Conceitos para a Luz
Eduardo Tudella
Eduardo Tudella
Ouvi, certa vez, comentário proferido por um, assim chamado, iluminador, que soou inquietante; acentuava ele como é importante considerar que a luz (no teatro), é feita do nada. Ainda que não tenham sido essas, exatamente, as palavras, tal foi a impressão que restou da curiosa assertiva. Para aqueles familiarizados com a questão parece óbvio que o “iluminador” pretendia dizer muito mais do que pode parecer, quando se isola tal afirmação do contexto. O profissional considerava o fato de não ter à sua disposição a fisicalidade das texturas e cores dos diversos materiais aplicados por cenógrafos, figurinistas, maquiadores, entre outros artistas, no estabelecimento do diálogo criativo em direção ao evento cênico. Ele procurava acentuar a impalpabilidade do seu elemento, a luz.
Ora, isso pode parecer sem importância, num certo sentido, mas torna-se curioso quando se avalia que, nesses tempos nos quais nos deparamos, ainda, com o “antigo” drama em muitas bibliotecas, e contamos com teimosos encenadores a levá-los ao interior dos seus espetáculos, o que menos se espera do público é uma relação táctil com a cena. E, mesmo alentado o desejo obsessivo de muitos artistas no caminho de promover status de fruidor para o seu espectador, quando sentimos pela última vez a textura da alva face do jovem Hamlet[1]? Ou, quem testemunhou a frieza da lamina da espada de Don Giovanni a espetar o Commendatore[2]? Exerce, sim, o espectador, um papel de devorador visual, também. O que pode sugerir ao responsável pela contribuição da luz ao espetáculo alguma investigação acerca do “nada” mencionado acima.
Onde se poderia buscar algo capaz de atuar como elemento deflagrador do processo que promova a interação da luz, na cena? Pareceu-me pertinente a referência presente já na denominação da obra: o que teria levado o jovem Gil Vicente Tavares a intitular o seu texto Os Javalis? Sublinhando-se uma livre inspiração em Ionesco essa já representaria uma importante ramificação proposta pelo texto dramático.[3] Pode, portanto, ficar latente a intenção deliberada de dialogar com o texto francês, discutindo aspectos de uma inquietante transmutação, de semelhante violência. Tal decisão já pode configurar provocação para a luz: em primeiro lugar pelas imagens reservadas na memória do leitor, desde os primeiros anos da educação formal quando se deram os contatos iniciais com a figura do javali. Acrescente-se a isso visitas a museus de história natural, filmes e experiências diversas a alimentar o seu imaginário.
A dramaturgia de Gil Vicente, no entanto, confere estranhas características, acentuado e particular poder à espécime “javalinesca” que ali transita. Muito além daquele descrito pelos compêndios, assim como observado nas demais experiências mencionadas no parágrafo precedente. Tais poderes surpreenderiam até mesmo os habitantes da Província de Zhejiang, no leste da China, que tiveram uma das suas universidades invadidas por enormes javalis, de aproximadamente 200 kg, que se puseram a devorar toda a comida que encontravam[4]. Ao que parece, a invasão de javalis a instituições de ensino, já não representa tão somente momentos da ficção.
E, se isso não basta para implodir o “nada” tratado no primeiro parágrafo, observe o leitor, com acuidade, a poesia de Gil Vicente para se surpreender na familiaridade das habilidades dos seus vorazes espécimes. A réplica número 08 define: o javali é um porco feroz. Mais adiante, toma-se conhecimento que as feras “comeram a cabeça de todo mundo” e que essa voracidade se revela sedutora, de modo contundente, através de propostas de alianças no intuito de destruir aqueles considerados inimigos.
A ameaça alcança requintes de brutalidade quando o Homem B revela:
Pareciam homens, de longe. Só de perto é que se via o quanto eram repugnantes.
Esses “homens”, portanto, não passam de hospedeiros tendo como sua verdadeira identidade uma fera cruel. Que homens serão, ainda, por sorte, meramente homens? Tal universo exige olhar atento. O que poderia ser mais assustador?
