domingo, junho 18, 2006

TEATRO É PRÁTICA

Especial 50 anos
Teatro Se Aprende Fazendo Teatro

“Encontra-se nesta capital o Sr. Martim Gonçalves Pereira, que vai organizar e dirigir a Escola de Teatro da Universidade da Bahia, cujas aulas terão início no próximo dia 15 de agosto, estando as matrículas abertas na Avenida Araújo Pinho, 12. Além do ensino da arte dramática, a referida escola formará também um grupo de teatro que, logo de início, contará com a colaboração dos profissionais Ana Edler e Antonio Patiño”.

Assim o jornal A Tarde anunciou a criação da Escola de Teatro, da então Universidade da Bahia, em nota do dia 10 de agosto de 1956. O que é particularmente notável no trecho acima é como ele já antecipa os múltiplos papéis que marcarão a desempenho do Casarão do Canela nos próximos 50 anos. Em primeiríssimo lugar, aquele que marca sua peculiaridade em relação a outras escolas no Brasil: a idéia de que “teatro se aprende fazendo”. Para o fundador e primeiro diretor da Escola, o pernambucano Eros Martim Gonçalves Pereira, teatro era uma prática que se aprendia em cima do palco, através da troca contínua entre atores profissionais, professores-artistas e alunos.

Alimentavam esta premissa: sua experiência como co-fundador do Teatro Tablado, junto com Maria Clara Machado, trabalhando aqui parte do repertório montado com ela no Rio de Janeiro; sua livre inspiração na rotina da Escola de Arte Dramática (EAD), ligada ao Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), em São Paulo; seu conhecimento da estrutura de escolas de teatro americanas (que pregava a autonomia total, inclusive de verbas, para estas unidades); e as técnicas de atuação do Actor’s Studio, em Nova Iorque, que deram o viés stanislavskiano-naturalista à formação dos primeiros atores.

Dois semestres antes da fundação da Escola, Gonçalves vinha se familiarizando com a cidade através da realização de cursos livres de teatro. Suas aulas aconteciam no subsolo da Reitoria, na Escola de Enfermagem e na Residência Universitária. A Escola de Teatro será criada a partir da aquisição do Solar Santo Antônio – que inclusive havia pertencido à família do escritor baiano Dias Gomes – como sede da unidade e antiga residência do diretor e professores. Já na época, convencionou-se que o dia 13 de junho seria a data de aniversário da Escola, em homenagem ao padroeiro do antigo casarão.

Antes da Escola, o teatro em Salvador se resumia às atividades de grupos amadores que se revezavam nos raros palcos da cidade, como o Teatro do Iceia, o Cine-Teatro Guarani (atual Glauber Rocha) e o teatro do edifício Oceania, além de espaços cedidos por escolinhas, clubes e paróquias. Trabalhando sem apoio, sem público, sem recursos técnicos ou formação, o movimento começara a despontar na década anterior, quando se intensificaram as transmissões de rádio-teatro, com radio-novelas patrocinadas por produtos de beleza. A cidade recebia eventuais companhias em turnê, enquanto os amadores se exibiam uma ou duas vezes ao ano, geralmente encenando operetas, comédias e peças infantis, em ambientes com quase nenhuma estrutura profissional ou mesmo em suas residências.

O Teatro de Amadores de Fantoches e o Teatro de Cultura da Bahia fugiam um pouco à regra, buscando apresentar textos mais representativos do repertório clássico e moderno, mas sem conseguirem dialogar com as inúmeras tradições de encenação e atuação que já sacudiam as artes cênicas no resto do país. Os amadores baianos se queixavam de que nada mais acontecia porque a cidade não possuía mais teatros. Nesta época, também eram comuns, como ainda o são em municípios do interior, as apresentações de peças religiosas patrocinadas pela prefeitura durante a Semana Santa e Natal.

Em meados dos anos 50, a Bahia acabara de ingressar no fluxo do capitalismo moderno, com as atividades advindas da extração petrolífera, e sua elite se revezava no poder enquanto aspirava uma cultura de academias, valorizando a oratória rebuscada e o conhecimento de aparência enciclopédica. Ainda sem a chegada da televisão (que, em Salvador, acontece em novembro de 1960, com a criação da TV-Itapoan), a diversão se resumia ao cinema, ao rádio, ao passeio na Rua Chile, à conversa com amigos e os raros banhos de mar.

Diante deste cenário, a Escola de Teatro surge como um projeto arrojado, com objetivos inter-relacionados: divulgar a dramaturgia clássica e moderna, através de suas encenações-modelo e, numa junção entre teoria e prática, formar artistas profissionais (atores, diretores e técnicos) e público nos mais atuais métodos e técnicas teatrais e cinematográficas. Até a inauguração do Teatro Santo Antônio, atual Teatro Martim Gonçalves, em 26 de abril de 1958, com a peça Senhorita Júlia, de August Strindberg, Martim Gonçalves enfrentaria o velho problema da falta de teatros com uma atitude do Teatro Moderno: utilizando espaços alternativos afinados com o estilo e o tema das encenações. É assim que o vemos apresentando os primeiros espetáculos da Escola, o medieval português Auto da Cananéia, na Igreja de Santa Tereza, o baile pastoril O Boi e o Burro a Caminho de Belém, de Maria Clara Machado, no parque da Reitoria, e A Via Sacra, de Henri Gheon, no Cruzeiro de São Francisco.

