segunda-feira, junho 04, 2007

Paternalismo na arte ( da série sobre a "crítica da razão teatral")

Aproveitando-me do nome do grupo (Teatro Nu, pra quem não sabe), afirmo que o palco é o lugar da nudez absoluta. Lá, atores despem-se de si, autores despem-se de ser. É o espaço onde Gideon Rosa, um mulato cor-de-burro-quando-foge, pode fazer um negro sul-africano, como é o caso de Mestre Haroldo... (Fugard/Hackler), ou Harildo Déda, um sergipano da cabeça grande, pode fazer um nazista alemão, como em Antes da reforma (Bernhard/Tavares). Porque são dois grandes atores, são duas representações; é teatro.
Portanto, não me interessa se quem está no palco é fúcsia, se está com o nome no SERASA, se tem três pernas ou se veio de uma gruta da Chapada Diamantina. No palco, ele passa a ser um ator, passa a fazer arte.
É muito comum que os desfavorecidos recebam, cada vez mais, favores. São protegidos como seres diferentes num momento onde se discute igualdade; e fazem questão disso. Não me compete aqui discutir questões para as quais não tenho formação suficiente pra discutir (sim, eu faço isso, por incrível que pareça e num momento onde qualquer um pode ser filósofo, artista, crítico e cientista político: foi-se o tempo onde nos achávamos apenas técnicos de futebol e farmacêuticos...). Contudo, na seara da arte, minha seara, penso que posso fazer certas colocações.
Ao contrário da subjetivação e da abstração que o teatro pretende, é cada vez mais comum se identificar e realçar os pobres coitados que estão no palco. Num momento onde a arte está sem esteio – pois os ignorantes viraram senhores da verdade – não se vê mais num palco um grande ator, um grande trabalho de criação de um personagem, um bom trabalho vocal, uma presença cênica marcante, uma boa técnica de contracena, um bom jogo de interpretação; vê-se se a pessoa é fúcsia, se está com o nome no SERASA, se tem três pernas ou se veio de uma gruta da Chapada Diamantina. E os aplausos vêm disso, bem como os prêmios, as verbas de editais e finaciamentos, elogios da imprensa e a comiseração da classe média recheada de sentimento de culpa.
Recentemente, o Viladança realizou o mês da dança, com um ciclo de palestras, apresentações locais e de fora. Neste mês, os espetáculos apresentados, em sua grande maioria, comprovaram a crise atual das artes, mas um espetáculo específico me chamou a atenção e pareceu ser a salvação do mês; Judith quer chorar, mas não consegue.
Um espetáculo bem realizado, com movimentos bonitos, uma música – ao vivo – bem escolhida e realizada, cenário simples, mas funcional. Mas um detalhe não poderia passar desapercebido dos paternalistas comiserados de plantão: era um espetáculo realizado por um cadeirante.
No espetáculo, o que menos importava era isso. O público estava ali assistindo arte. E arte bem-feita. O grande “senão” do espetáculo, pra mim, era o momento onde Edu O., o intérprete, fazia um monólogo que era a denúncia de um fato ocorrido com ele, onde ele, enquanto cadeirante, sofreu com a falta de estrutura da cidade para comportar deficientes e, em decorrência disso, sofreu também uma ameaça por estar sozinho, em condições desfavoráveis.
Que ele escreva pro espaço do leitor de algum jornal, ligue pra Varela – um programa de TV sensacionalista mas utilitário – faça passeata ou invada a câmara dos vereadores, tudo bem. O teatro é que não é pra isso. Até porque, através da metáfora de uma lagarta que tinha receio de voar, ele atingiu muito mais belamente e intimamente o público, utilizando-se de seu lirismo pra falar da realidade. Isso é teatro.
Pois é. Tomei pavor de qualquer espetáculo que fala do sertão, por exemplo. Agora, botar gente maltrapilha e maquiada, cantando xaxado e maracatu, é o grande barato. Eu não suporto mais. Nossos olhos parecem estar contaminados daquele sentimento de comiseração que tanto me parece ridículo e perigoso. A partir do momento que olhamos com pena, com piedade, estamos automaticamente nos sentindo superiores, estamos isolando o outro como o coitado a ser contemplado, atendido. A partir do momento que tentamos valorizar o diferente, estamos nos credenciando a sermos juizes, estamos mostrando que o outro precisa de esmola, cuidados diferenciados, maior valorização e oportunidade. Queremos incluir através da exclusão, da separação, da diferenciação.
Acredito na igualdade. Fui criado e educado – tanto em casa como segundo conceitos mais recentes da biologia – aprendendo que todos são iguais, que não existem raças, que não existe ninguém melhor do que ninguém. Tudo é uma questão de oportunidade para se chegar à igualdade. Oportunidade esta que o palco dá e as pessoas negam, enfatizando suas fraquezas e diferenças, sua exclusão, assumindo a postura de vítima, de sofrido, de diferente.
Insisto que o palco é o lugar do se desnudar. Por favor, não vistam o palco de comiseração e hipocrisia. Eu quero ver bons atores, bons textos, e isso está muito difícil... Não se precisa mais estudar, aprender, basta ser a pessoa certa, no local certo, e todos gostarão de você. Até porque, coitado, você é isso, e aquilo outro, e mais aquela coisa que faz de você alguém que precisa ser louvado pra não se sentir inferior.
É uma era populista, onde se rateia por entre os “fracos” a possibilidade extinta da excelência, como se a arte fosse o espaço da distribuição de renda, de oportunidade de aparecer.
Alain Finkielkraut, no atualmente imprescindível A derrota do pensamento[1], criticando este pensamento comiserado moderno, mostra que atualmente pensa-se que “é preciso desaprender a classificar, a privilegiar, a hierarquizar. É preciso dispersar a beleza e a verdade (...) e dissolver, assim, os dois componentes do valor na abundância das ‘sensibilidades culturais’”.
Pra quê incentivar uma elite cultural[2], como fez Edgar Santos, trazendo grandes cabeças para a UFBA? Pra que surjam Glauber Rocha, Gilberto Gil, João Ubaldo Ribeiro, Caetano Veloso? Que bobagem...
Que tenhamos milhares de coisas ruins, mal-feitas, toscas, mas que possamos dar oportunidade a qualquer um. Ficamos sem nenhum sentimento de culpa, sem nenhum peso na consciência, sem nenhum desfavorecido esmolando, e sem nenhuma arte.

GVT.

[1] FINKIELKRAUT, Alain. A derrota do pensamento. Editora Paz e Terra. São Paulo, 1988.

[2] Leiam atentamente: elite cultural. Que pode ser tanto o ambiente intelectual do Iluminismo francês que fez surgir Rousseau e Voltaire, quanto o ambiente musical do Morro da Mangueira que fez surgir Cartola e Nelson Cavaquinho.

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