E, que sítio é esse no qual javalis escondidos dentro dos homens comem cabeças, escravizam, incorporam à sua natureza armas destruidoras? Como revelar, na cena, esse ambiente? Tarefa desafiadora. Sem a decisiva e particular contribuição da luz, impossível. Que “luz”, então, seria essa, capaz de efetivar a revelação de tal ambiente? Que atmosfera é exigida pela ação dramática no jogo com as diversificadas poéticas a dialogar na cena? Tanto do diretor, quanto do cenógrafo e do figurinista. Do ponto de vista da relação visual fruidor-evento cênico a luz é o traço de união definitivo entre tais aspectos. Uma espécie de elo intra-poéticas. Esse contexto parece promover um elenco consistente de provocações para o responsável por criar a luz que incidirá sobre o objeto, construindo a cena.
Como responderia o artista a tais provocações? Esse universo sugere um tratamento que afirme crível e consistente o ambiente da ação e, simultaneamente, revele certo grau de estranheza. Ou seja, o nível de verossimilhança deve construir desconfiança, questionamento do fruidor acerca de onde esse embate ocorre. Afinal, que lugar seria capaz de abrigar uma organização social cujos membros devem fitar atentamente seus pares no intuito de se certificarem que dentro do outro, não se esgueira um javali? Se, na dramaturgia, o espaço do Homem A é uma espécie de refúgio dividido com sua principal companhia, a solidão, escondendo compartimentos proibidos para as indesejáveis visitas, a ceno-grafia de Euro Pires introduz certo grau de “impessoalidade”, “quasi-industrial”, que abre inúmeras possibilidades para a atuação luz.
Na presente montagem, elegeu-se, então, um enfoque que investe na frieza dos matizes, em movimentos com nível de realidade muito reduzido e contundência nos ângulos – gerando, através da narrativa das sombras, contribuição substancial para a estranheza proposta, já na dramaturgia e construída, artificialmente, na encenação.
Ora, isso pode parecer sem importância, num certo sentido, mas torna-se curioso quando se avalia que, nesses tempos nos quais nos deparamos, ainda, com o “antigo” drama em muitas bibliotecas, e contamos com teimosos encenadores a levá-los ao interior dos seus espetáculos, o que menos se espera do público é uma relação táctil com a cena. E, mesmo alentado o desejo obsessivo de muitos artistas no caminho de promover status de fruidor para o seu espectador, quando sentimos pela última vez a textura da alva face do jovem Hamlet[1]? Ou, quem testemunhou a frieza da lamina da espada de Don Giovanni a espetar o Commendatore[2]? Exerce, sim, o espectador, um papel de devorador visual, também. O que pode sugerir ao responsável pela contribuição da luz ao espetáculo alguma investigação acerca do “nada” mencionado acima.
Onde se poderia buscar algo capaz de atuar como elemento deflagrador do processo que promova a interação da luz, na cena? Pareceu-me pertinente a referência presente já na denominação da obra: o que teria levado o jovem Gil Vicente Tavares a intitular o seu texto Os Javalis? Sublinhando-se uma livre inspiração em Ionesco essa já representaria uma importante ramificação proposta pelo texto dramático.[3] Pode, portanto, ficar latente a intenção deliberada de dialogar com o texto francês, discutindo aspectos de uma inquietante transmutação, de semelhante violência. Tal decisão já pode configurar provocação para a luz: em primeiro lugar pelas imagens reservadas na memória do leitor, desde os primeiros anos da educação formal quando se deram os contatos iniciais com a figura do javali. Acrescente-se a isso visitas a museus de história natural, filmes e experiências diversas a alimentar o seu imaginário.
A dramaturgia de Gil Vicente, no entanto, confere estranhas características, acentuado e particular poder à espécime “javalinesca” que ali transita. Muito além daquele descrito pelos compêndios, assim como observado nas demais experiências mencionadas no parágrafo precedente. Tais poderes surpreenderiam até mesmo os habitantes da Província de Zhejiang, no leste da China, que tiveram uma das suas universidades invadidas por enormes javalis, de aproximadamente 200 kg, que se puseram a devorar toda a comida que encontravam[4]. Ao que parece, a invasão de javalis a instituições de ensino, já não representa tão somente momentos da ficção.
E, se isso não basta para implodir o “nada” tratado no primeiro parágrafo, observe o leitor, com acuidade, a poesia de Gil Vicente para se surpreender na familiaridade das habilidades dos seus vorazes espécimes. A réplica número 08 define: o javali é um porco feroz. Mais adiante, toma-se conhecimento que as feras “comeram a cabeça de todo mundo” e que essa voracidade se revela sedutora, de modo contundente, através de propostas de alianças no intuito de destruir aqueles considerados inimigos.
