as novas montagens como se discute futebol. Era papo de corredor e de pátio da escola quem ia montar o que, quem tal diretor escolheu pra fazer tal personagem, quem havia sido convidado pro Núcleo do TCA, de quem era a nova montagem da Cia de Teatro da UFBA, que ator estava se destacando.
E não havia, nisso, um sentimento de inveja. Nosso sonho era crescer profissionalmente pra poder trabalhar com essas pessoas. Não havia aquela mentalidade atual de que os profissionais eram privilegiados, que eles já tinham ganhado demais e que era a nossa hora, que a verba tinha que vir pra nós; jovens talentos. Não, o que queríamos era poder estar perto dessas grandes referências. E conquistar, aos poucos, nosso espaço.
Entre 1995 e 1999, período que passei pela Escola de Teatro, vi muita gente boa se formando. E sendo absorvida pelo mercado; que alguns, hoje em dia, pra defender a atual crise, dizem nunca ter existido. Era um processo natural, uma seleção natural da espécie artista. Naturalmente, os que se formavam em interpretação e eram fracos viraram iluminadores, figurinistas, produtores, ou iam procurar coisa melhor pra fazer. E assim com direção, também. Sem rancor, sem remorso, sem disputa desleal.
Vivíamos um período de grandes eventos e pequenas montagens que aconteciam paralelamente e tinham seus espaços na cidade. As peças de formatura dirigidas por Harildo tinham momentos memoráveis, como a montagem de MacBeth, de Shakespeare, com um sensacional cenário de Hackler, um grande figurino de Claudete Eloy, uma luz que Eduardo Tudella fez, com pouquíssimos refletores, que muito peixe grande não conseguiria com milhões de elipsoidais. Lembro de termos no mesmo ano a estréia de O sonho (Strindberg), com direção de Gabriel Villela, e A casa de Eros (Cleise Mendes), com direção de José Possi Neto, comemorando o aniversário de 40 anos da Escola de Teatro. No mesmo ano que tivemos Noite encantada de Hackler.
Era muita coisa acontecendo. Projetos, comemorações, as verbas apareciam, os artistas trabalhavam. Grandes atores no palco, grandes textos em cena, grandes diretores pluralizando o teatro de Salvador. Eu ainda peguei a rebarba disso. Consegui entrar em circuito comercial com minha peça de formatura, Quartett, a convite do diretor do TCA, Theodomiro, sem precisar entrar em edital. E isso ajudou a me projetar, me ajudou a ser convidado por Eliana Pedroso pra dirigir os 40 anos de teatro de Yumara Rodrigues. Assim pude me iludir com a possibilidade de uma contínua carreira profissional, que acabei conquistando com uma razoável marca de ao menos uma produção por ano.
Até chegar 2007. Primeiro ano de PT no poder. Não fiz absolutamente nada. Nem recebi convite, nem consegui recurso pra peça alguma, nada. Este foi o único ano que não fiz teatro desde que entrei na Escola de Teatro, em 1995. Mas 2007 já era um ano que, a despeito da nova gestão que fez tabula rasa e formatou o HD da nossa cultura, apagando todos os nossos arquivos, era um ano que simbolizava o paroxismo de algo que estava desandando.
O Fazcultura declinou. Era claro e evidente que havia, antes, uma política do Q.I., quem indica, pra que as empresas financiassem espetáculos. Bem ou mal, coisas aconteciam e eu, que nunca fui de corriola alguma, conseguia trabalhar com Guerreiro e Márcio Meirelles, com Aninha Franco e Harildo Déda. Os institutos de língua tiveram seus orçamentos apertados. A possibilidade de conseguir verba da ACBEU pra montar um texto americano, ou do ICBA pra montar um texto alemão deixou de existir. As coisas no século XXI já vinham mal das pernas, e a tabula rasa de 2007 tirou do mercado muito gente.
Nós tivemos público. Tivemos projetos que atraiam público. Tínhamos uma imprensa que dialogava ativamente com as nossas produções; pro bem ou pro mal. As instituições públicas e privadas começavam a achar que poderia ser um bom negócio apoiar esse “teatro baiano”. Mas tudo isso foi por terra.
Não tenho competência histórica, política e científica pra ficar aqui dizendo os “porquês”. Mas é fato inegável que algo desandou. E, em meio a tudo isso, o retrocesso profissional alavancou um retrocesso estético, em busca de modismos de décadas passadas. E os palcos baianos começaram a se encher de amadorismos, de “pesquisas estéticas” ultrapassadas, fracas, inconsistentes. Muita coisa ruim começou a estrear. Com tão poucas opções, o público, que já arrefecia junto à crise que estava se instalando na cidade, deixou de ir com medo do que pudesse ver.
Eu cheguei a ouvir a alguns anos atrás de muita gente, público comum, leigo, que a qualidade do que nós fazíamos nos palcos da cidade era bem melhor dos que as peças do eixo Rio/São Paulo que vinham pra cá. Chegamos a ser referência. O papel da Escola de Teatro, e de sua pós-graduação, ajudou a estimular que muita gente viesse pra Salvador em busca desse “teatro baiano”, dessa alternativa de produção ao eixão do sudeste.
Mas essas pessoas começaram a vir num momento onde o teatro decaia. E ouço, com muito amargor, o questionamento de muitos sobre “cadê aquele teatro baiano que tanto me falavam?”.
Eu também estou à procura.
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