sexta-feira, setembro 18, 2009

Ninguém dorme melhor que os assassinos

Ninguém dorme melhor que os assassinos
Qui, 17 de Setembro de 2009 07:57
texto originalmente publicado na coluna Teatro & Cidade do site http://www.noticiacapital.com.br/



A corrupção será tema eterno dos jornais, das mesas de bar e das salas de estar. Há um componente do “querer se dar bem” que envolve a maioria da sociedade. Mas como dizia o ditado; macaco não olha o próprio rabo.

Há uma tendência natural em se considerar corrupto e criminoso o ato do outro, ao mesmo passo que consideramos esperto o nosso ato. Discutimos as falcatruas do Senado Federal, do Congresso Federal, mas me parece que no fundo há uma inveja subconsciente da pessoa não poder gozar das mesmas benesses.

Poucos são os verdadeiros honestos, dignos e corretos. Basta que se consiga alguma forma de pagar ilicitamente mais barato pela luz, pela TV a cabo, e prontamente a pessoa se aproveita. Recentemente, uma pessoa próxima foi receber seu remédio pelo SUS, e toda uma burocracia havia sido criada para o recebimento da medicação. E soubemos que muitas pessoas estavam falsificando procedimentos pra conseguir o remédio – caríssimo – pra revender. E aí nos pegamos criticando a burocracia que muitas vezes é criada por conta de nossa própria desonestidade. E a culpa é sempre dos outros.

Podemos até pensar que somos café pequeno. Que os poderosos, os políticos, os juízes conseguem roubar bem mais e melhor do que a gente. E há uma verdade nisso. Acho até que o crime político deveria ter penas duríssimas, prisão perpétua, pena de morte, dançar pagode na areia quente do meio-dia durante trinta anos seguidos, nenhuma pena seria muito para um crime político. Quando um cidadão tira a vida do outro, ele tirou a vida de uma pessoa, cometeu algo grave, execrável. E quando um político – através da máfia das ambulâncias – desvia verbas, deixa de colocar na rua um número considerável e necessário de um equipamento para salvar pessoas, quantas vidas se vão aí? Quando um homem não divide sua água com seu vizinho por mera questão de poder, ele pode estar debilitando e até matando uma família. E quando vemos políticos se locupletando por conta da indústria da seca?

O problema é que nossa corrupção do dia-a-dia, que julgamos ser uma esperteza, uma forma de levar vantagem, vai sendo somada ao ato hediondo de outras pessoas. Quando esse montante vai sendo somado a um “gato” de luz, que vai sendo somado a carteiras de estudante falsas, mais um superfaturamento de um orçamento, somados a favorecimentos, troca de favores, quando deixamos de devolver um troco errado, quando usamos de amizades pra ter contas e multas suspensas. Tudo isso somado vira um monstro que devora qualquer possibilidade de uma sociedade um pouco menos injusta.

Está todo mundo errado. É preciso que se diga isso. Os de lá de cima, os poderosos, esses pra mim poderiam ir, em sua maioria, pro paredão. Numa boa. Mas aqui embaixo, a gente, povo, não fica atrás na tentativa – mesmo que fracassada no montante – de se dar bem, tirar proveito, e ser, ao fim e ao cabo, desonesta.

Na área das artes não é diferente. É constante vermos na troca falsa de elogios, na troca interesseira de favores um comportamento que diminui a dignidade e integridade da pessoa. Vemos em vários editais, prêmios, festivais e críticas uma clara evidência de que são grupos se favorecendo, pessoas que empurram as outras pra serem empurradas mais à frente, e a dignidade do artista, do intelectual vai pro brejo. Bastou ter algum poder pra destruir um desafeto e favorecer alguém que pode te dar sexo, ou fama, ou dinheiro – o tráfico de influências nefastas que faz do meio artístico uma espécie de simulacro do que de mais podre existe na sociedade.