É realmente através da montagem de espetáculos que se processa a grande contribuição da Escola para a atualização das artes cênicas na Bahia, com repercussões no ambiente cultural nacional, fornecendo atores e técnicos para o cinema e para a TV. A primeira administração (1956-1961) monta este projeto didático e encena 24 peças, dirigidas por cinco encenadores, além do próprio Gonçalves: Gianni Ratto, um dos co-fundadores do Piccolo Teatro de Milão; Charles McGaw, diretor e escritor americano; Herbert Machiz, diretor do Artist’s Theatre, um dos mais importantes teatros experimentais americano; Antonio Patiño, diretor e ator carioca; e Luis Carlos Maciel, encenador e autor gaúcho, antigo diretor da Escola e hoje colaborador de novelas da Record.

Através da integração entre os cursos da unidade (interpretação, direção, cenografia e traje), e num árduo processo de ensino e prática, Gonçalves exibe os mais diversos autores do repertório mundial, iniciando seu projeto com o medieval português de Gil Vicente até o modernismo contemporâneo do japonês Yukio Mishima, sem esquecer a atualidade da Ópera dos Três Tostões, de Bertolt Brecht e o pioneirismo de Calígula, de Albert Camus, sendo a primeira vez que o autor francês é encenado no país. Parodiando o slogan do governo JK, Martim Gonçalves apressa o passo do teatro baiano e tenta fazer quinhentos anos em cinco, mostrando à cidade o que de melhor havia sido produzido pela dramaturgia universal. Cabe ressaltar que, apesar de ligados a uma estrutura universitária, estes cursos foram profissionalizantes e livres até 1963, quando se formalizou o curso de Direção Teatral. Apenas em 1983, se institucionalizaria o Bacharelado em Artes Cênicas, agora com habilitação em interpretação.

Nas décadas de 60 e 70, em paralelo à Ditadura, a Escola, como toda estrutura universitária, enfrentaria sérias dificuldades administrativas e financeiras. As verbas para espetáculos passam a ser raras, como o são para toda a produção cultural. Dependente, sobretudo, do patrocínio do governo, o teatro baiano como um todo entra em paralisia, em 1984, com a administração de Olívia Barradas, na Fundação Cultural do Estado. Década difícil em que o Teatro Castro Alves esteve fechado e o Teatro Vila Velha ficou acéfalo, com a morte de seu primeiro líder, João Augusto Azevedo.

Não fosse a criação da Companhia de Teatro da Ufba, em 1981, com a volta do ator e diretor Harildo Déda após mestrado nos EUA, ‘aprender teatro fazendo teatro’ nestes anos seria ainda mais difícil. A Companhia monta a resistência na Escola de Teatro e estréia com Seis Personagens à Procura de um Autor, de Luigi Pirandello, trazendo espetáculos que ainda povoam a memória de artistas baianos, como Caixa de Sombras, de Michel Cristopher, A Caverna, de Walter Smetak, e Em Alto Mar, de Slawomir Mrozek.


Seu objetivo era encenar textos de qualidade dramatúrgica, sem evidente apelo comercial e com elevado nível técnico. Diferentemente d’A Barca, primeiro grupo da Escola, a Cia de Teatro da Ufba não é formada por elenco fixo, contando com atores convidados, diretores e alunos. Em 2006, a Companhia faz 25 anos, tendo produzido até o momento mais de 30 espetáculos. Ao lado de Déda, o diretor e cenógrafo Ewald Hackler é o responsável pelo maior número de trabalhos. Sua última montagem, o texto Arte, de Yasmina Reza, ganhou o Prêmio Braskem 2005, de melhor espetáculo, direção e ator, para Gideon Rosa, e vem sendo exibida em cidades do interior baiano. E a Escola exibe muitos outros prêmios em sua secretaria.

Diante deste fundamento prático, causa preocupação que o Teatro Martim Gonçalves esteja fechado para reformas há quase seis anos. Em paralelo à generalizada falta de verbas para a área, não é à toa o clima morno da cena teatral baiana dos últimos tempos. O trabalho dos alunos, sempre aberto e gratuito à comunidade, ficou restrito a uma sala experimental, interna à Escola, a Sala Cinco, que ainda promove o projeto Ato de 4. É inquietante que uma turma de alunos já tenha se formado sem passar pelo seu palco, verdadeiro coração teatral da cidade, e mostruário de novos talentos. Resta-nos a expectativa pela finalização das obras em curso, após a liberação de uma nova leva de recursos federais.

Nenhum comentário: