sexta-feira, dezembro 28, 2007

especulações

Alguns paradoxos sobre o nacional, o popular e a direção de
Martim Gonçalves para a Escola de Teatro da Universidade da Bahia (1956-1961)

Nos meios culturais e acadêmicos baianos muito se especulou e ainda se especula sobre o caráter da direção de Eros Martim Gonçalves à frente da Escola de Teatro da então Universidade da Bahia. Criada oficialmente em 13 de junho de 1956 e entranhada no coração da provinciana Salvador, a instituição, primeira escola de teatro no Brasil ligada a uma universidade pública, nasce sob a égide deste encenador que foi também seu primeiro administrador. Apesar da importância desta iniciativa para os campos educacionais, artísticos e culturais do país, até o momento nenhum estudo discutiu o tema com a profundidade e a seriedade que lhe são devidas.
Em minha pesquisa de doutorado, proponho como objetivo central analisar as escolhas estéticas tomadas por Gonçalves à frente da referida unidade de ensino e de prática teatrais. Através do levantamento da produção empreendida nos seis anos em que capitaneou a escola e sua companhia fixa, denominada de A Barca, pretendo investigar o porquê da escolha de Gonçalves por dados autores, intérpretes, metodologias de ensaio, na dada conjuntura temporal e sócio-econômica que estava submetido. Também objetivo investigar sobre as rotinas produtivas de atores e técnicos, assim como os esquemas de produção que dispunha, numa terra até então lastreada pelo teatro amador e por esporádicas passagens de espetáculos produzidos no Rio de Janeiro, São Paulo e, ainda bem mais raro, Portugal, Espanha e França.
Diretor da Escola de Teatro entre junho de 1956 e agosto de 1961, Martim Gonçalves dirigiu e apresentou ao público soteropolitano dezoito espetáculos, entre textos nacionais e estrangeiros. Outras dez montagens foram apresentadas por encenadores-professores convidados (na ordem): Antonio Patiño, Gianni Ratto, Charles McGaw, Herbert Machiz e Luis Carlos Maciel. Mesmo com as viagens e após o afastamento definitivo de Gonçalves, as peças escolhidas faziam parte do projeto por ele já acordado para o ano letivo em questão. Administrador ativo, Gonçalves realizou ainda um sem número de eventos, entre eles, palestras, seminários e mostras de filmes que também nos ajudam a compreender o seu projeto artístico-educacional.
A administração Gonçalves acontece num momento de radicalização do espírito nacionalista no Brasil. São os anos do governo Juscelino Kubistcheck, de crescimento da industrialização e de abertura para o capital internacional. O Nordeste (e a Bahia em particular) atravessa uma intensa mobilidade em sua estrutura social a partir da descoberta de petróleo em seu território. Em toda a nação, o governo democrático e eleito permite que a sociedade civil e a juventude universitária se organizem como nunca. Para grande parte do país, era chegada a hora de romper com as dependências externas, máculas de sucessivos períodos históricos e diversos modos de colonização. Nacionalismo e politização capturam as artes exatamente nos anos 1950/1960, sendo que a popularização da linguagem teatral foi encarada como uma arma ativa neste combate.
Como não poderia deixar de ser, ao longo deste período, a presença do texto nacional no projeto de Gonçalves à frente da Escola de Teatro já era bastante discutida. Nestes seis anos, ao lado dos grandes nomes da dramaturgia ocidental (como Tchecov, Strindberg, Camus, Lorca e Brecht) ele monta os brasileiros Maria Clara Machado (O Boi e o Burro a caminho de Belém), Ariano Suassuna (Auto da Compadecida), Arthur Azevedo (Uma Véspera de Reis na Bahia e A Almanjarra), Antonio Callado (O Tesouro de Chica da Silva), Francisco Pereira da Silva (Graça e Desgraça na Casa do Engole Cobra) e o baiano Ecchio Reis (Cachorro Dorme na Cinza). Este último resultado do Curso de Formação do Autor, mantido pela instituição e que, nos próximos anos, ainda promoverá outros cursos de playwriting, sob a coordenação de Stanley Richards.
Contudo, apesar desta presença, o projeto-pedagógico de Gonçalves, não parece mostrar sintonia com qualquer engajamento, seja a temáticas, a estilos ou a uma moral particular. A partir da minha dissertação de mestrado, Impressões Modernas – Compreensão e Debate sobre Teatro na Cobertura dos Jornais A Tarde e Diário de Notícias entre os anos 1956 e 1961, a figura de Martim Gonçalves surge, não raramente, paradoxal. Não é incomum às vezes termos a impressão de que as matérias falam de pessoas diferentes. Daí a habitual leitura que, desde a época, tenta capturá-lo: herói ou vilão? Contudo, do contraditório que é essa persona pública construída pelos jornais, emerge, talvez, uma certeza: Martim Gonçalves era um legítimo ‘homem de teatro’.