É engraçado como artistas têm muitas vezes na mão a possibilidade de mudar a história, de melhorar o nível da arte de sua cidade, de seu estado, de seu país, muitas vezes o poder cai na mão de pessoas que pensávamos serem íntegras e o que acontece? Vemos atos sem nenhum caráter, avaliações, escolhas e decisões ferindo o princípio da legitimidade, merecimento e justiça, enfim, estamos rodeados de pessoas em qualquer área que são corruptas, desonestas. Paremos com essa história de distanciar de nós o que é evidente. E é importante que essas pessoas se sintam assim, saibam que são canalhas, calhordas, inescrupulosas. Basta pensar nas repartições públicas. Se os cargos menores fossem ocupados por pessoas de caráter ilibado, 99% das falcatruas seriam interceptadas e denunciadas. Mas o rabo-preso, de um lado, e a vontade de se locupletar, do outro, fazem de qualquer posição social uma isca para a corrupção.

A cada dia que passa vejo pessoas que eu considerava como honestas, íntegras e responsáveis, entrando nessa vala comum dos jogos da corrupção. Talvez essas pessoas achem isso normal. E pensem que a história não vai registrar seu delito. Mas a justiça vem num cágado aleijado, mas vem. No mesmo passo que o distanciamento histórico poderá revelar que essa confraria da mediocridade, esse cartel de mafiosos da arte, por exemplo, conseguiu atrapalhar carreiras, exaltar o mau-gosto, se confraternizar chafurdando numa lama floreada de elogios, abraços, cachês, troféus e cinismo.

Ninguém dorme melhor que os assassinos. Assim começa o soneto do poeta Ildásio Tavares. Parece que esses senadores, essas comissões, essas curadorias, esses deputados, nenhum deles se preocupa com o fato de estarem destruindo a beleza do mundo. É nessas horas que a beleza do mundo se esconde em atos vistos por poucos, na surdina, enquanto o tráfego de buzinas e atropelos conduz bebadamente seu barco no asfalto da avenida Brasil.




GVT.

2 comentários:

Vida Oliveira disse...

Em 2006, publiquei um artigo na folha dirigida, em que tentava dizer a mesma coisa. " aquele que leva a revista do consultório do dentista é tão corrupto quanto o político que rouba milhões, lá em cima".
Enfim, concordo plenamente. E parabens pelo texto, que além de flar uma verdade, fala-a de uma forma muito bem escrita e bonita.

Abraços.

Prof. Geraldo disse...

Nessun dorma! Ao teu lado ronca a serpente, parente, patente. Está ali, a peçonha, no sorriso e no abraço. Corrupção é resultado de um sistema. Não há homem, mulher, criança, gato, cachorro, elefante, peru, nem papagaio corrupto. Corrupto é o desejo! Corrupto é o ensejo. Se vc vai ao dentista, se o Senador vai ao Congresso, vão desejando. A oportunidade faz o ladrão. Sociedade que não divide, é sociedade que não sacia! Não sacia e cria monstros de desejos a riste! Quando saio à luz do dia, no meio da rua, vejo um montão de gente diferente desejando e competindo. Competem pelos desejos e pelas diferenças. Competição sadia? Não existe! Em toda competição há alguém que sai derrotado. Não há perda sadia. Perder é perder. No carro que não tenho e no que terei, há centenas de mortos, nos porta-malas. Minhas mãos estão sujas do sangue que bebi na alegre noitada. Se venci na vida, alguém perdeu. Só pode haver honestidade na isonomia, mas quem está disposto a ceder? Nem eu, nem você, nem ninguém. A arte de bosta que se faz, é porque tem um bosta que consome. Na sociedade do Capital, vencedor é quem vende, perdedor é quem deseja e não tem e se frustra e se morre e se mata. Selva. Animal grande que come animal pequeno. Revolução? Só de costumes e desejos. Tem que haver concessões para que o desejo não nos atropele. Quem cede primeiro? Nessun dorma, nem os assassinos!