Dedicado a Eduardo Tudella
Rembrandt tenta desenhar sua mulher moribunda, Saskia, na
cama. Ele diz que quando ela não estiver mais por lá, que ele terá que se olhar
com mais frequencia no espelho. Em seguida, fala: “digamos que eu ceda e
concorde que você está morta. Este desenho diz que você ainda respira”. Em
seguida, comenta que é curioso, pois o desenho “para todo o sempre continuará
dizendo que você está dormindo”. E (se) pergunta se dá pra distinguir num
desenho se um corpo está dormindo ou morto.
Essa é a cena central do filme Nightwatching, de Peter Greenaway; o ponto de virada. A belíssima
música do polonês Wlodzimierz Pawlik colore a escura cena criada pela
fotografia de Reinier van Brummelen. Uma cena teatral, mas que é puro cinema.
Uma cena seca, uma interpretação de Martin Freeman afetada o suficiente para
ser muito mais real e viva para o comportamento da época, com palavrões e
poesia: como nosso dia-a-dia.
Peter Greenaway, um dos poucos cineastas a quem podemos
chamar de artista, (e, talvez, por isso, pouco conhecido) vem construindo uma
filmografia que, nalguns momentos, atinge o que de melhor se fez no cinema até
hoje. Sua biografia de Rembrandt é de uma delicadeza e ousadia, de uma precisão
e loucura, ao mesmo tempo artesanal e extremamente técnica.
O cineasta britânico faz seu filme todo em estúdio, mas
deixando claro ser um estúdio. Um grande palco com iluminação artificial,
marcações teatrais, excetuando uma cena no campo que se repete sempre sob a
mesma perspectiva. Greenaway chega ao ponto de fazer mais de uma cena onde
Rembrandt e sua esposa, depois a amante, olham pra câmera e dialogam contando
histórias, numa brincadeira clara com o “à parte”, com o distanciamento da
cena, fazendo da narração seu momento – paradoxalmente – mais teatral.
A fotografia de Reinier van Brummelen, aliada a uma precisa
direção de arte, surpreende em cada pausa que damos no filme: sentimo-nos
diante de uma pintura de Rembrandt. O cuidado com a cena e a transgressão que
ele faz na forma de criar a cena e os diálogos servem claramente como analogia
da própria obra do pintor flamengo.
No projeto Verão cênico, fizemos uma apresentação de Sargento Getúlio no Espaço Xisto e, na
pressa, com refletores e mesa diferente, acabamos programando uma luz muito
escura. Fiquei tenso o espetáculo inteiro e, depois? Nenhum comentário da
plateia. Estranhei, mas ao ver Nightwatching
percebi o que Eduardo Tudella fala sobre as sombras que tornam a
cena real. E percebi, ainda mais, que nem sempre precisamos ver tudo tão claro
para sentir e entender. O filme de Greenaway é propositalmente escuro e cheio
de sombras como a pintura de Rembrandt, mas é também um filme que mostra como
um quadro pode bagunçar uma sociedade.
Rembrandt van Rijn recebe a encomenda para pintar um grupo
de homens que tramaram um assassinato. Na forma como ele trata a cena, há a
denúncia de uma filha bastarda, a covardia, a malvadeza, tudo numa pintura que
aparenta retratar apenas alguns homens. No filme, logo após o pintor flamengo
sofrer com a morte de sua esposa, o quadro é mostrado e, num golpe de mestre,
Greenaway põe na boca dos homens retratados a leitura precisa do quadro. Eles
percebem a denúncia e crítica do pintor ao passo que decidem manter o quadro.
Rembrandt já havia adquirido certa fama e depois de um tempo as pessoas
olhariam aquele quadro como um simples quadro. Eles passariam para eternidade
nas tintas de um pintor renomado, e a vileza deles seria apagada e borrada pelo
tempo.
Engano deles e de muitos. A obra pode ser menosprezada,
escondida, renegada e boicotada pelo seu tempo, mas a arte ainda vai respirar,
para todo o sempre, como a Saskia do desenho do artista Rembrandt, filme do
artista Greenaway.
GVT.
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