quarta-feira, dezembro 02, 2009

O vale-cultura vale?


O Governo Federal acaba de lançar o vale-cultura. À maneira do vale-refeição, seria um instrumento de consumo de bens culturais. As empresas se cadastrariam e os funcionários – variando de 10% a 90%, de acordo com a faixa salarial – entrariam com uma porcentagem para obter esse benefício, com saldo estipulado de até R$50,00.

O argumento do Governo é que uma imensa porcentagem de brasileiros jamais foi ao cinema, nunca entrou em museus, em nenhuma circunstância sentou num teatro pra ver dança, música, peças. Com esse vale, haveria um estímulo ao consumo de cultura, estipulado um crescimento de até R$ 600 milhões/mês ou R$ 7,2 bilhões/ano.

A política vive mais de votos do que de resultados efetivos. Paliativos e tapa-buracos são, comumente, realizados, com um intuito populista de angariar votos. Muitas ações têm caráter muito mais de sensação que, solidamente, de políticas a longo prazo.

Não quero ser também imediatista em achar que o vale-cultura é simplesmente populista. Seus efeitos só poderão ser medidos se o governo fizer um real controle com estabelecimentos, museus e casas de espetáculo para registrar o que esse trabalhador resolveu consumir. Mas eu, que considero a cultura o bem maior de um povo, e que acho que é a cultura que muda a sensibilidade, a sociabilidade e a responsabilidade (e várias outras “dades” do ser humano), sempre dou um passo atrás com ações desse tipo, nem que seja pra olhar melhor e ver sua real utilidade.

Pensemos. Boa parte da população, hoje em dia, tem celular. Qualquer bar da esquina tem um bando de todas as camadas sociais, consumindo cerveja a qualquer hora do dia e da semana. Temos uma população pobre, sim. E que tem pouco acesso a bens culturais. Mas uma porcentagem grande disso é a falta de interesse proveniente de uma falta de educação e formação do indivíduo. As pessoas gastam dinheiro, se endividam na onda do consumismo, dos crediários e cartões de crédito. E consomem, quando se trata de cultura, somente alguns poucos segmentos de arte e entretenimento – independente, diga-se de passagem, do preço.

Pouco se tem feito no real sentido de formar um cidadão desde a primeira infância. Enquanto os canalhas dos políticos se locupletam com a grana que veio de nossos impostos, nenhuma ação efetiva é feita pra aumentar salários e melhorar as condições do ensino básico. O ensino médio tem se tornado, com o ENEM (que acho importante, registre-se aqui), uma porta de entrada pra universidade. Mas e a formação desse adolescente ao longo dos três anos que ele passa estudando? Que políticas públicas vêm sendo pensadas pra formação do indivíduo de forma consistente, sólida e ampla?

Infelizmente, terei que cair no lugar comum em que muitos devem estar caindo ao saber desse vale-cultura: o bem cultural consumido com esse benefício não modificará em nada o acesso do cidadão a outras estéticas artísticas. Dificilmente, um trabalhador que adora pagode – nada contra o pagode – resolverá assistir à Orquestra Sinfônica da Bahia porque tem o vale-cultura. Será mais fácil ele usar o benefício pra comprar um DVD do grupo de pagode que ele goste, ou assistir a um daqueles encontros musicais de pagodeiros numa casa de espetáculos qualquer.

Ouvi num encontro em Salvador, inclusive, do próprio Ministro da Cultura, Juca Ferreira, que não haveria preocupação do Governo Federal com a escolha do bem cultural que o cidadão fizesse. Importava haver o consumo de cultura. O que significa que não importa se o cidadão vai continuar consumindo Cláudia Leite e jamais saberá quem é Cláudia Cunha. O que, em decorrência disso, parece significar que o vale-cultura é mais um mecanismo do pão (bolsa família) e circo (vale-cultura).

Volto a dizer, não quero me precipitar em detonar o projeto, nem tampouco discordo totalmente quando o Presidente da República diz que há pessoas que não tem o que comer e nem condições imediatas de acesso, e o bolsa-família funcionaria, assim, como um socorro desesperado aos totalmente desfavorecidos. Mas são projetos que se isolam de outras ações mais contundentes a longo prazo. Ao menos, não vi grandes ganhos neste sentido nos sete anos de governo Lula. Dá-se acesso a muita coisa, mas será que o acesso a universidades, bens culturais, e outras ações que o governo promove, estão aliadas a uma melhora efetiva de nossa população? Ou são atitudes de reparação social que funcionam apenas pra satisfazer, de imediato, os que reclamam – com razão – da falta de acesso a determinadas possibilidades?

Existem muitas idéias boas de inclusão social, como o próprio Ministério da Cultura chama essa ação. Mas incluir quem e o quê aonde? Pra depois gerar o quê? E ter que resultados?

Como diria a personagem Olga, da peça As três irmãs, do autor russo Anton Tchekhov (será ele consumido através do vale-cultura?):

“Se pudéssemos saber! Ah! Se pudéssemos saber!...


GVT.

2 comentários:

Hamilton Hafif disse...

Coerente, mordaz, mas sem aquela coisa rancorosa que você vinha apresentando nos textos mais recentes.
Esta discussão é muito pertinente e espero que as pessoas comecem a se manifestar como você bem o faz.
Quanto às Cláudias, a primeira passará, a segunda passarinho...

Gil Vicente Tavares disse...

Caro Hafif,

Você diz, ao final de um texto em seu blog, que São Paulo não comporta mais tanta gente. Mas ainda vai muito artista baiano pra lá, e consegue sobreviver melhor que aqui.
Estou rancoroso, sim. Amargurado. Está difícil matar 365 leões por dia.
Claudia Cunha, mesmo, está na "ponte-aérea" com São Paulo por conta das faltas de oportunidade, aqui. O povo daqui consome música de qualidade igual ou inferior à dela, quando vem de fora. Essa profusão de cantoras da moda. Você acha, realmente, que se Claudia Cunha tivesse suporte, público, imprensa e oportunidades em Salvador, ela não adoraria?
Não sei o quanto as pessoas se manifestarão sobre o vale-cultura. As pessoas não se manifestam. Só em mesas de bares e foyeurs de teatros. Poucos mostram a cara e se posicionam. "Unir-se. Pensar global e coletivamente" aqui? Sei não...