Na época de meu pai, Salvador era uma cidade que apontava para o futuro incensando seu passado. A geração anterior à dele havia despetalado para o mundo uma cultura típica, rica e festeira, nas músicas de Dorival Caymmi, nos romances de Jorge Amado, nas pinturas de Carybé e nas fotografias de Pierre Verger (estes dois últimos adotando a Bahia como sua terra e tendo sido adotados por ela), pra falar apenas de alguns que se foram. Mas era uma geração que também denunciava e ousava.
Nas canções de Caymmi, a pobreza misturada ao orgulho e à força do pescador, as primeiras dissonâncias; nos romances de Jorge Amado, a verve comunista que tanto o projetou e que fez sua obra ser mais do que o simples cartão postal que alguns o acusam. E toda uma obra de uma geração que, ligada às novidades que surgiam, dialogava com seu tempo e seu espaço.
Na época de meu pai, um jovem temporão havia chegado ao Rio de Janeiro, capital do país, com um jeito diferente de tocar violão e cantar, vindo lá de Juazeiro. E João Gilberto havia aberto a cabeça de toda uma geração baiana que iria revolucionar o país.
Na época de meu pai, as castas sociais eram misturadas em rodas de capoeira, nas festas de largo, no samba-de-roda do Mercado Modelo, no cineclube de Walter da Silveira, na Escola de Teatro da UFBA, nos seminários de música da mesma universidade que havia sido acrescida de novos cursos, implantados por Edgar Santos, que trouxe a Salvador a vanguarda do mundo.
Na época de meu pai, ele pôde ver Yanka Rudzka, Gianni Ratto, Koelreuter, Lina Bo Bardi e tantos outros trazerem uma linguagem nova que se mesclava ao som dos atabaques, ao corpo redondo das baianas, à expressão sofrida, mas gozadora, de um povo. E dessa mistura puderam surgir Glauber Rocha, Gilberto Gil, João Ubaldo Ribeiro, Caetano Veloso, Muniz Sodré e toda uma geração – a geração de meu pai – que mexeu com as estruturas de uma cidade adormecida em seu pensamento e visão.
Mas na época de meu pai, todos sabiam o limite entre o popular e o erudito, entre o amador e o profissional, entre o capitalismo e a arte. Até porque era uma geração que, apontando para o futuro, vislumbrava uma cidade cujo seu potencial artístico e cultural pudesse transformá-la numa referência mundial para a dança, a arquitetura, o teatro, o cinema, a música.
Outras épocas vieram, e a migração para o sul-maravilha, a ditadura, a direita no poder e (pasmem) agora a esquerda (heim?) no poder, dentre vários outros fatores, fizeram com que Salvador nunca deixasse de ser uma província. Tudo isso fez de nossa cidade um lugar de artistas mendicantes, sem espaço e sem reconhecimento; um lugar onde o folclore é munição do estado para fazer a ação mais preconceituosa que existe, que é valorizar o que há de genuíno e exótico como forma de prender um povo, de forma violenta, à sua decorrente falta de amplitude de visão e conhecimento; um lugar onde uma arquitetura de péssimo gosto foi engolindo as belezas de nossas prédios antigos, um crime que já havia se iniciado, por exemplo, quando da demolição da nossa igreja da Sé – pois é, temos uma Praça da Sé sem uma igreja da Sé – pra passagem de uma linha de bonde, e chega agora a proporções de irresponsabilidade tal que até as pedras portuguesas, os casarões históricos e nossa orla são alvos de especulação imobiliária e estupidez da administração pública.
Salvador se tornou um projeto falido. Não se pensou num processo de urbanização que dialogasse com o contemporâneo sem tirar os olhos do passado. Pelo contrário, a especulação imobiliária transformou nossa cidade numa mistura de Miami com Favela da Rocinha, espremidos que estamos por uma cidade que transita entre a aparência eterna de “invasão” com a de prédios das alturas, estéticas e localizações mais diversas, quase que em sua maioria evitando se pensar num diálogo com nossas vistas, nossa história, nossa cara. Os seguidos administradores públicos, para além de abrirem as pernas para a descaracterização da cidade, nunca olharam pra um de seus maiores bens, seus artistas, que ano após ano migram da cidade, ou se enfiam em universidades para ganhar a vida, frustrados por não ter havido um projeto, um plano, talvez uma extensão da abortada idéia de Edgar Santos e tantos outros da época, que sabiam dos valores existentes nesta cidade.
Hoje parece não ser mais a época de meu pai. Um homem que viveu a pujança da Bahia dos anos cinqüenta, sessenta e setenta, hoje se tornou um dos maiores poetas do mundo, uma figura culturalmente importantíssima, mas que, como as pedras portuguesas, parece estar sendo arrancado da realidade medíocre da nossa província soteropolitana.
Ele e tantos outros de sua geração bradam contras os crimes realizados à nossa cultura, à nossa arte. Ele é de uma geração que queria e tinha projetos para a cidade, mas que se espremeu entre brados quixotescos.
Enquanto os donos do poder legitimam e valorizam a ignorância, o amadorismo, a burrice e a pobreza da nossa grande massa – por um lado –, e por outro baixam a cabeça para interesses escusos e para uma classe média iletrada e manipulada, Salvador continua deixando de ser a cidade de Caymmi, de Jorge Amado, de Walter Smetak, de Rolf Gelewski, e de alguns grandes homens vivos que, atordoados, assistem à degradação da cidade que arranca seus valores, sua cultura, e planta em seu lugar a mediocridade e o mau-gosto do fim dos tempos...
GVT.
Texto dedicado à geração de Ildásio Tavares, meu pai, e a Dorival Caymmi, que foi encontrar uma outra Bahia por aí...
Um comentário:
Caro GVT (que não é a Jussi...rs)
Você prefere qual ângulo de visão? Salvador metrópole ou Salvador província? Esta cidade nada mais é do que uma síntese do acaso. Nossa tradição é barroca, afro-descendente, marrana, tem herança indígena, hindu, portuguesa e moura. Aqui dizem tudo e também dizem nada. Os artistas coitados e frustrados que vivem aqui mendigam porque não chegam ao povo - e, quando chegam, nem artistas são considerados. Aqueles que viajam para o sul e prosperam, esquecem da terra natal e se reinventam. Me diga um que voltou para contar história?
No tempo dos nossos pais (ouso mais, tararavós), Salvador era o mesmo que é hoje. "De dous ff's compõe esta cidade a meu ver - um a furtar, outro a foder". A única diferença é que tudo se tornou global, todo mundo sabe e todo mundo vê. A arquitetura desse lugar é assim porque não é assado -puxa um pouquinho aqui, faz uma ruazinha ali, cresce uma coisinha lá e aí a cidade se monta como um barraco improvisado cheio de lajes e puxados.
Mesmo com tanto problema, ainda afirmo que este é o melhor lugar para se viver. Ainda temos paz, a cobrança do dia-a-dia não é maior que o gosto e o gozo pela vida, não perdemos a inocência por mais que digam o contrário e, acima de tudo, somos felizes. E isso é o que verdadeiramente importa no final.
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