A partir desta dissertação e como hipótese inicial de trabalho para o doutorado, defendo a idéia de que Gonçalves objetivava se mover no próprio campo social da arte, ou seja, naquilo que este possui de autodeterminação e auto-engendramento de seus próprios significados e hierarquias, segundo suas próprias regras, agentes, obras e instituições. Através das montagens teatrais que capitaneou em seis anos de produção, Gonçalves pretendia se movimentar num ambiente no qual a liberdade de expressão, tanto de forma, quanto de conteúdo, deveriam ser soberanos em relação aos eventuais desmandos de outros sistemas sociais heterônomos, ou seja, em relação às demais regras do jogo do poder econômico, político e/ou midiático. E o que é mais curioso: ele queria se mover no interior de um campo no qual ele próprio traçava os primeiros contornos.
Sendo assim, meu doutorado pretende provar a tese de que a produção estética empreendida pelo encenador Eros Martim Gonçalves, durante os anos em que esteve à frente da Escola de Teatro da então Universidade da Bahia, objetivava, através das regras do próprio campo artístico, pregar a liberdade e a independência dos valores da arte teatral em relação à sociedade que outrora encontrou por aqui. A questão é que, simultaneamente, ao constituir-se este campo de poder paralelo, magistralmente (e quase que unicamente) gerenciado por Gonçalves, a arte teatral em Salvador ameaçou os demais campos instituídos, provocando a ruptura e o isolamento do diretor, sobretudo a partir da montagem de A Ópera dos Três Tostões, de Bertolt Brecht.
Voltado para seu ofício, Gonçalves parece menosprezar as ingerências dos outros campos sociais no fazer artístico teatral, a despeito de, paradoxalmente, considerá-los apenas até o momento em que seus projetos conseguissem ser capitaneados. Como um legítimo ‘moderno’ acredita na autonomia da arte e no que esta, assim acionada, poderia ensinar sobre o “resto do mundo”, pretendendo discuti-la apenas em seus próprios termos poéticos. Contudo, Gonçalves também soube ativar os poderes políticos e midiáticos à disposição para alavancar o projeto da instituição, sobretudo em seus primeiros anos. O paradoxo é que, através de suas escolhas poéticas, dava mostras de que ‘teatro não se mistura’, a priori, com política, ética e religião, atitude comumente entendida como alienação, diletantismo e esteticismo. Adjetivos rapidamente sacados pelas elites intelectuais de esquerda e rotineiramente empregados ao diretor.
Tal estado de coisas, não apenas nas artes cênicas, assumia no período a polarização simplista entre universal/alienado versus nacional/engajado. Contudo, parece redutor não perceber como a Escola de Teatro neste período se apropriou metodicamente de diversas contribuições do fazer teatral, independentemente de suas origens, promovendo assim seus possíveis desdobramentos, inclusive a partir de grupos que se desmembraram dela. Cabe lembrar que teatro moderno, ou melhor, a arte moderna, já não obedecia a fronteiras, acolhendo contribuições, entre tantos, de artistas russos, alemães, americanos e franceses.
O que nos chama a atenção em especial é a sensibilidade de Gonçalves também para temáticas nacionais e populares, fator que nunca foi bem compreendido por aqueles que criticavam sua produção.
Dito isto, aqui poderíamos acolher uma série de matérias retiradas da cobertura jornalística do período que repercutem tais iniciativas da Escola de Teatro em trabalhar com as raízes populares da região. Uma matéria sobre o reinício das aulas na Escola de Teatro, publicada em 13 de abril de 1957, informa que Martim Gonçalves organizará, na França, a exposição Dança e Teatro Popular no Brasil. No texto, lemos que o professor esperava com a mostra (mais tarde integrada ao acervo da Escola de Teatro) desenvolver um “programa de ensino, formando novos técnicos para o teatro brasileiro e incentivando os autores dramáticos a entrarem em contato com as fontes de inspiração tradicional e popular”.
Na mesma linha de aproximação de nossas matrizes culturais populares, vemos outro artigo de Martim Gonçalves publicado no Letras e Artes, de 23 de novembro de 1958. No artigo ‘O Mamulengo’ Gonçalves analisa as origens do teatro de bonecos nordestino, explicando a diferença entre os fantoches, de feitura popular e encenação direta, para a marionete, erudito e de leitura complexa. Sendo, segundo ele, o mamulengo, “um teatro de improvisação (...) de ação dramática simples (...) muito famoso em Pernambuco”. O longo texto cita ainda um importante fazedor de mamulengos, o pernambucano Severino Alves Dias, mais conhecido como doutor Babau, e seu principal personagem, o Cheiroso. Na ocasião, Gonçalves compila cantigas do grupo, associando o gênero de suas histórias à farsa e à Commedia dell’arte. No final, ressalta que esta estética sobreviveria nas nossas feiras.
