Desde que entrei na Escola de Teatro, em 1995, o mestre (em quase todos os sentidos) Harildo Déda, decano das artes cênicas da Bahia, diz que vai se aposentar. Já se passaram 12 anos, e este herói da resistência insiste em fazer teatro.
Semana passada estreou As bruxas de Salem (últimas apresentações dias 11 e 15, 20hs), mais uma montagem de formatura que Harildo dirige, no novo Teatro Martim Gonçalves, e fiquei muito feliz ao ver um teatro novo, tecnicamente bem-feito e estruturado, e com uma peça digna de inaugurá-lo.
Digna por vários motivos. O texto de Arthur Miller chega a ser piegas como um bom filme americano, ingênuo, tendencioso, moralista, mas isso pouco importa. É um texto que funciona para formar alunos que estão se graduando em interpretação, e é bom ver que os alunos funcionam para o texto.
Bem dirigidos, apresenta-se no palco uma plêiade irregular de talentos como se acharia no Buffes du Nord ou no Berliner Ensemble, e isto pouco importa. O que mais salta aos olhos é que Harildo cumpriu seu papel, fazendo um espetáculo coeso e dedicado a seu propósito.
Uns vão dizer: Harildo não é encenador. Outros: é um espetáculo careta. Bem, quanto à primeira questão, perguntem aos atores o que eles aprenderam de interpretação neste processo e verão a coerência do propósito. Quanto à segunda, terei que me submeter a responder aos imbecis apenas para perguntar se quando eles vão pra um concerto com obras de Brahms eles saem de lá com o mesmo questionamento. Vão procurar o que fazer, e fazer bem.
Parece-me um contra-senso ou simples veneno dos incompetentes, visto que só comenta que um espetáculo como esse é careta quem (não) conhece minimamente teatro. E quem conhece minimamente teatro sabe o estilo de Harildo, sabe, talvez, o estilo de Arthur Miller, e deveria saber, ao menos, que uma peça de formatura em interpretação é dos alunos-atores, e não dos egos-encenadores-criativos. É fundamental uma experiência sólida de interpretação.
Dêem graças a deus, caros alunos. As atuais mentalidades e políticas não querem mais ver este tipo de teatro em cena, e vêm com alternativas inconsistentes, desenraizadas e desorientadas.
A montagem traz o auxílio luxuoso da cenografia precisa de Eduardo Tudella, encorpada pela sua luz, feita em meio às confusões com dimers, inaugurações, questões técnicas que não prejudicaram um eficiente trabalho. Uma cenografia provocadora, que nos remete ao anfiteatro grego, onde o palco central é o lugar do julgamento dos atores-personagens. Mas não só. Harildo faz os atores irem ao proscênio dizerem textos que são recados indiretos e diretos aos abutres, hienas e urubus que tentam pousar na nossa sorte. E com isso, Harildo traz o público pra cena, coloca todos no mesmo tribunal.
Não à toa, o personagem herói – indispensável na moralista-pequeno-burguesa peça americana – acaba subindo a platéia, se encontrando com perseguidos e perseguidores da vida real. Ressalto apenas que as janelas do cenário são mal pensadas em termos de troca, bem como não dão contribuição fundamental ao espetáculo.
Não fui ao teatro ver uma encenação, fui ver uma peça de formatura, fui ver alunos que correram pra Harildo na tentativa de fazer teatro estudado, dedicado, sério. Os imbecis hão de dizer que Harildo é realista, e resta-me dizer que estes são os mais atrasados, são os saudosos das décadas de 60 e 70, onde qualquer um fazia teatro, bastava tirar a roupa ou ser desinibido, ou dizer, apenas, que era ator. Qualquer pessoa minimamente antenada vai saber que aquele cenário, com aquelas marcas e com aquela luz não tem nada de realismo. Quando muito, vão se incomodar com o estudo dos personagens, com a dedicação ao texto; que tanto serve a Miller quanto a Beckett, são artifícios que podem, ou não, ser usados, e que me parecem eficientes na formação de um ator que precisa de esteio, base (e não sei se alguém teria em Salvador – no nível de Harildo – formação suficiente pra repassar aos alunos outras técnicas mais afinadas com as vanguardas que, de tão atrasadas, se tornaram a retaguarda da mediocridade).
Harildo manda seu recado. Infelizmente, em tempos de barbárie, não basta apenas o palco. Queria ouvi-lo fora da cena, do teatro, contestando equívocos. Ele e a Escola de Teatro precisam se pronunciar, tomar a frente, afinal, a Escola de Teatro forma profissionais para a cidade, é um espaço de pensamento sobre o teatro nesta cidade, e parece, muitas vezes, não dialogar com ela, visto que não vemos posicionamentos oficiais, questionamentos, discussões.
No candomblé, antiguidade é posto. Aprendi a fazer teatro assistindo Harildo, Yumara, Gideon, Cacá, Joana e tantos outros. Não deixem nossos bruxos serem caçados, injustiçados, ignorados. E que eles se pronunciem, façam, lutem. O Teatro Nu está fazendo um ciclo de entrevistas com seis pessoas que foram alguns dos primeiros profissionais da Bahia, e estão no palco há cinqüenta anos. Isso é uma conquista, uma vitória. Nós, profissionais iniciantes, agradecemos. Uma cidade sem referências, assim como pessoas sem referências, são um vazio que – qual buraco negro – engole a tradição, a história, a arte.
GVT.