Por Beth Ponte
Esquetes e textos incoerentes, desprezo à narrativa e à linearidade. Situações surreais encaradas de forma doméstica, enquanto o trivial e o cotidiano representam a total falta de sentido. O teatro do absurdo se destacou por romper a delicada fronteira entre o mais natural fascínio pelo incompreensível e a mais inevitável aversão ao ininteligível, que existe em cada um dos homens comuns.
Ao ver "Os Javalis", peça de Gil Vicente Tavares em cartaz na Sala do Coro durante o mês de abril, a primeira pergunta que me ocorreu foi: terá o teatro do absurdo envelhecido, saído de moda? Estará o absurdo démodé? Em absoluto. O absurdo é atual, é presente, é a pauta do dia no mundo em que vivemos. Como imaginar um teatro do absurdo que não tenha lugar nele?
A própria linha temporal seguida pela montagem de Gil Vicente confirma a eterna atualidade do tema. Há 50 anos atrás, o romeno Eugene Ionesco, escrevia a peça "O Rinoceronte", referência do teatro do absurdo. Há 10 anos, o jovem dramaturgo Gil Vicente escrevia "Os Javalis", texto inspirado direta e livremente na obra de Ionesco. E hoje, uma década depois a peça, terceiro projeto do Teatro NU, núcleo formado por Gil Vicente e pela atriz Jussilene Santana, estréia em Salvador em sua primeira montagem.
O primeiro destaque da montagem está na escolha precisa do elenco, formado por Carlos Betão (de “Josefina, a cantora dos ratos”, “Volpone”, “Hamlet”) e Marcelo Prado (de “Hamlet” e do monólogo “Eu”). Expressivos e seguros, a dupla dá vida ao humor seco e à critica presentes no texto. A equipe envolvida no projeto também merece destque e mostra as possibilidades transversais das linguagens artísticas, contando com nomes como os artistas plásticos Gaio, que criou imagem de divulgação da peça, e Euro Pires, que assina o figurino e o cenário sóbrio e escuro que confere uma atmosfera essencial ao espetáculo, além da participação do músico Luciano Bahia, responsável pela trilha e efeitos sonoros.
O enredo inicia-se com a invasão de um vendedor de produtos de limpeza à casa de um senhor pacato em pleno domingo. A razão da invasão é bastante simples: os javalis estão chegando. Traíram as forças armadas, tomaram o poder e comeram todos e tudo. Inclusive a mãe do pacato senhor. No peça de Ionesco, que serviu de franca inspiração ao autor, são rinocerontes que começam a correr pelas tranqüilas ruas parisienses, sem nenhum espanto dos transeuntes e moradores.
O texto, tanto em Gil quanto em Ionesco, é muito mais metafórico que propriamente absurdo, se comparado ao teatro radical de Beckett, por exemplo. Os javalis ou os rinocerontes podem representar a invasão do mercado e do consumo desenfreado, em uma visão mais ortodoxa e até obvia, ou então a ascensão descontrolada de novas e perigosas instâncias de poder na sociedade. Os javalis podem ser o próprio poder da violência e suas múltiplas raízes e representações sociais. Os javalis podem ser outra coisa, podem ser mais. Aí reside a licença do absurdo, para o qual a metáfora pode ser um simples veículo.
O enredo cíclico da peça mostra, por sua vez, a característica mais assustadora do absurdo: sua capacidade de se repetir e de conseqüentemente se banalizar, se cristalizar. Este sempre será o maior motivo para crer que o teatro do absurdo não deixará de exercer ainda forte influência nas nossas representações do mundo, no palco ou fora dele. Além disso, a encenação de "Os Javalis" em plena Bahia, em pleno ano de 2008 ainda torna o termo “teatro do absurdo” quase redundante. Pois afinal, em termos práticos absurdo é fazer e viver de teatro. E em termos reais, o verdadeiro absurdo seria viver sem ele.
*Foto do espetáculo por Jonathas Araújo
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