quinta-feira, maio 22, 2008

Cristina Ortiz, público e porcentagens...


Salvador tem 3 milhões de habitantes. Com imensa desigualdade social, cultural e intelectual, estamos numa imensa província. Contudo, mesmo na província, existem guetos de resistência onde se podem achar afinidades e coerências estéticas minimamente afinadas.

Estive ontem no TCA para assistir a uma récita empolgante de Cristina Ortiz, pianista baiana que muito cedo, pra sua sorte, trocou a Bahia pelos palcos estrangeiros. Num concerto de repertório variado, pude ouvir o que ela chama de “mostrar o colorido da música”. Talvez, para os ortodoxos acostumados às versões pesadas e austeras de certos pianistas europeus, o concerto tenha sido um tanto quanto exagerado.

E talvez esteja aí a pedra de toque de Cristina Ortiz, brasileira e baiana. Ela relê com olhos novos e sensuais a música, dissecando a partitura como um bom diretor de teatro disseca uma peça, pra extrair dali tudo que ela pensa ter passado pela cabeça do compositor ao escolher tal nota, tal frase melódica, tal arpejo. Arte de primeira. Clássica e baiana.

Enquanto discute-se, incansavelmente, o berimbau, me vi num TCA incompleto, sem uma casa cheia que pudesse apreciar um momento de música universal. Sim, porque a Bahia talvez seja um dos últimos redutos onde se tem a idéia equivocada de se combater uma “cultura européia”. Os próprios europeus, bárbaros em sua grande maioria, tiveram a grande esperteza de copiar, roubar ou se inspirar em outras culturas pra criar a sua, sem constrangimento, sem que nenhum europeu lutasse pela legitimação da cultura européia.

Alguns podem até dizer que o preço era caro: havia ingressos a 30 reais (inteira). Bem, se paga isso ou mais do que isso para muitos eventos na cidade. Poderiam dizer: a música erudita é pra poucos, poucos consomem. Posso até concordar, mas vamos aos números. Salvador tem 3 milhões de habitantes. 10% disso são 300 mil. 1% é 30 mil. 0,1% são, portanto, 3 mil pessoas. Preocupa-me (ou até mesmo desespera-me) que 0,05% da população da cidade não tenha se interessado pelo concerto de uma pianista baiana de renome internacional.

Em Salvador, as pessoas têm desculpas inusitadas para não ir a concertos, espetáculos, recitais. Dizem que estão cansados do dia inteiro de trabalho e só pensam em descanso ao fim do dia ou no final de semana. Certo. Isso significa que o baiano trabalha bem mais que os paulistas, os parisienses, os novaiorquinos? Possivelmente. Pois lá, se vai a concertos, espetáculos de dança, de teatro, de música. Preço dos ingressos? Os bares de Salvador vivem entupidos de pessoas torrando dinheiro em lugares que cobram fortunas por um tira-gosto e uma cerveja. E não há xou de pagode, de Ivete, Barradão e xópim center que não esteja lotado.

Enquanto se defende por aí uma cultura primitiva, rudimentar, dissociada de padrões e técnicas que evoluíram ao longo dos séculos em todos os continentes, Salvador vai ficando pra trás em questões artísticas, forçando seus talentos a saírem daqui. O artista, cada vez mais deslocado, não tem espaço em nossa sociedade que, superficial, não consegue dialogar com a arte que fuja dos padrões pré-concebidos pela mídia e pelo apelo popular.

Sabe-se de toda desigualdade, diferença, falta de uma boa educação em casa e nas escolas, falta de leitura, tudo isso. Mas se 0,1% dos baianos fosse ao teatro, pagando ingressos e sem carteiras falsificadas, teríamos espetáculos lotados, gente voltando da porta do TCA pra assistir Cristina Ortiz, e, consequentemente, artistas podendo pensar na hipótese de viver de sua arte em sua terra.

Será 0,1% pedir demais?


GVT.

9 comentários:

Chico Oliveira disse...

Meu caro Gil, 0,01% já seria muito significante. Há de se refletir sobre uma cidade na qual as pessoas sentam nos bares e costumam gastar 80, 90, 100 reais com os "temperos da vida" e se recusam a pagar 5 reais de couvert artístico...

Anônimo disse...

espero muito ansiosamente uma volta da peça os javalis.

Gil Vicente Tavares disse...

Todos nós esperamos pela volta, também, angustiados. Mas, por incrível que pareça, não há teatros livres em Salvador. E os poucos que sobram entrarão em reforma, não tem equipamento, tamanho adequado ou falta-nos verba pra poder negociar a pauta.
Vamos acabar fazendo uma campanha "ajude o teatro nu e "Os Javalis" a conseguir um teatro".
Fico preocupado com os futuros contemplados em editais que estão surgindo este ano, pois não haverá espaço suficiente pra todos se apresentarem, talvez. E quando há pauta, é por pouquíssimo tempo, o que inibe uma carreira próspera do espetáculo estreado.
Mais um problema para nosso teatro baiano. Êh, vida...

Gil Vicente Tavares disse...

E o governo ainda gasta uma verba significativa pra colocar um espetáculo por apenas um dia em cartaz, com esse "Quintas do Teatro". Realmente, não entendo, muitas vezes, que política se pretende para o teatro profissional da Bahia...

Rafael dos Prazeres disse...

Noite de quarta... Uma apresentação para introduzir o teatro do absurdo há 24h a seguir, dois jogos, no minimo,inusitados na tv. Sobre o O "importância de ser honesto", sobre o banco: Um prato de sopa, Inhame, arroz, moqueca de peixe. Um som ao pé-d'ouvido no fone... Google - teatro do absurdo - Teatro NU um belo texto despindo a cara seca de desculpas. Gostei Gil Vicente!! Em meio a navegação com destino certo, encontrei sua barca na rota.
Rafael dos Prazeres

Gil Vicente Tavares disse...

Rafael,

Seja bem-vindo ao blog! Sempre que puder, dê uma passadinha por aqui. Atualizamos semanalmente com textos, fotos e notícias sobre o grupo.
Quando tiver um tempinho, dê uma passeada pelo blog. São dois anos de reflexões críticas, imagens e muito teatro.
E fique atento às nossas produções!

grande abraço,

GVT.

Anônimo disse...

Era pra eu me sentir culpada de não ter ido de puro cansaço? :)

Fiquei feliz de ver a apresentação através de seus olhos.

Fiquei feliz de ver seu blog falando de música.

Fico feliz de alguém pensar como eu, falar comigo, dialogar. Vc cá eu no meu canto. ;)

Prazer, Ellen. Já te observando e te lendo há um tempo.

Gil Vicente Tavares disse...

Ellen,

Bom saber que temos interlocutores constantes ajudando a construir esse blog e, por que não?, ajudando a estimular pessoas mais atuantes e presentes às artes baianas.

grande abraço,

GVT.

Anônimo disse...

descobrindo aqui uma pinaista... vou entrevistar ela ! me deu a idea !!!
parabens pela dica e artigo sempre bem informado
bahiaflaneur