A ameaça alcança requintes de brutalidade quando o Homem B revela:
Pareciam homens, de longe. Só de perto é que se via o quanto eram repugnantes.
Esses “homens”, portanto, não passam de hospedeiros tendo como sua verdadeira identidade uma fera cruel. Que homens serão, ainda, por sorte, meramente homens? Tal universo exige olhar atento. O que poderia ser mais assustador?
E, que sítio é esse no qual javalis escondidos dentro dos homens comem cabeças, escravizam, incorporam à sua natureza armas destruidoras? Como revelar, na cena, esse ambiente? Tarefa desafiadora. Sem a decisiva e particular contribuição da luz, impossível. Que “luz”, então, seria essa, capaz de efetivar a revelação de tal ambiente? Que atmosfera é exigida pela ação dramática no jogo com as diversificadas poéticas a dialogar na cena? Tanto do diretor, quanto do cenógrafo e do figurinista. Do ponto de vista da relação visual fruidor-evento cênico a luz é o traço de união definitivo entre tais aspectos. Uma espécie de elo intra-poéticas. Esse contexto parece promover um elenco consistente de provocações para o responsável por criar a luz que incidirá sobre o objeto, construindo a cena.
Como responderia o artista a tais provocações? Esse universo sugere um tratamento que afirme crível e consistente o ambiente da ação e, simultaneamente, revele certo grau de estranheza. Ou seja, o nível de verossimilhança deve construir desconfiança, questionamento do fruidor acerca de onde esse embate ocorre. Afinal, que lugar seria capaz de abrigar uma organização social cujos membros devem fitar atentamente seus pares no intuito de se certificarem que dentro do outro, não se esgueira um javali? Se, na dramaturgia, o espaço do Homem A é uma espécie de refúgio dividido com sua principal companhia, a solidão, escondendo compartimentos proibidos para as indesejáveis visitas, a ceno-grafia de Euro Pires introduz certo grau de “impessoalidade”, “quasi-industrial”, que abre inúmeras possibilidades para a atuação luz.
Na presente montagem, elegeu-se, então, um enfoque que investe na frieza dos matizes, em movimentos com nível de realidade muito reduzido e contundência nos ângulos – gerando, através da narrativa das sombras, contribuição substancial para a estranheza proposta, já na dramaturgia e construída, artificialmente, na encenação.
[1] Refiro-me ao Hamlet, de William Shakespeare.
[2] Trato aqui do momento na qual o pai de Donna Anna é ferido mortalmente por Don Giovanni, na ópera homônima, de Mozart, cujo libretto tem como autor Lorenzo da Ponte.
[3] Eugene Ionesco, Os Rinocerontes, escrita em 1960.
[4] http://noticias.terra.com.br/mundo/interna/0,,OI2054665-EI10495,00.html
7 comentários:
porra, caralho, e o ator fica aonde
nesta parafernalha toda? me parece que a luz é só dele, do ator.
Anônimo,
Me parece que vc não compreendeu muito bem o recorte do texto de um iluminador falando sobre a luz do espetáculo (!!!). Aliás, até óbvio...
E também nada inovador, já que a compreensão do espetáculo com um todo que pode ser dissecado (compreendido/analisado) também pelas suas partes é uma contribuição do Teatro Moderno....
A "luz do ator" é uma bela metáfora, mas neste texto não é uma cobrança legítima... E, no caso de Os Javalis , com a contracena de Betão e Marcelo Praddo, um encontro que, NO QUESITO ATUAÇÂO, merece uma análise à parte.
VC se habilita?
Caríssimo anônimo
Desculpe-me não haver reagido ao seu comentário: não sabia a quem me dirigir.
De qualquer modo, o(a) senhor(a) me deu chance de comentar, brevemente, a questão.
Desculpe-me, também, por não haver desenvolvido o enfoque de modo a responder às suas expectativas. Sua indignação é, absolutamente, compreensível.
Ocorre que, trabalhar com seriedade nas artes cênicas é uma tarefa difícil e, confesso minha substancial ignorância no que se refere ao ofício do ator, principalmente nesses tempos pós Pós-moderno da Performance (e considere que, há alguns anos atrás o pós-moderno soava eterno, para alguns), e do teatro pós-dramático, onde ator parece um termo antiquado.