É também por esta época que a Escola de Teatro repercute na imprensa a reorganização do Rancho da Lua, antigo grupo nordestino, desativado há 46 anos. Na matéria do Diário de Notícias, Mestre Hilário das Virgens, autor do Rancho na cidade de Itaporanga, afirma que “a última apresentação (ocorreu) em Esplanada em 1912”. O grupo fez apresentação especial nos jardins da Escola de Teatro, em 09 de dezembro de 1958, sendo o fato divulgado no dia seguinte pelo jornal. A atração descrita como “simples e brejeira” acabou angariando o apoio da Rádio Sociedade para apresentações em diversos bairros da capital, através do projeto Sociedade nas praças. A matéria publica uma cantiga e ainda explica a diferença entre Rancho (mais pandego e democrático) e Terno (mais sério e aristocrático), contudo ambos grupos festeiros das solenidades de Natal. No espetáculo Uma Véspera de Reis na Bahia, apresentado em junho de 1960, os alunos da Escola apresentaram um Terno de Reis com músicas organizadas pelo Rancho da Lua. O fato também repercutiu na imprensa. Nota-se em todo texto publicado o cuidado conceitual de separar as peculiaridades de cada expressão.
Um ano depois, em 1959, já com a parceria da arquiteta Lina Bo Bardi, Martim Gonçalves mergulhará ainda mais nas raízes populares da cultura nordestina na Exposição Bahia, da V Bienal de São Paulo. A apresentação do evento, assinada por ambos, é publicada na capa do Letras e Artes, na edição de 11 e 12 de outubro de 1959. Na abertura do artigo, eles questionam as fronteiras habituais do que é ou não arte, recusam suas divisões em categorias estanques e afirmam o direito do homem comum em viver na plenitude de suas expressões:
“A grande arte que cederá seu lugar a uma expressão estética ‘não-privilegiada’, a produção folclórica, popular e primitiva perderá seu atributo (mais ou menos explícito hoje) de manifestação não-consciente ou de transição para outras formas, e significará o direito dos homens à expressão estética, direito esse reprimido há séculos nos ‘instruídos’”.
Na instalação cênica armada no Parque do Ibirapuera em São Paulo, flores de papel, objetos de barro, cumbucas, imagens de santos e carrancas ressaltam que a “vida cotidiana exprime poesia”, a depender do “jeito de se olhar as coisas”. Ainda segundo o texto, “não por mero acaso essa exposição é apresentada por uma Escola de Teatro, pois o teatro reúne todas as necessidades do homem estético”. A Bahia foi escolhida e eles explicam o porquê: “Apresentamos a Bahia. Poderíamos ter escolhido a América Central, Espanha, Itália Meridional ou qualquer outro lugar onde o que ainda chamamos de ‘cultura’ não tivesse chegado” (grifo nosso). Obviamente, cabe ressaltarmos que o conceito de cultura empregado por eles é sinônimo de civilização, de urbanidade. Este tópico merece maiores desdobramentos.
O cineasta Glauber Rocha, que também participou da organização do evento, dá sua versão, no artigo ‘Episódio Bahia na cidade de São Paulo’, publicado no mesmo caderno, no mesmo dia:
“Eu sempre pensei que o mal do artista brasileiro é sua consciência: ou ele renuncia ao vanguardismo, sacrificado por existência histórica em função de uma pesquisa de base (e aí poder oferecer daqui há dois séculos uma tradição) ou salta para a vanguarda e se liquida na curva do encontro com sua autenticidade. (...) a renúncia é um golpe de maior alcance e coragem”.
Afinada ao debate, no final deste mesmo mês, a Escola de Teatro inaugura na estréia de A Sapateira Prodigiosa,
“(...) uma exposição de arte popular em relação com as fontes de inspiração do grande poeta Garcia Lorca. Será uma manifestação do Museu Vivo que a Escola de Teatro inaugurou no saguão do teatro e que vem apresentando ao público uma série de exposições das mais interessantes sobre documentos da vida brasileira, a terra e o povo como também, exposição de objetos de arte brasileira e estrangeira” (Diário de Notícias, 27 de outubro de 1959).
O que notamos na pesquisa do mestrado já citada é que as demais escolhas de Gonçalves – trabalhar com o repertório internacional de textos, receber o apoio, inclusive financeiro, do governo americanos num momento de extrema polaridade da geopolítica mundial, menosprezar uma intervenção política mais imediata nas montagens – irão, aos poucos, ser privilegiada na cobertura dos jornais estudados, em detrimento ao trabalho que o diretor ainda realizava de investigação das raízes populares nordestinas e de formação de autores baianos. Chegando-se mesmo à tentativa de retirar de sua figura tais ações, transmitindo-a para sua parceira de projetos Lina Bo. Note-se, para maior investigação, as questões da autoria da própria exposição na Bienal de 1959 e a criação e supervisão de Martim Gonçalves para a Escola da Criança, em funcionamento no Museu de Arte Moderna da Bahia (então Mamb), no foyer do Teatro Castro Alves.

Jussilene Santana, dezembro de 2007

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