domingo, setembro 06, 2009

MARIA JOÃO PIRES NA MÃO

MARIA JOÃO PIRES NA MÃO
Sáb, 05 de Setembro de 2009 19:56
texto originalmente publicado na coluna Teatro & Cidade do site http://www.noticiacapital.com.br/






O conceito de arte, e do que é artista, a cada dia que passa se torna mais confuso – recheado de questões que põem a cultura no meio de um ringue onde todos perdem e a arte, coitada, só faz se enfraquecer.

Mas me arrisco a identificar algumas poucas pessoas que para além de exercer seu ofício nas artes eu posso definir como artista; no sentido mais raro da palavra. Uma delas, e das muito poucas, chama-se Maria João Pires.

Fui ao concerto dessa pianista portuguesa, dia 03/09, no Teatro Castro Alves, com a Orquestra Sinfônica da Bahia, e pude sentir uma coisa que poucas vezes sinto. Um estado de êxtase me tomou o corpo, ao ponto de não conseguir nem sequer aplaudir a genialidade dessa artista que estava ali fazendo nada mais do que arte.

O segundo concerto pra piano de Beethoven acabou sendo coadjuvante da maestria com que Maria João debulhava as notas, coloria os sons, acariciava as teclas. Sempre que ouço uma música, tento entrar em sintonia com o que o autor poderia realmente querer com aquela passagem, aquele arpejo, aquela entrada lenta, aquele arremate preciso. E muitas vezes me decepciono ao perceber na interpretação do solista, ou da orquestra, ou nas escolhas do regente uma ineficiência no diálogo com a pretensão da obra. Sim, digo da obra porque nem sempre o autor sabe até onde pode ir aquilo que ele criou. Além de ser, na maioria das vezes, seu pior crítico, o autor muitas vezes pode não ser o melhor intérprete de sua obra.

Era impressionante a generosidade de Maria João em conversar com a orquestra, o diálogo preciso, e seu semblante que discretamente entristecia com uma nota triste e sorria numa passagem exuberante, tudo isso muito bem regido pelo maestro Christopher Warren-Green. E fica aqui uma dica para Ricardo Castro; acorrente este maestro a alguma coluna do teatro e obrigue-o a ficar um ano regendo a orquestra. Impressionante como ele consegue conduzir a OSBA. E isso já era perceptível desde o Mahler que ele regeu em outro concerto até o Rachmaninov que se seguiu ao Beethoven da apresentação do dia 03/09.

O concerto fez parte da Série TCA, um dos poucos projetos interessantes que o governo atual não abortou. Um projeto que há quatorze anos traz a Salvador, numa programação anual, grandes nomes das artes mundiais. E foi numa semana, inclusive, que a Série TCA colocou, em sua programação, duas apresentações de grande porte; além de Maria João Pires, uma velha guarda cubana sob a alcunha de Buena Vista Social Club.

Algumas coisas me vieram à mente essa semana, ainda mais depois de assistir a um concerto como poucas vezes vi aqui ou em outra capital do mundo, com uma pianista que está entre as grandes deste e do outro século; uma artista que, com suas vestes simples, uma saia indiana, contrastava com os cetins e rendas e paetês tão comuns em nossos concertos, em nossas festas de formatura, em nossos casamentos e quinze anos e batizados...

No dia do concerto de Maria João Pires, passou na principal rede de televisão local chamadas para o tal BVSC. À primeira vista, estranho. Primeiro porque se tratava de um concerto dentro do mesmo projeto – o que deveria ser então prioridade para a divulgação de Maria João Pires, já que era no dia de sua apresentação. E, segundo, porque os ingressos para BVSC estavam esgotados para a sessão e para a sessão extra.

Qual a intenção do Governo Estadual e de seus apoiadores ao deixar de divulgar um concerto que – vergonhosamente (e com preços em conta) – estava com pouco mais de meia-casa e com uma excepcional artista no palco, para divulgar algo esgotado?

Como falei no artigo anterior, a mídia venceu a gente. E nada melhor para a mídia do que uma marca. E a marca BVSC é uma marca forte, pois esteve no Oscar, lançou CD, teve produção americana e foi um sucesso estrondoso no mundo quase inteiro. Isso interessa aos apoiadores e ao Governo Estadual, possivelmente; mostrar como eles conseguem trazer para a província essa “marca” de sucesso.

As pessoas consomem marcas, e não qualidade. Todos querem ter tal etiqueta, tal brasão, tal selo em seus objetos de consumo. E as duas sessões de BVSC traduzem muito bem isso. Alguns músicos da velha guarda cubana já estiveram aqui – no Mercado Cultural – sem a marca BVSC, e pouca gente se interessou. Esses grandes músicos de agora seduziram pela marca, e não pela qualidade. O que é uma lástima, visto que a qualidade desses músicos está além e independente do que a massa pretende consumir. Na verdade, as pessoas se interessam em estar presentes ao fenômeno, e não em fruir um objeto artístico.

BVSC está lotado com antecedência e com propaganda na TV. E vai ser um bom espetáculo que, infelizmente, não irei. Maria João Pires foi preterida de chamadas na TV e fez um concerto memorável. Talvez fosse mais interessante pra um governo que pensa em formação, em democratização, em educação e sensibilização, fazer de tudo pra que os baianos pudessem admirar – e para além disso ter as ferramentas para tal, que só a educação e a cultura podem dar – um momento tão especial como o do dia 03/09. Mas é melhor trabalhar com marcas. Com números. Divulgar uma cacetada de editais, uma cacetada de reuniões com representantes de periferias e cidades do interior. Divulgar que o BVSC lotou o TCA.

A arte continua com Pires na mão; e parece que quase ninguém vê.



GVT.

Um comentário:

Jorge Jr. disse...

GVT, eu estava lá contigo, e atesto o quão memorável foi aquela noite. Maria João Pires é patrimônio da humanidade. E o "lance" da publicidade para um evento que já tinha seus ingressos esgotados é, realmente, no mínimo uma piada sem graça nenhuma.