O teatro em Salvador desandou. Isso é um fato inegável. Principalmente pra quem viveu, como espectador e aspirante a artista, a década de 90.
Muito se tem culpado a atual gestão da cultura do governo do estado, mas muita coisa já vinha se desestruturando antes, muita coisa importante foi sumindo, mudando; mentalidades, financiamentos, apoios, parcerias. E faz parte de nossa sociedade patriarcal querere sempre achar um grande salvador ou o grande culpado, mesmo que, por trás dessa questão, exista realmente um salvador e um culpado maior.
Fernando Guerreiro começou 20 anos antes de mim. Ele pôde ser testemunha de que a década de 70 foi importantíssima, teve seus sucessos, como Marilyn Miranda, cuja fila fazia voltas na Araújo Pinho, endereço da Escola de Teatro, teve suas grandes montagens, grandes textos, grandes atores e diretores. Na terceira parte deste artigo há um depoimento dele, por isso o cito.
Posso falar um pouco da década de 90. E lembrar muito do que acontecia ali, foi deixando de acontecer, e nos empurrou a essa tragédia mal-escrita que virou nosso teatro.
Lembro que os institutos de línguas estrangeiras conseguiam verbas para montagens em Salvador. Citando apenas o ICBA, Salvador teve grandes montagens – e não cabe aqui relacionar o grande com a qualidade e gosto pessoal – que marcaram a cidade. O Merlin de Carmen Paternostro ficou no imaginário das pessoas. No centenário de nascimento de Bertolt Brecht, em 1996, tivemos três montagens de seus textos num conglomerado de verbas que não faço idéia, mas que possibilitou a montagem de Mãe Coragem (direção de Luiz Marfiz), O círculo de giz caucasiano (direção de Paulo Dourado) e Eu, Brecht, direção de Deolindo Checcucci, com dramaturgia de Cleise Mendes, a partir de poemas, canções e trechos de peças do autor alemão.
Essas montagens todas foram feitas pela Cia de Teatro da UFBA, que começou seus trabalhos na década de 80, com um Pirandello, e na década seguinte nos legou grandes peças, com grandes atores, textos interessantes quase sempre sob a batuta de Harildo Déda ou Ewald Hackler, responsáveis por momentos memoráveis da nossa história como O menor quer ser tutor (Handke/Hackler), Hedda Gabler (Ibsen/Déda), Noite encantada (Mrozek/Hackler), Zoológico de vidro (Williams/Déda). Sem contar com Na selva das cidades, texto de Brecht que Deolindo dirigiu numa grande briga cênica entre Fernando Fulco e Gideon Rosa, e tantos outros que não vi, mas que ouvi falar, como O senhor Puntilla e seu criado Matt, também de Brecht, que Paulo dourado dirigiu tendo a gloriosa Yumara Rodrigues como Puntilla.
Além dos institutos de língua, a própria Escola de Teatro da UFBA conseguia verba federal. Fosse por qual caminho fosse, a lei Fazcultura possibilitou também grandes produções de Guerreiro, Deolindo, o Theatro XVIII passou a ser um espaço de criação para a parceria Aninha Franco/Rita Assemany, bem como convidava outros artistas para criarem trabalhos lá, tudo dentro de uma verba anual viabilizada pelo Fazcultura.
Márcio Meirelles e Angela Andrade resolveram peitar a tarefa de assumir o decadente Teatro Vila Velha, fizeram projetos interessantes, como o 3 & pronto, que consistia em montagens rápidas feitas em 3 semanas para apresentar em outras 3. Márcio dirigia Brecht, fazia suas montagens com o Bando de Teatro Olodum, e conseguiu, através do governo do estado, a tão sonhada reforma do Vila Velha. Muito e merecido recurso foi destinado à reforma, e o teatro pôde – também em sua maioria, pelo fazcultura, outras com recurso direto do estado e outras na cara e na coragem, se aproveitando da estrutura do espaço – acolher grupos de teatro, e por lá passou um Fausto#0, de Goethe, um Material Fatzer, de Brecht/Müller.
O diálogo entre a cultura baiana e a herança européia era saudável. Ao menos em seus resultados. Carmen Paternostro dirigia Os negros, de Genet, e Dendê e Dengo, de Aninha Franco. Deolindo dirigia Angel City, de Sam Sheppard e de sua própria autoria O vôo da asa branca. Dourado fazia suas peças épicas com dramaturgia de Aninha Franco e/ou Cleise Mendes; A conspiração dos alfaiates, Canudos. Guerreiro fazia Equus (Schaffer) e Calígula (Albert Camus), mas também Os cafajestes, e Aninha Franco.
Ainda havia o Núcleo do TCA, que na época fazia grandes montagens, grandes clássicos, sempre com diretores de destaque que eram convidados por mérito, algo esquecido nos tempos atuais. Havia ainda muita gente que esqueci, muitos recursos que não lembrei, até por ser um novato e este texto não é histórico, são lembranças de um adolescente entusiasmado com o mundo que se abria na minha frente, ainda perdido em meio àquilo tudo.
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