Minha decisão, portanto, de sublinhar a luz na cena, foi um reflexo da minha limitação. Parece-me, contudo, que, uma boa maneira de avaliar a relação do meu projeto com as personagens (e não com os atores, pois ainda que meus grandes amigos, dos quais sou "fã de carteirinha", não dirijo meu trabalho para eles nesse tipo de espetáculo ultrapassado - para tantos - no qual o ator trabalha, exaustivamente, com o intuito de fazer crer o espectador que as personagens são as entidades mais importantes, no evento) seria ver o espetáculo e observar como tratei o ambiente no qual as personagens desenvolvem o embate e estabelecer avaliação criteriosa.
O que, aliás, seria contribuição considerável para o teatro em si, uma vez que a Teoria e a Crítica têm se referido de modo superficial e/ou omisso ao discurso visual da cena, ainda que pretendam discutir o Teatro, do verbo grego “ver”. Alguns com a desculpa frágil: ver, no teatro, é atitude contemplativa, antiquada.
Parece-me, aliás, por vezes, que já está na hora de abolirmos o “pós”, esquecer o termo teatro, a palavra submetida à ditadura da gramática (Barthes já falou sobre isso) - da semiologia e da semiótica - os locais fechados (teatros!!!), a "horinha" para começar e acabar, o evento noturno renascentista, o visual espetacular barroco. Muitas "regrinhas"!
Talvez o artista ainda tenha receio de investir no olfato e no paladar, como sensações primordiais de um acontecimento. Que nada teria de cênico, teatral. Onde ver, seria prescindível. Seria novidade?
Tomando a liberdade de usar o comentário da amiga Jussi, cabe sugerir uma visita ao teatro. Talvez pedir 3 performances. Uma delas com a luz projetada pelo engenheiro eletricista para a casa de espetáculos e a outra, às escuras.
Muito grato pela sua valiosa contribuição.
Tudella
Tudo bem, senhores! Mas ainda assim
eu acredito que o ator é foco principal do teatro.É ponto de partida, o princípio de tudo, sem o ator nada feito. Não existe teatro.
O cinema pode sim ser do diretor, mas o teatro é e sempre será do ATOR! Não me venha com sua ditadura estética de luz ou de cenografia ou seja lá o que for, pois o teatro é por natureza elouquente e isto é dádiva absoluta do ator. Ator e plateia é o único casamento que, com certeza,nascerá o teatro.
Antes da luz, antes da direção, eu quero dizer viva Carlos Betão! Viva Marcelo Praddo! verdadeiros senhores da cena, dando vida a uma ideia que, com certeza, se fosse lida simplesmente não seria tão divina. viva o ator!!!!!!!!
Caro anônimo,
Primeiro enquanto aluno, e depois enquanto colega de trabalho, sempre percebi uma preocupação excessiva de Tudella com o ator, mais do que com o espetáculo. Havia sempre uma crítica implícita, em seu discursos, às luzes espetaculares, cosméticas e de mero efeito visual, em detrimento de um trabalho que priorizasse a ação, a cena, e principalmente o ator.
Não quero defender ninguém, e acho legítima sua reclamação, mas acho que você escolheu o profissional errado para criticar.
Jussilene foi sábia em sua colocação justamente por querer mostrar que o texto de Tudella fez apenas um recorte.
Talvez você não saiba, mas o nome do grupo, Teatro NU, vem da idéia - justamente - de desnudar a cena de artifícios espetaculares para revelar o ator, o texto, o teatro propriamente dito.
Não sei se você teve oprotunidade de assistir a peça, mas o que mais me alegra é que o primeiro comentário que surge, das pessoas, ao assistir ao espetáculo, é sobre os atores, sobre essas duas feras enjauladas na javalinesca prisão da nossa sociedade.
Viva o ator, sim. Ele é o princípio e o fim do teatro. E que consigam sobreviver profissionais e apreciadores do teatro - como você e Tudella - que acreditam e trabalham pra isso.
um abraço,
GVT.
Eduardo
Infelizmente me falta a coragem para me identificar. Aproveito esse espaço apenas para ressaltar a minha admiração por vc. Homem inteligente e talentoso. Adoro ler os seus textos.
Abraço
Eduardo
Só um detalhe: Não sou o anônimo ai de cima, sou anônima.
Abraço
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