domingo, junho 18, 2006

ARTIGO DE HACKLER

Ewald Hackler
Diretor, cenógrafo e professor do Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia. PhD. em Dramaturgia, pela Universidade da Califórnia, Berkeley, 1983.

O que temos a festejar, então, nestes 50 anos? Martim Gonçalves empreendeu, na verdade, um projeto muito simples. De uma simplicidade notável. Havia, é claro, um projeto acadêmico na Escola de Teatro, contudo o movimento mais importante ocorreu em termos profissionais. Havia, naquela época, na década de 50, apenas um teatro feito por amadores, por autoditadas. Houve, sem dúvida, muita resistência por parte deles... Posso até dizer que Martim Gonçalves fracassou como pessoa. Não, não o projeto... Mas como pessoa, sim. Ele e Lina Bo Bardi, que depois foi para o exílio em São Paulo. Engraçado é que foi neste exílio em São Paulo que ela construiu um museu que até hoje a Bahia não tem.

Gonçalves morreu na amargura, no bairro de Santa Tereza, no Rio de Janeiro. Eu não o conheci. Eu cheguei na Bahia em 1969. O que posso dizer é que havia uma memória perturbada nesta época. E na perturbação você via exatamente os degraus da coisa. Quando eu via os professores, as pessoas falando, se falava menos de Martim Gonçalves do que da província. É isso que se desnuda. Numa resenha que eu publiquei na revista Repertório no. 1, sobre A Mochila do Mascate, de Gianni Ratto, eu falo sobre isso. Eu pensava: como era possível que um homem despertasse tanto ódio? Tantas opiniões contraditórias?

Então, o projeto de Gonçalves foi genial na sua simplicidade. Em primeiro lugar porque tinha que envolver a escola toda numa montagem. Todos os alunos, os professores... Todos. E, depois, porque operava com elencos mistos. Com atores avançados, alunos de interpretação e profissionais mesmo, convidados de fora. É essa a genial simplicidade do projeto. Porque é na prática teatral e na sua sala de aula que se aprende teatro. É praticando teatro! E aprender a fazer teatro é só no palco e junto com gente que é mais experiente que você. É uma prática milenar!

Você pode sentar e estudar a história do teatro, ler textos e tudo mais... Está claro... Agora, e não é um simples detalhe saber disso, aprender teatro na prática faz a enorme diferença da Escola de Teatro na Bahia. Em nenhum outro lugar do Brasil é assim. Posso dizer até no exterior também... Esse foi o legado que Martim Gonçalves deixou para a Escola. Mas, no bem e no mal, a Escola e o teatro que Gonçalves deixou, sobreviveram.

E sobreviveram graças à consistência do método! Apesar dos esforços contrários de alguns diretores da escola, de muitos alunos e não poucos docentes. A Escola de Teatro constituiu uma ameaça para os amadores, uma ameaça à mentalidade da província. Houve uma revolta dos analfabetos, exatamente como na Música. Eles venceram a batalha. Porque são eles hoje em dia que mandam. Não se tem apenas uma música axé, se tem também um teatro axé!

Acredito que a província não compreendeu até hoje a natureza única do modelo didático bem arquitetado por Martim Gonçalves... Ele colocou o público em contato com o melhor teatro que a dramaturgia universal poderia oferecer. Hoje quando lemos o roteiro nos jornais sobre teatro adulto e teatro infantil e nós vemos que o texto, a direção, a atuação simultaneamente, enfim, tudo é de fulano de tal, compreendemos que a utopia de Martim Gonçalves sofre séria ameaça. Não entendo porque Gil Santana nunca ganhou um prêmio do Braskem. Ora, porque não? Ele representa tanto a essência do teatro baiano atual.

O teatro baiano é sócio-psicodélico. Nele todos trabalham como crianças da TV. Só conseguem raciocinar entre um plim plim e outro. O que se assiste é a submissão total do teatro ao entretenimento. O público mais exigente fugiu às incontinências verbais desse teatro. O teatro atual na Bahia tem um problema muito simples de identidade. Ele fala demais, sem poesia e substância. É com isso que o teatro se autodenuncia. Esse teatro mostra apenas a realidade de sua encenação e não a encenação da realidade em que vivemos.

Depois do abandono da censura, o teatro ganhou liberdade de expressão, mas perdeu a SUA expressão. Sofre de um aleijão de imaginação. Isso é óbvio quando se observa a mudança do público, o tipo de platéia, o que ela quer ver... É um teatro que não consegue seduzir o público à razão, à reflexão. Sempre tem uma postura de: “a Bahia saúda o resto do mundo”. É um teatro que garante a vitória de sua estética confusa sobre a substância. Não há diálogo. Aqui se produz um grande silêncio com muito barulho. E o teatro chegou numa fase agora que não tem mais nada a perder.

Às vezes eu penso que a dramaturgia baiana dos últimos cem anos não vale duas páginas de Nelson Rodrigues, com sua poesia e seu rigor artístico. Bom, só não uso Shakespeare para não me indispor com nosso ministro da Cultura, que quer logo banir Shakespeare do teatro do Brasil.

Não, eu não quero generalizar. Mas todo mundo sabe que tudo isso não se limita à Bahia. É a situação do teatro no Brasil inteiro. Na verdade não quero xingar o teatro na Bahia... Mas mostrar como a Escola é necessária. E, para a Bahia, mais importante AGORA do que há 50 anos.

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